Por JAIME TROIANO*
Bets, alimentos ultraprocessados e igrejas pentecostais: as ‘redes de proteção’ precárias que sustentam os trapezistas sociais do Brasil em meio ao abismo da desigualdade
Esse verso da inspirada canção Beatriz (Chico Buarque/Edu Lobo) evoca a vida de uma trapezista, sempre no limite do risco. Num outro cenário muito menos poético, lembrei-me dos segmentos sociais que no Brasil que também vivem em “trapézios” num cenário de risco que nós todos conhecemos. Eu me lembro dos circos que vi na minha vida e das redes de proteção para os trapezistas. Não eliminava o susto, mas garantia a sobrevivência dos artistas.
Para esses segmentos de pessoas, as redes sociais e públicas de amparo não são tão seguras e nem sempre estão lá embaixo na hora da queda. As estratégias em que eles se apoiam para evitar o pior, na falta de outras mais normais em sociedades mais desenvolvidas, vão sendo encontradas e incorporadas às suas vidas de uma forma ou de outra. E mesmo sem ter certeza de que vão funcionar mesmo, caso no salto eles não alcancem o outro trapézio e despenquem.
Eu tenho visto, atualmente, três “redes” com tramas muito diferentes, que têm cumprido esse papel. Embora haja muitas outras, essas três estão na ordem dia. Longe de mim achar que recorrer a essas “redes” é fruto de mentalidades ingênuas e imaturas, como poderia ser visto por muitos de nós que estamos sentados em segurança na arquibancada do “circo”. Ninguém tem o direito de criticar a decisão de quem recorre, na falta de outras, a estratégias que criam alguma esperança adicional de proteção, sobrevivência e de, em última instância, de salvação.
Que “redes” são essas?
1.
A primeira delas tem a ver com a compulsão pelas bets. Não acontece somente aqui, mas é o nosso quadro social que estamos olhando. Os segmentos D e E da população estão comprometendo uma parcela de seu orçamento mirando na perspectiva de uma rápida, e quase mágica, recuperação ou de crescimento do seu poder de consumo e de alívio nas condições de vida.
Por outro lado, a economista Ione Amorim, do Instituto de Defesa nos alerta o quanto essa “rede” é insegura e cheia de tramas cheia de furos: “Hoje a gente já tem uma realidade de suicídio, de destruição de lares, de endividamento, de pessoas que já perderam o emprego porque já envolveram tudo que tinham. De doenças mentais extremamente graves por conta dessas dependências, que leva a outra, quer dizer: a pessoa se endividou, e se perdeu, vai do jogo para o álcool, do álcool para as drogas e para o suicídio”.
Nada disso, porém, faz com que eu ignore a decisão dessas pessoas de usar um dinheiro que hoje, em média, deve girar em torno dos 3% do orçamento doméstico, em apostas. Sabemos como é precário o nível de instrução e de educação financeira delas, mas o desejo que bate à porta, movido por necessidades pungentes, torna a matemática das bets um evento estatisticamente menos improvável.
Porque sempre há alguém cujo cunhado do primo tem um vizinho que mora ao lado de um felizardo ganhador. E por mais longa que seja essa cadeia de contatos, o que fica é a límpida sensação do porque eu não posso ganhar também. Contra as investidas críticas de alguns grupos sociais mais abastados e certos perfis intelectuais, vale a cutucada do Roberto DaMatta: “Descobrimos assustados que o povo joga nas “bets”…Como ousam entrar na “jogatina” quando deveriam fazer como nós – aristocratas –, ou seja, especular com a ajuda dos “especialistas”? (O Estado de S. Paulo, 8/10/2024).
Lógico que, até onde posso entender, processos regulatórios mais rígidos para inibir a presença incontrolável de bets serão aprovados, e são bem vindos. Mas, enquanto isso, não podemos deixar de, pelo menos, aceitar que se trata de uma “rede”, ainda mais quando a queda pode ser iminente.
