Parasita: o fétido odor do subsolo

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Por Lucas Fiaschetti Estevez*

O filme de Joo-ho Bong mostra desigualdades brutais que extrapolam as particularidades nacionais sul-coreanas.

1.

Desde que ganhou por unanimidade a Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, Parasita, o novo filme de Joo-ho Bong, vem ganhando os holofotes da crítica e dos espectadores de cinema ao redor do mundo. Já foi escolhido como candidato da Coréia do Sul para a próxima premiação do Oscar, na categoria de Melhor Filme Internacional. Em terras brasileiras, o filme foi exibido pela primeira vez no mês passado em disputadas sessões da 43º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na qual angariou o prêmio de Melhor Filme pelo público. Agora, está em cartaz em alguns cinemas do país.

Depois do peso e da ousadia de Bacurau, a película de Joo-ho Bong se firma como mais um exemplar de um cinema disruptivo, que constrói seu enredo a partir de um estado de coisas que encontrou seus limites e expõe sem temer suas contradições. Nesse sentido, é índice cultural do estado irreconciliável e insustentável do atual modus operandi que se estabeleceu nesta era de tão profundo mal-estar moral, econômico e social.

O filme acompanha a história da pobre família Kim, que habita o subsolo de um fétido e mal estruturado subúrbio urbano. Em uma casa de minúsculas proporções, os dois irmãos, Ki-woo e Ki-jung, têm de disputar o almejado Wi-Fi dos vizinhos para se conectar à internet – sequência genial que abre o filme. Ambos não conseguiram acesso ao concorrido ensino universitário do país, estando a mercê de um futuro incerto, desqualificado e que, a princípio, irá reproduzir a pobreza de seus pais.

Estes, o senhor Kim Ki-taek e a senhora Moon-gwang, desempregados, vivem precariamente com o dinheiro que conseguem juntar das caixas de pizza que montam repetidamente para restaurantes locais, além de outros bicos dos quais tentam tirar o sustento. O filme, desde o início, nos fornece um retrato fiel da crescente precarização dos trabalhadores, jogados à informalidade e ao subemprego.

As perspectivas de futuro da família passam a mudar quando recebem a visita de Min, um jovem universitário amigo de Ki-woo. Como vai viajar, Min pede ao amigo que o substitua durante sua ausência como professor de inglês a uma jovem de família abastada. Falsificando a documentação necessária para se passar como universitário, Ki-woo consegue o trabalho temporário na mansão do senhor Park e sua família. De uma recomendação à outra, filha, pai e mãe também passam a trabalhar na casa, cada um cumprindo uma função distinta, de motorista a governanta. As famílias, agora reunidas sob o mesmo teto através de uma relação desigual entre patrões e empregados, passam a dilacerar a distância que os separava. No que tange às desigualdades brutais que o filme nos mostra, sua história se desprende das particularidades nacionais sul-coreanas e serve como trama universal de nosso tempo.

2.

Parasita é um testemunho daqueles que vivem nos subsolos, mas almejam ascender à superfície, seja por qual caminho for. Os seus sonhos e objetivos se encontram sob o modelo de vida dos abastados que vivem sob a luz.  É através dessa chave que o filme pode ser interpretado: um relato do que ocorre quando os habitantes do subsolo emergem à superfície e não querem mais voltar à sua fétida morada. Nesse sentido, o próprio código moral que provêm da profundeza e anima as personagens é aquele que coloca em xeque o mundo que os cobre, a saber, a vontade de poder usufruir de uma boa vida. Ao assistir esse enredo do encontro dos excluídos da convivência com os bem-aventurados moradores da solar superfície, lembramos das Memórias do subsolo, de Dostoiévski:

Mas é exatamente neste frígido e repugnante semidesespero, nesta semicrença, neste consciente enterrar-se vivo, por aflição, no subsolo, por quarenta anos; nesta situação intransponível criada com esforço e, apesar de tudo, um tanto duvidosa, em que toda esta peçonha dos desejos insatisfeitos que penetraram no interior do ser; em toda essa febre das vacilações, das decisões tomadas para sempre e dos arrependimentos que tornam a surgir um instante depois, em tudo isto é que consiste o sumo daquele estranho prazer de que falei [1].

Esse prazer em se constituir como morador do subsolo só é possível diante da falta de escolhas, situação na qual a aceitação pareceria ser a melhor saída. Um prazer ignóbil, até incompreensível. Porém, é em detrimento deste “enterrar-se vivo” que o filme subverte a ditadura da reconciliação e caminha ao conflito entre as classes, colocando-as frente a frente até o ponto em que sobe à superfície sua completa incompatibilidade.

