Os paraísos dos bilionários

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Por THOMAS PIKETTY*

Os bilionários estão por toda parte nas revistas, e é hora de eles aparecerem nas estatísticas fiscais

Enquanto a crise pandêmica alimenta como nunca a demanda por justiça social, uma nova investigação por um consórcio de mídia internacional acaba de revelar as vergonhosas operações financeiras de Luxemburgo, um paraíso fiscal situado no coração da Europa. É urgente sair dessas contradições e lançar uma transformação profunda do sistema econômico na direção da justiça e da redistribuição.

A primeira prioridade deve ser a recuperação social, salarial e ecológica. A crise da Covid trouxe à luz as baixas remunerações praticadas em muitos setores essenciais. A CFDT (Confédération française démocratique du travail), sindicato com fama de centrista, exigiu em janeiro um aumento imediato de 15% em todos os salários baixos e médios do setor médico-social. O mesmo deveria ser feito na educação, saúde e em todos os setores de baixos salários.

Agora é também o momento de acelerar radicalmente o ritmo de reformas térmicas de edifícios, criar massivamente empregos no setor ambiental e de energias renováveis, estender os sistemas de renda mínima para jovens e estudantes. Onde devemos parar na estimulação pública? A resposta é simples: enquanto a inflação estiver perto de zero e as taxas de juros negativas, continue. Se e quando a inflação voltar a um nível significativo (digamos, 3% a 4% ao ano por dois anos consecutivos), será a hora de diminuir o ritmo.

O segundo passo é que naturalmente será necessário tributar as maiores fortunas privadas, em um momento ou outro, para financiar a recuperação social e reduzir a dívida pública. Isso exigirá um maior esforço de transparência financeira. A investigação OpenLux demonstrou o seguinte: o registro dos beneficiários efetivos das empresas (isto é, os verdadeiros proprietários, para além, em princípio, das empresas de fachada) tornado público por Luxemburgo como decorrência de uma obrigação europeia, que aliás ainda aguarda cumprimento pela França, inclui infelizmente muitas falhas. O mesmo vale para o sistema automático de troca de informações bancárias estabelecido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Em geral, todas essas novas informações são úteis, mas com a condição de que sejam realmente utilizadas pelas administrações tributárias para cobrar dos ricos que, até agora, escaparam dos impostos. Acima de tudo, é essencial que os governos forneçam indicadores que permitam a todos verem em que medida tudo isso permite um movimento em direção a um sistema tributário mais justo.

Concretamente, é necessário que as administrações fiscais publiquem anualmente informações pormenorizadas sobre os impostos pagos e os controles cruzados efetuados com relação às diferentes categorias de contribuintes em questão. Tal como acontece com os registros de beneficiários efetivos, as informações deveriam ser idealmente nominativas, especialmente para empresas e fortunas maiores. Se for decidido que isto não é desejável, então pelo menos a informação estatística publicada deve mostrar claramente os impostos pagos pelas pessoas pertencentes as faixas de patrimônio muito elevadas: fortunas entre 1 e 10 milhões de euros, entre 10 e 100 milhões, entre 100 milhões e 1 bilhão e assim por diante. Tabelas modelo foram propostas pelo laboratório sobre desigualdades globais (Laboratoire sur les inégalités mondiales) e podem, obviamente, ser discutidas e melhoradas.

A ideia geral é simples: os bilionários estão por toda parte nas revistas, e é hora de eles aparecerem nas estatísticas fiscais. De acordo com a revista Challenges, as 500 maiores fortunas da França aumentaram de 210 para 730 bilhões de euros entre 2010 e 2020 (de 10% para 30% do PIB). Como seus impostos evoluíram neste período? Ninguém sabe. Se os governos realmente fizeram os enormes avanços em transparência que afirmam ter realizado nos últimos anos, então é hora de demonstrarem isso tornando este tipo de informação pública. Se estendermos o foco das primeiras 500 fortunas (superiores a 150 milhões de euros de ativos individuais de acordo com Challenges) para os 500.000 patrimônios mais elevados (ou seja, cerca de 1% da população adulta, com patrimônios superiores a 1,8 milhões de euros de acordo com World Inequality Data Base), então o total das fortunas em questão alcança 2.500 bilhões de euros (cerca de 120% do PIB), aumentando correspondentemente as participações fiscais.

Para romper com o conservadorismo vigente, também é urgente voltar à história. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o endividamento público atingiu níveis acima dos observados hoje, a maioria dos países implementou tributos excepcionais sobre os patrimônios privados mais elevados. Este é particularmente o caso da Alemanha com o sistema Lastenausgleich (ou “compartilhamento de encargos”, que foi tema de um belo estudo histórico de Michael Hughes, Shouldering the Burdens of Defeat, UNC Press, 2009), adotado pela maioria democrata-cristã em 1952. Com uma taxa de até 50% sobre os maiores ativos financeiros e imobiliários.

Em trinta anos, esse sistema trouxe 60% do PIB para o Estado, numa época em que os bilionários eram menos prósperos do que hoje. Combinado com a reforma monetária de 1948 e o cancelamento da dívida externa em 1953, esse sistema permitiu que a Alemanha se livrasse de sua dívida pública sem recorrer à inflação (que tanto prejudicara nos anos 1920) com base em um objetivo de justiça social credível.

Está mais do que na hora de voltar às raízes da tão bem sucedida reconstrução europeia do pós-guerra.

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Aluisio Schumacher para o Portal Carta Maior.

 

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