A segunda “rede” tem a ver com a vontade ou a necessidade de recuperar o tempo perdido em prazeres adiados. Opera de outra maneira, mas é tão tentadora como a primeira. Ela é doce e enche a barriga. É uma compulsão alimentar abastecida pela oferta quase infinita de opções açucaradas e ultra processadas e que muitas famílias deixaram para comprar quando fosse possível.
Li recentemente o seguinte: “As grandes empresas de alimentos, ao que parece, têm uma queda por doces. Em 14 de agosto, a Mars, uma gigante de alimentos embalados mais conhecida por seus produtos achocolatados, anunciou que iria devorar a Kellanova, que fabrica Pringles e Pop-Tarts, por US$ 36 bilhões. Ela não é a única empresa apostando alto em guloseimas calóricas”.
É uma aliança que funciona muito bem: de um lado o que essas organizações colocam nas gôndolas de supermercados. De outro, as classes sociais que sempre viveram restrições alimentares mais agudas e que agora se lambuzam com o prazer desses alimentos, numa tentativa de recuperar o tempo perdido. É como se a perspectiva de haver amanhã fosse incerta.
Por mais que a conta acabe chegando, com o aumento do IMC (índice de massa corporal), dos índices de colesterol, doenças coronárias, diabete, quem pode condenar essa gente pela conquista do prazer imediato, no mais das vezes protelado? A doçura, a sensação de estar alimentado, ainda que não haja garantia de que vá se repetir sempre, são “piruetas e saltos gastronômicos arriscados”, gordurosos e açucarados, ainda que por alguns momentos. Portanto, aí está mais uma “rede” que acolhe, alenta essas pessoas por alguns momentos de prazer, ainda que passageiros.
A primeira “rede” alimenta a esperança da sorte grande, a segunda a indulgência e a reprodução das condições do corpo.
2.
A terceira é mais radical, porque não conta com o bafejo da sorte nas apostas e nem com a fugaz sensação de prazer do alimento. Estou falando dos empreendimentos pentecostais e neopentecostais. Segundo o IPEA, 52% dos estabelecimentos religiosos no Brasil encaixam-se aí, são 65.000 aproximadamente.
São números que, aparentemente, surpreendem. Mas é uma surpresa apenas aparente. Enfim, estamos diante de uma “rede” que ampara uma parcela muito grande dos segmentos D e E. Ela está comprometida com a perspectiva de mudança das condições de vida hoje, não uma promessa longínqua.
Quando alguém sobe ao palco e ouve do pastor o pedido “Dona Márcia, conte a graça que você recebeu, irmã!”, o testemunho é eloquente e categórico: “Pastor, depois de frequentar este templo, meu marido parou de beber e conseguiu emprego”. E não são palavras com um sentido apenas publicitário do próprio pastor. São evidências autênticas de que foi esta “rede” que acolheu, protegeu e impediu que a família despencasse.
Como tratar esses episódios como se fossem apenas fruto da ingenuidade e da visão primária dessas pessoas? Talvez houvesse outros caminhos para a Dona Márcia equilibrar sua vida familiar, mas não estão disponíveis hoje (na extensão necessária), para quase todas as Donas Márcias no Brasil, infelizmente. Não tenho qualquer conexão pessoal com uma ou outra vertente religiosa. Mas assim como pensadores muito mais preparados do que eu e que acompanham os movimentos religiosos no país, sei o quanto a vida da Dona Márcia seria muito mais imprevisível e desprotegida sem mais esse vínculo confessional.
A expectativa da aposta vitoriosa, a indulgência da alimentação e a perspectiva de receber uma graça mantém qualquer “trapezista” vivo e pronto para o dia seguinte, enquanto outras formas de amparo social não puderem acolhê-los. E é essa “clandestina esperança” que os sustenta, na reprodução da sua vida cotidiana.
*Jaime Troiano é engenheiro químico pela FEI e sociólogo pela USP. Autor, entre outros livros, de As marcas no divã (Editora Globo). [https://amzn.to/3H5cQLK]
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