Por José Luís
Fiori*
“Por
qué protestan? Es por la desigualdad económica.
Y los
bajos salarios. También por la baja o nula movilidad social
y la
falta de un futuro mejor para los jóvenes.
Es
por los servicios públicos infames.
Y por
la globalización y la pérdida de puestos de trabajo…”
Moisés Naim, El País, 27 de outubro de 2019.
Desta vez tudo foi
muito rápido. Como se, em apenas uma noite, a América Latina tivesse dormido de
direita e acordado de esquerda. Depois da avassaladora vitória de López Obrador
no México, em 2018, em apenas um mês, outubro de 2019, as forças progressistas
venceram as eleições presidenciais na Bolívia, Uruguai e Argentina, elegeram um
jovem economista de esquerda para o governo de Buenos Aires e ganharam na
Colômbia eleições para a prefeitura de suas principais cidades, como Bogotá e
Medellín. E quase simultaneamente, uma sucessão de revoltas populares derrubou
ou colocou de joelhos os governos direitistas de Haiti e Honduras, impondo
pesadas derrotas aos presidentes de direita, do Equador e do Chile.
Muitos analistas
se surpreenderam com essa sequência de derrotas da direita, como se fosse
inesperada, um raio em céu azul. Mas isso não é verdade, sobretudo, nos casos
iminentes da rebelião do povo chileno e da derrota de Mauricio Macri na
Argentina. No caso do Chile, já tinha havido uma gigantesca manifestação de
mais de um milhão de pessoas, em 1988, pelo fim da ditadura do General
Pinochet, acossada pelo fracasso de uma economia que havia crescido apenas
1,6%, em média, durante os 15 anos da ditadura militar, deixando como herança
um desemprego de 18%, e 45% da população abaixo da linha da pobreza.
Logo depois da
redemocratização do país, a partir de 2006, sucederam-se grandes mobilizações
estudantis contra a privatização e os altos custos da educação, da saúde, da
água e do saneamento básico, que haviam sido privatizados durante a ditadura e
permaneceram privados depois da redemocratização. Numa mobilização quase
contínua, que alcançou uma extraordinária vitória em janeiro de 2018, com a
aprovação pelo Congresso Nacional chileno de um novo sistema de educação
universitária, universal e gratuita, tanto pública quanto privada.
Foi na esteira
dessas manifestações que a população chilena voltou a sair às ruas nesse
outubro, protestando contra uma sociedade que apesar do seu “equilíbrio
macroeconômico”, segue sendo a mais desigual dentre todos os países da OCDE,
com a concentração de 33% da riqueza nacional nas mãos de apenas 1% da
população. Posicionaram-se contra os sistemas de saúde, água e serviços básicos
que seguem privatizados e com custos exorbitantes; contra o sistema de previdência
privada que entrega aos aposentados apenas 33% do seu salário ativo. Trata-se
de um quadro de descontentamento que prenuncia a provável derrota das forças de
direita nas eleições presidenciais de 2021.
No caso da
Argentina, a vitória peronista foi uma resposta imediata e explícita ao
fracasso do programa econômico neoliberal do presidente Mauricio Macri, que
conseguiu destruir e endividar o a economia argentina, deixando como herança um
crescimento negativo do PIB, uma taxa de inflação de 50%, um desemprego de 10%
e ainda 32% da população abaixo da linha de pobreza. Sabe-se que a Argentina
foi, até bem pouco tempo atrás, a sociedade mais rica e com melhor qualidade de
vida e nível educacional da América Latina. Ou seja, resumindo o argumento, a
rebelião chilena e a vitória peronista na Argentina não são surpreendentes, o
que vale também para a sucessão em cadeia das demais derrotas da direita
latino-americana.
Que consequências
imediatas se deve esperar, e que lições extrair desse “outubro vermelho”?
A primeira e mais
contundente é que os latino-americanos não suportam nem aceitam mais viver em
sociedades com níveis de desigualdade extrema e vergonhosa. A segunda é que o
mesmo programa neoliberal que fracassou na década de 1990 voltou a fracassar,
exatamente porque não produz crescimento econômico sustentado e acentua
violentamente a precarização, a miséria e a desigualdade que já existem em toda
a América Latina.
