Pablo Marçal e o elo perdido com o populismo paulista

Imagem: Tima Miroshnichenko
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Por JOSÉ VICTOR FERRO & VITOR HENRIQUE SANCHES

Os métodos pouco usuais de Pablo Marçal renderam recentes comparações com personalidades históricas da política paulista e nacional

1.

Após o término das eleições municipais em São Paulo, está claro o grande vencedor do pleito. Na verdade, ainda que à primeira vista pareça uma contradição, ele nem sequer foi à decisão no segundo turno. O candidato oficialista, Ricardo Nunes (MDB), conseguiu ser reeleito com folga, mas o grande vencedor do pleito paulistano foi sem dúvida o coach e influencer Pablo Marçal.

Sem horário de televisão e máquina partidária por detrás – candidatando-se pelo minúsculo e irrelevante PRTB –, Pablo Marçal conseguiu ascensão meteórica, chegando à marca de mais de 1,7 milhão de votos na capital paulista. O candidato ficou aproximadamente 56 mil votos atrás do segundo colocado no pleito, Guilherme Boulos (PSOL), diferença que o deixou fora do segundo turno. Tais logros o posicionam não somente como candidato forte para o legislativo, mas até mesmo como possível competidor à presidência da República em 2026.

Pese o aparente ineditismo de tal personalidade, os métodos pouco usuais de Pablo Marçal – para não dizer inescrupulosos e desonestos – renderam recentes comparações com personalidades históricas da política paulista e nacional. Em recente entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, Maria Hermínia Tavares relembrou que do mesmo modo que se mira atualmente com consternação e surpresa Pablo Marçal, na década de 1950 e 1960, se via a ascensão meteórica de outra figura igualmente histriônica e performática, um professor do ensino primário saído do sindicalismo católico, cujo nome – Jânio da Silva Quadros – ficaria marcado na história nacional.

Popularmente, a excentricidade e modus operandi político pouco ortodoxo de ambos lhes rendeu o rótulo de populista. De fato, na política paulista, tal alcunha não é incomum e viu muitas de suas figuras históricas caracterizadas do mesmo modo. O populismo paulista, para além do já citado Jânio Quadros, teve nomes de singular importância na história política recente – como os ex-prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta – e longínqua – como o ex-governador e interventor federal Adhemar de Barros. No entanto, tendo em vista esse histórico e a aparição de Pablo Marçal a pergunta se impõe: seria Pablo Marçal um herdeiro da tradição do populismo paulista? Apesar de sua aparente novidade, estaríamos nós apenas diante de uma manifestação atualizada de um fenômeno político já há muito conhecido e debatido?

2.

Para responder tal enigma, primeiramente, é inevitável tentar buscar o que há de comum em nomes tão diversos como os citados acima – alguns deles, como Jânio Quadros e Adhemar de Barros, adversários políticos em seu tempo. Em outras palavras, o que chamamos aqui de populismo paulista?

Para tal, parece-nos imprescindível retomar os textos de Francisco Weffort. Neles o conceito de populismo aparece como uma forma de caracterizar os impactos da entrada inédita das “massas populares” na vida política brasileira, na sequência da democratização de 1945. De forma geral, naquele momento teriam sido estabelecidas, por meio da ampliação do sufrágio, as condições institucionais que permitiram às camadas populares exercer, através do voto, uma pressão efetiva, ainda que de forma limitada e indireta, sobre as relações de poder entre as elites econômicas e políticas.

No entanto, a participação popular continuava a ser, de maneira fundamental, distante dos partidos e organizações tradicionais, como sindicatos e entidades estudantis. Diante dessa incapacidade de penetração popular dos partidos e associações, a participação das massas na política democrática se manifestava como uma relação direta entre eleitores e candidatos, o que se expressava pela emergência periódica de políticos demagogos. No caso de São Paulo, destacam-se figuras como Adhemar de Barros e Jânio Quadros, que, embora adversários políticos, deveriam ser compreendidos como manifestação de um mesmo fenômeno de base.

Embora as teses de Francisco Weffort tenham sido revistas ao longo das últimas décadas, com destaque para os trabalhos de Jorge Ferreira, Antônio Lavareda, Angela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis Filho, nos parece que o falecido professor da USP continua a nos dar algumas pistas sobre o funcionamento da política eleitoral da cidade de São Paulo.

