Os russos estão chegando!

Imagem: Sun
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SAMUEL KILSZTAJN*

A Europa segue se debatendo com o fantasma russo que derrotou Napoleão e nunca aderiu à Revolução Francesa e à democracia ocidental. A organização e as instituições políticas da Rússia constituem um mistério e um desafio para a Europa

Em 1956, o relatório de Nikita Khrushchov “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”, conhecido como “Relatório (discurso) secreto”, que destacava o expurgo e extermínio de milhares de militantes comunistas e desmistificava o papel de Joseph Stalin durante a Segunda Guerra Mundial, afetou as relações diplomáticas entre a China e a União Soviética, que se deterioraram categoricamente em 1964.

Em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos acompanharam radiantes a cisão sino-soviética, que enfraquecia o seu então inimigo nº 1, a Cortina de Ferro formada pela Rússia, as demais repúblicas da União Soviética e os estados satélites da Europa que compunham o Pacto de Varsóvia, além da vizinha Cuba.

A aproximação dos Estados Unidos à China teve início em 1968, o presidente republicano Richard Nixon visitou o país (1972), a Guerra do Vietnã acabou (1975) e as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a República Popular da China foram formalmente estabelecidas em 1979.

A Rússia deu início à Perestroika em 1986 e os países-membros do Pacto de Varsóvia começaram a abandonar o comunismo em 1989, ano em que o Muro de Berlim foi colocado abaixo. Em 1991 o Partido Comunista foi extinto, a União Soviética foi dissolvida e a Guerra Fria acabou. Apesar da Guerra do Golfo, o mundo vislumbrava e festejava novos tempos de paz e harmonia universal. Nelson Mandela saiu da prisão para a presidência da África do Sul. Quanta ironia estarmos hoje sentindo saudades dos tempos da Guerra Fria!

Na passagem dos séculos XX para o XXI, o tradicional Império Chinês, que havia sido dominado pelo ocidente durante as Guerras do Ópio em meados do século XIX, reergueu-se para se transformar em uma grande potência mundial, utilizando-se das próprias armas do ocidente, o mundo da mercadoria e o progresso. O acirramento aberto das relações comerciais entre os Estados Unidos e a China teve início durante a administração de Donald Trump em 2017 e a China é o atual inimigo nº 1 dos Estados Unidos.

Neste segundo mandato, Donald Trump está determinado a apaziguar o conflito entre a Europa e a Rússia, de forma a distanciar os russos dos chineses, o mesmo expediente utilizado há 60 anos, com poderes e alianças invertidos. E, ao que tudo indica, a presente desarticulação entre os Estados Unidos e a Europa favorece a China, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

O fantasma russo – passo a passo

A reação da aristocracia da Europa Continental levou Napoleão Bonaparte a exportar a Revolução Francesa e, durante a Era Napoleônica, o ideário da revolução invadiu o continente. Mas, em 1812, Alexandre I derrotou a Grande Armée de Napoleão, mantendo o Império Russo refratário às conquistas liberais que dominaram a Europa Continental.

Em Guerra e paz, Léon Tolstoy reconstruiu a historiografia da Campanha Russa e do acaso que governou a obstinada resistência do povo e do exército russos (os ocidentais, contudo, atribuem a vitória ao General Frost, o rigoroso inverno russo). A Rússia derrotou Napoleão em 1812 e teve que esperar mais um século para abolir a sua monarquia absolutista.

Após a Revolução Russa de 1917, a guerra civil tomou conta do antigo Império. Ao lado da Ucrânia e da Bielorrússia, a Polônia fazia parte do Império Czarista. Os bolcheviques entendiam que o socialismo restrito à arcaica Rússia era inviável e queriam alcançar Varsóvia para se juntarem ao movimento revolucionário alemão (a Polônia ficava estrategicamente entre a União Soviética e a Alemanha). O objetivo de Vladímir Lênin era alcançar Berlim, Paris e Londres.

E a Europa, alinhada, se empenhou em erguer um “cordão sanitário” para deter o avanço soviético sobre a Polônia. Charles De Gaulle participou da Missão Militar Francesa na Polônia e ganhou a mais alta condecoração militar polonesa, o Virtuti Militari. Os bolcheviques não conseguiram atravessar a Polônia para alcançar Berlim; e a Alemanha se encarregou de reprimir seus socialistas, eliminando os líderes Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht em 1919.

Após a morte de Vladímir Lênin, Joseph Stalin encabeçou a doutrina do “socialismo em um país só” e o internacionalista Léon Trotsky foi afastado do Partido Comunista. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha nazista passou a contemplar a Polônia. Para conter as aspirações alemãs, Londres, Paris e Moscou ensaiaram, mas não conseguiram chegar a um acordo, porque a Polônia se recusava a permitir a entrada das tropas soviéticas em seu território.