Por outro lado,
do ponto de vista estritamente brasileiro, esse fracasso da política neoliberal,
sobretudo o fracasso do Chile e da Argentina, caem como bombas em cima do
programa de promessas e blefes ultraliberais do senhor Guedes, cuja insistência
na mesma tecla, depois de tudo o que aconteceu, sugere tratar-se de um
financista que, além de fanático, parece ser cego ou burro.
Assim, permanecem
no ar duas perguntas importantes: Por que esse novo ciclo neoliberal foi tão
curto? O que se deve esperar para o futuro?
Para refletir
sobre essas questões, entretanto, é necessário se afastar um pouco da
conjuntura, e de seus debates mais acalorados, e recorrer a uma hipótese de longo
prazo acerca da natureza contraditória do desenvolvimento capitalista,
formulada pelo economista e historiador Karl Polanyi, em A grande transformação
(1944).
Polanyi propôs uma
explicação para o fim da “ordem liberal do século XIX” – que alcançou seu
apogeu e começou sua crise e transformação, a um só tempo, a partir de 1870.
Segundo o economista austríaco, essa simultaneidade deve-se à existência de um
duplo princípio que comanda a expansão capitalista: “o princípio do liberalismo
econômico, que objetiva estabelecer um mercado autorregulado, e o princípio da
proteção social, cuja finalidade é preservar o homem e a natureza, além da
organização produtiva” [1].
Teria sido
exatamente por isso que os Estados e sociedades capitalistas mais avançados e
suas populações teriam começado a se defender do avanço do liberalismo
desenfreado, no exato momento em que tal avanço alcançou seu apogeu. Como
consequência, segundo Polanyi, a partir de 1870, “o mundo continuou a acreditar
no internacionalismo e na interdependência, mas agiu cada vez mais sob os
impulsos do nacionalismo e da autossuficiência” [2].
Assim, na mesma era
do padrão-ouro, da desregulamentação dos mercados financeiros e da expansão
imperialista do final do século XIX, os Estados europeus começam a praticar o
protecionismo e desenvolver formas embrionárias de sistemas de proteção social,
que alcançaram o ápice com a criação do Estado de Bem-Estar Social, após a
Segunda Guerra Mundial.
Seguindo Polanyi,
podemos também formular a hipótese de que o sistema capitalista voltou a
experimentar um grande impulso de internacionalização, liberalização e promoção
ativa dos mercados desregulados a partir dos anos 1980, e que esse “surto
internacionalizante” entrou em crise terminal com as guerras do início do
século XXI e o colapso econômico-financeiro de 2008.
Essa crise
terminal desencadeou ou acelerou um novo grande movimento de autoproteção por
parte dos Estados e economias nacionais, que começou na Rússia e na China, no
início do século XXI, alastrou-se pela periferia do sistema europeu e acabou
atingindo o próprio núcleo financeiro e anglo-americano do sistema capitalista
mundial, na hora do Brexit; e ainda mais, com a eleição de Donald Trump referendando
o “America first”.
Nessa
perspectiva, podemos também conjeturar que a onda neoliberal da América Latina
dos tempos de Menem, Fujimori, Fernando H. Cardoso e Salinas fez parte do
movimento geral de internacionalização, desregulamentação e globalização das
décadas de 1980/90, liderado pelos países anglo-saxônicos. A “virada à
esquerda” do continente, na primeira década do século XXI, com seu viés
nacional-desenvolvimentista, também fez parte desse novo e grande movimento de
autoproteção estatal, econômico e social que está em pleno curso sob a
liderança das quatro grandes potências que deverão liderar o mundo no século
XXI: EUA, China, Rússia e Índia.
Olhando para o
mundo dessa maneira, pode-se entender melhor porque o revival neoliberal
latino-americano dos últimos cinco anos durou tão pouco: ele está rigorosamente
na contramão da lógica do sistema capitalista mundial. Apesar disso, esta
reincidência neoliberal tardia pode fazer parte de uma disputa pelo futuro do
continente que ainda está em pleno curso e que pode se prolongar ainda por
muitos anos, incluindo a possibilidade de um impasse sem solução. Ou seja,
deste ponto de vista, apesar da grande vitória progressista deste outubro
vermelho, o futuro da América Latina segue incerto e dependerá muitíssimo do
que venha a se passar na Argentina, Chile e Brasil, nos próximos tempos.