A dizer, sua fórmula, que combina a fragilidade de um sistema partidário impermeável à participação popular e o aparecimento de figuras sui generis que estabelecem um vínculo carismático com a população, parece mais do que viva quando nos deparamos com alguém como Pablo Marçal: um político “anti-política”, candidato por um partido inexpressivo (em um terreno onde a ordem político partidária da Nova República parece já morta e enterrada), e que tem como trunfo sua conexão direta com o eleitorado.

Entretanto, as semelhanças de Pablo Marçal com os “populistas históricos” de São Paulo param por aí. Em estudos posteriores sobre o adhemarismo e o janismo, como os de Paulo Fontes e Adriano Duarte, demonstrou-se que o fenômeno populista daquele período se baseava em uma complexa rede de sociabilidades e relações interpessoais a nível local, nos vários bairros da capital paulista, manifestando-se na formação de redes de trocas de favores e benefícios.

Dessa forma, para além de uma relação construída apenas mediante o carisma dessas figuras e de sua conexão direta com as massas, o que era mais significante e garantia o sucesso de lideranças políticas como Jânio e Adhemar – e posteriormente Maluf – era a vasta e densa rede de relações estabelecida em espaços como as subdelegacias, entre os inspetores de quarteirão, nos clubes de futebol, nas organizações de dança, nas associações culturais e nas sociedades de amigos de bairro, entre outros. Posteriormente, uma vez que as eleições fossem ganhas, essas relações locais se traduziam em um acesso privilegiado ao poder e ao Estado e na retribuição do voto através do direcionamento de políticas públicas para essas regiões.

O nosso ponto é que o populismo do século XX se baseia não só em uma relação entre líderes carismáticos e público votante em um ambiente de partidos e instituições políticas frágeis, mas, antes de tudo, em uma relação que se estabelece entre a população, líder e o aparelho do Estado. Este era utilizado na formação e consolidação de redes de troca de favores e apadrinhamento político, traduzindo, na prática política, um ambiente ideológico de “fé” no Estado; ou o que o próprio Francisco Weffort chamou de “fascínio do Estado”. É impossível, dessa forma, pensar os populistas de outrora sem considerar a sua relação com a máquina pública.

Além disso, no caso paulista, o peso do estado e da administração pública não se faz somente presente na forma de se fazer política, mas também em um programa em comum de seus representantes. De fato, de Adhemar a Maluf e Pitta – com o moralismo janista como caso desviante em termos de agenda – é possível encontrar uma agenda política similar.

Primeiramente, há o que Boris Fausto chamou de “política da eficiência”, imortalizada simbolicamente no dito “rouba, mas faz” e efetivamente concretizada em grandes obras públicas. Em segundo lugar, há o assistencialismo como matriz de política social para o combate à pobreza e à desigualdade. Por último, há o chamado “populismo punitivo”, que basicamente reivindica a política de mão de ferro – imortalizada no slogan de Paulo Maluf “pôr a rota na rua” – e punições pesadas a criminosos como forma de combate a todo tipo de delito.

3.

Novamente, estes três traços apontam para a clara responsabilidade da administração pública para o bem-estar comum, o que colide frontalmente com a agenda de Pablo Marçal. Na verdade, é possível encontrar certa continuidade com este programa na última eleição municipal não em Marçal e sim em José Luiz Datena (PSDB), representante em especial do “populismo punitivo”, mas que tampouco nega a importância da função social do Estado. Do mesmo modo, Datena também criou um vínculo direto com as camadas populares por meio da presença diária em seu telejornal, mobilizando uma retórica apelativa ao galvanizar toda a indignação popular perante crimes hediondos – sintetizada em seu bordão “cadeia neles”.

Embora se valha de estratégias populistas clássicas, principalmente no nível discursivo, Pablo Marçal não poderia ser mais destoante de seus predecessores paulistas no que diz respeito à sua relação com o Estado. Ao contrário de um prefeito que tentaria servir-se do Estado para melhorar a vida do cidadão, Pablo Marçal se apresenta como o candidato daqueles que pensam que o melhor prefeito é um prefeito na prática inexistente.