Por fim, em 23 de agosto de 1939, a Alemanha nazista e a União Soviética acabaram assinando um Pacto de não-agressão, com protocolos secretos determinando a repartição da Polônia. Assim, depois de duas décadas de independência, a Polônia voltou a ser partilhada entre a Rússia e a antiga Prússia e Áustria, então unificadas como III Reich.

Depois de ocupar a Europa Continental, em junho de 1941, a Alemanha nazista resolveu invadir a União Soviética. A sangrenta Batalha de Stalingrado, na qual mais de um milhão de russos pereceram, é considerada o ponto de inflexão do Terceiro Reich, projetado para durar um milênio. E os poloneses tiveram que contar com o seu inimigo nº 1 para libertá-los da ocupação alemã. Em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial, a Imperial Rússia Soviética, vitoriosa (mais uma vez, o General Frost, do ponto de vista dos ocidentais), ocupou todos os países do Leste Europeu e metade da Alemanha, assentou os comunistas no poder à sua imagem, transformou todos os seus territórios em estados satélites e constituiu o Pacto de Varsóvia.

Com a iminência da dissolução do Pacto de Varsóvia, a OTAN e a URSS acordaram em manter neutros os países-membros do Pacto. Entretanto, todos os antigos membros do Pacto de Varsóvia foram incorporados à OTAN porque, segundo a mesma, o acordo fora firmado com a URSS, dissolvida em 1991. Foi então acordado entre a OTAN e a Rússia que a Bielorrússia e a Ucrânia constituiriam a nova região neutra. Na Crise da Criméia de 2014, a Ucrânia e a Rússia entraram em conflito e o embate segue na guerra da Ucrânia em curso.

As autoridades europeias se surpreenderam com a política norte-americana anunciada por Donald Trump. O fantasma russo corre solto e parece bater à porta de Napoleão em 1812. Assim como os bolcheviques em 1917 e Stalin em 1945, mais uma vez, os russos estão chegando. Volodymyr Zelensky, a princípio, ficou revoltado; Emmanuel Macron, por sua vez, ficou em pânico com a ameaça russa à França e à Europa e disponibilizou o seu arsenal nuclear.

A Europa segue se debatendo com o fantasma russo que derrotou Napoleão e nunca aderiu à Revolução Francesa e à democracia ocidental. A organização e as instituições políticas da Rússia constituem um mistério e um desafio para a Europa, desde o império dos czares, passando pelos bolcheviques e, agora, com Putin no poder. Vale a pena ler o bem humorado desabafo que o sociólogo marxista russo Boris Kagarlitsky, editor-chefe da revista online Rabkor.ur, enviou da prisão, onde atualmente cumpre pena de cinco anos.

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico [amz.run/7C8V].

Referências


Os russos estão chegando! Os russos estão chegando! [https://www.youtube.com/watch?v=0ACDoxjj9WQ] é uma comédia dirigida por Norman Jewison, lançada em 1966, no auge da Guerra Fria. Um submarino soviético encalha em uma ilha em Massachusetts. A tripulação do submarino desembarca para solicitar ajuda, mas os moradores locais entram em pânico, acreditando que estão sendo invadidos pela União Soviética. O filme foi mencionado no Congresso dos Estados Unidos e exibido no Kremlin. Vale a pena conferir, é hilariante (devo registrar, contudo, que, em 1967, eu simplesmente odiei o filme – estávamos em plena Ditadura Militar, tinha 15 anos de idade, estava me preparando para a militância política e não achei nada engraçado).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A crônica de Machado de Assis sobre Tiradentes
Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Uma análise machadiana da elevação dos nomes e da significação republicana
Umberto Eco – a biblioteca do mundo
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Considerações sobre o filme dirigido por Davide Ferrario.
Dialética e valor em Marx e nos clássicos do marxismo
Por JADIR ANTUNES: Apresentação do livro recém-lançado de Zaira Vieira
O complexo de Arcádia da literatura brasileira
Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES: Introdução do autor ao livro recém-publicado
Cultura e filosofia da práxis
Por EDUARDO GRANJA COUTINHO: Prefácio do organizador da coletânea recém-lançada
Ecologia marxista na China
Por CHEN YIWEN: Da ecologia de Karl Marx à teoria da ecocivilização socialista
Papa Francisco – contra a idolatria do capital
Por MICHAEL LÖWY: As próximas semanas decidirão se Jorge Bergoglio foi apenas um parêntesis ou se abriu um novo capítulo na longa história do catolicismo
A fraqueza de Deus
Por MARILIA PACHECO FIORILLO: Ele se afastou do mundo, transtornado pela degradação de sua Criação. Só a ação humana pode trazê-lo de volta
Jorge Mario Bergoglio (1936-2025)
Por TALES AB´SÁBER: Breves considerações sobre o Papa Francisco, recém-falecido
O consenso neoliberal
Por GILBERTO MARINGONI: Há chances mínimas do governo Lula assumir bandeiras claramente de esquerda no que lhe resta de mandato, depois de quase 30 meses de opção neoliberal na economia
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

JUNTE-SE A NÓS!

Esteja entre nossos apoiadores que mantém este site vivo!