No caso da
Argentina, o novo governo de Alberto Fernández enfrentará desafios de grande
proporção quase imediatos e que podem levar o país a repetir o dilema das
últimas décadas, prisioneiro de uma “gangorra” que não deslancha, ora sob o
comando dos “liberistas”, ora sob o comando dos “nacionalistas”, sem conseguir
sustentar uma estratégia de desenvolvimento que seja coerente, consistente e
duradoura.
A diferença entre
Fernández e Macri foi de 8% dos votos, e apesar do fato de que Fernández terá
maioria no Senado, não a terá no Congresso, onde será obrigado a negociar com
Macri e com os demais partidos para aprovar seus projetos. Além disso,
Fernandez começará seu governo no mês de dezembro, com um país quebrado e
endividado, com reservas que já estão quase inteiramente comprometidas com o
pagamento de dívidas de curto prazo, com altas taxas de inflação, desemprego e
miséria. E com a ameaça permanente de ver seu governo torpedeado por novas
explosões inflacionárias e crises financeiras que se repetem periodicamente na
Argentina.
Por outro lado,
no caso do Chile, as forças progressistas só poderão recuperar o governo em
2021. Até lá terão que negociar com o governo de Sebastián Piñera um programa
de reformas constitucionais capaz de enfrentar o dilema da necessidade reestatização
dos serviços de saúde, água e saneamento básico, pelo menos, além da
rediscussão do sistema de previdência social por capitalização, que fracassou
rotundamente, do ponto de vista dos aposentados. Essa negociação supõe a
aceitação conjunta do fato de que o desempenho macroeconômico chileno das duas
últimas décadas é insuficiente para dar conta das necessidades concretas dos
cidadãos comuns que não se interessam pelas cifras e querem apenas sobreviver
com um mínimo de decência e qualidade de vida.
Por fim, o futuro
brasileiro está cada vez mais difícil de prever depois dessa revolta
continental. Mesmo que o país consiga se desfazer do grupo de pessoas que se
apoderou do Estado, evitando a instalação autoritária de um regime controlado
por milicianos e narcotraficantes, mesmo assim, depois do que já fizeram, eles
deixarão, como herança funesta, um Estado e uma economia aos pedaços, e uma
sociedade dividida e moralmente destruída. O que foi construído pelos
brasileiros nos últimos 90 anos está sendo demolido e entregue,
sistematicamente, por estes senhores em meio a promessas e blefes destituídos
de qualquer base científica ou histórica.
Mesmo sem voltar
a falar da cegueira ideológica do senhor Guedes, basta ver o estrago que já foi
feito novo chanceler brasileiro à imagem internacional do país e a sua história
diplomática, induzido por delírios religiosos e milenaristas e pela decisão de
“purificar” os costumes “ocidentais e cristãos”. A sua promessa de invasão da
Venezuela virou piada internacional, o Grupo de Lima implodiu, o servilismo aos
norte-americanos abriu as portas para a formação de um novo eixo político-diplomático
no continente, articulado em torno do México e da Argentina. Ele próprio, se continuar
nesse caminho, acabará passando para a história da diplomacia brasileira como
um personagem patético: “Ernesto, o Idiota”.
Concluindo, mesmo
depois que esse grupo de marginais e fanáticos seja devolvido ao seu devido
lugar de origem, o Brasil terá que enfrentar o desafio extremamente complexo de
reconstruir o Estado, suas instituições e a própria sociabilidade, ao mesmo
tempo em que terá que definir os novos rumos de sua economia. Isso só será
possível a partir de um grande acordo civilizatório entre as forças políticas
democráticas, que tenha como ponto de partida o rechaço terminante ao projeto
atual de destruição do Estado e de submissão do país à direção econômica e ao
protetorado militar dos Estados Unidos.
*José Luís Fiori é professor de Economia Política Internacional no Instituto de Economia da UFRJ
Notas
[1]
Karl Polanyi. A grande transformação. Rio de Janeiro, Campus, 1980, p.
139.
[2] Idem, p. 142.