Nesse ideário, cabe ao “cidadão auto-governante” (a expressão se encontra no plano de governo de Pablo Marçal) prosperar e melhorar sua condição de vida na metrópole. Nesse sentido, embora compartilhe características de estilo político com nomes como Jânio Quadros, pensamos que Pablo Marçal até pode ser considerado como um populista, mas como um tipo novo de populista, que simboliza uma ruptura com os populistas paulistas históricos e não uma continuidade.

Porém, se nossa tese está correta, resta compreender o sucesso do coach em regiões da cidade e camadas da população que tradicionalmente constituíram as bases eleitorais dos populistas de tipo tradicional, as quais no geral buscavam uma relação próxima com o Estado para melhorar suas vidas. Em relação a isso, temos a impressão de que o conceito de “classes aspiracionais”, da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, pode oferecer-nos algumas explicações nesse sentido.

O fato é que as classes populares da zona norte e leste de São Paulo, pela desigualdade ainda mais brutal prévia à certa inclusão social dos anos 2000, dependiam inevitavelmente de políticas assistencialistas e da intervenção mais direta da administração pública. Depois do “antimilagre” econômico petista, que conjugou crescimento econômico com certa distribuição de renda – diferentemente do milagre militar, como observa o economista Fernando Rugitsky –, essas classes tiveram uma melhora social palpável e, na esteira dessa progressão, aspiram individualmente a continuar melhorando.

Como indica Pinheiro-Machado, após esse momento de inclusão via consumo, essas classes passam a ver cada vez mais a propriedade privada como coroação de seu êxito. Este, por sua vez, é visto como fruto de seu esforço individual e trabalho duro. É nesse tipo de estado subjetivo que encontram terreno fértil o bolsonarismo e o próprio Pablo Marçal com sua cartilha de “empreendedorismo para prosperar” e “desbloquear a riqueza”.

À guisa de conclusão, se voltarmos novamente à cena mais lamentável da eleição deste ano – a da cadeirada –, podemos ver um gesto bastante simbólico. Em síntese, vemos o possível elo perdido do populismo paulista (Datena) tentando, numa atitude desesperada e irracional, ganhar de novo as camadas que anteriormente representaria. Ao final, seu gesto é em vão, pois essas classes, hoje não inteiramente à mercê do Estado após o breve período de inclusão dos governos petistas, já têm um representante muito mais legítimo a suas atuais condições materiais e aspirações subjetivas. Em outras palavras, a base social que sustentava o populismo paulista não é mais a mesma, dando espaço a um novo tipo de representante carismático, talhado à imagem e semelhança de suas autorrepresentações e demandas correntes.

*José Victor Ferro é mestre em estudos latino-americanos pelas universidades de Salamanca, Estocolmo e Paris 3-Sorbonne Nouvelle.

*Vitor Henrique Sanches é mestrando na Université Paris 1- Panthéon-Sorbonne.

Referências


DUARTE, Adriano Luiz; FONTES, Paulo. “O Populismo Visto da Periferia: Adhemarismo e Janismo nos Barrios da Mooca e São Miguel Paulista, 1947-1953”. Cad. AEL, v.11, n.20/21. 2007.

FAUSTO, Boris. “O populismo paulista”. Folha de São Paulo. 22 de julho de 2002. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2207200207.htm

FERREIRA, Jorge. “O nome e a coisa: o populismo na política brasileira”. in Jorge Ferreira. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

GOMES, Angela Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005 (1ª ed. 1988).

LAVAREDA, Antonio. A democracia nas urnas: o processo partidário-eleitoral brasileiro (1945-1964). Rio de Janeiro: Editora Revan, 1991.

MUSSI, Daniela; CRUZ, André Kaysel Velasco e. “Os populismos de Francisco Weffort”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. e3510409, 2020.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. “O que Lula deu eBolsonaro abocanhou”. El Pais Brasil. 21 de junho de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-06-21/o-que-lula-deu-e-bolsonaro-abocanhou.html

REIS FILHO, Daniel Aarão. (2001), “O colapso do colapso do populismo”, in Jorge Ferreira. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

RUGITSKY, Fernando. “Milagre, miragem, antimilagre: a economia política dos governos Lula e as raízes da crise atual”. Revista Fevereiro, v. 9, p. 40-50, 2016.

WEFFORT, Francisco. O Populismo na política Brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 2003.


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