É por conta desse querer desenterrar-se que todo o enredo é construído, desde a subida da família Kim ao bairro nobre da cidade, saindo do porão em que habitavam em direção à casa modernista, cheia de linhas planas e decoração minimalista do Sr. Park; seja na direção contrária, quando são novamente vítimas do “frígido e repugnante semidesespero” e têm de voltar, sob uma forte chuva, à sua morada do subsolo: uma sequência de tomadas nas quais desesperadamente as personagens descem escadas, ladeiras e tortuosas vielas a fim de se deparar com a tragédia que se abateu em seus lares.

Daí em diante, o filme caminha para o ápice do conflito. Sob o clima de uma falsa calmaria, a bolha de sabão estoura a partir da tomada de decisão de um daqueles que viviam escondidos no porão por tanto tempo. Mais uma vez, a fala do silenciado é mais alta e potente do que qualquer outra, funcionando como uma espécie de liberação de uma renúncia instintual a tanto tempo represada. Quando é dada a chance àqueles que nunca tiveram voz nem lugar sob o sol, o filme revela a pura artificialidade da atual ordem do mundo. Nos é dado a revisitar o tão falado Homo homini lúpus:

E aliás, quereis saber uma coisa? Estou certo de que a nossa gente do subsolo deve ser mantida à rédea curta. Uma pessoa assim é capaz de ficar sentada em silêncio durante quarenta anos, mas, quando abre uma passagem e sai para a luz, fica falando, falando, falando… [2]

3.

O encontro entre o subsolo e a superfície aparece como uma mácula: a metáfora do “cheiro”. O cheiro dos “outros”, pobres, é tido como o motivador do “nojo” e da “aversão” de classe. Construindo uma tensão crescente através de suas falas, os personagens da família Park demarcam um discurso que traça uma clara distinção entre “nós” e “eles”: limpeza versus imundície, ordem versus caos, corpos e linguajares adestrados versus espontaneidade e desleixo.

A confrontação de tais dicotomias vai aumentando a ponto de uma das personagens sintetizar a questão com a preciosa fala: “O dinheiro é como um ferro de passar roupas: todas as dobras são passadas”. Não há desordem, fedor ou perca do controle entre os ricos, gentis e bem-apessoados. Freud, em O mal-estar da civilização, já apontava como a beleza, a limpeza e a ordem são as exigências culturais da própria noção do progresso humano. Em suas palavras, acabamos por colocar “o uso do sabão como medida direta do grau da civilização” [3].

O enredo, porém, soube muito bem mostrar como todo esse universo de valores é pura artificialidade, mero mecanismo de reprodução que repõe constantemente o ódio de classe e estabelece o abismo que separa tais indivíduos. Embora os “outros” sejam aceitos como empregados, o cheiro “das pessoas do metrô” é indistinguível. Não há banho que os faça perder os traços de sua origem. É sob tal falsidade que o filme caminha à barbárie final.

Seu clímax é a própria quebra das aparências: por um momento, o dilaceramento entre as classes eclode como pura violência. Nestes termos, o filme ultrapassa a realidade. E justamente por isso, por ecoar esse tom “surrealista”, é que se torna tão real. É por meio de tal dose de absurdo que a artificialidade da própria realidade é colocada a nu.

4.

Embora tangencie o absurdo, o filme acaba em tom de resignação. Temos a impressão que, no final das contas, era melhor que a família Kim estivesse se mantido no subsolo. Esse retorno impotente dos excluídos à sua origem é a prova do fiasco de sua estratégia em acender à superfície: uma hora ou outra, a farsa se revelaria. Tal resolução de roteiro é a própria realização do que o Sr. Kim, em determinado momento do filme, revela ao filho: “quando fazemos planos, eles não se realizam”. O que fica como incógnita é como então traçar estratégias de ação sem planos a vista. Talvez estejamos nos enganando em relação ao que significa traçar um “plano”.

As marcas de tal resignação são colocadas pelo diretor, de forma intencional ou não, na própria ópera de Händel escolhida como trilha sonora: Rodelinda, regina de’ Longobardi. O seu libreto, recheado de reis e nobres disputando a herança do trono, termina sob o contexto da resignação e da recusa ao poder: Grimoaldo, um daqueles que tentou usurpar o trono, acaba por desistir de sua obsessão e retorna, sem coroa, ao seu próprio ducado, junto de sua esposa.

O retorno ao subúrbio fétido, embora pareça indicar conciliação, mantêm o problema colocado de forma inconclusa, tão conflituoso e disruptivo como antes: de volta ao subsolo, o que mais será necessário acontecer para que o sol alcance a todos? É aí que saímos da dimensão estética e entramos no jogo político. Nas palavras de Marcuse, “… toda a arte é ‘l’art pour l’art’ apenas na medida em que a forma estética revela dimensões da realidade interditas e reprimidas, aspectos da emancipação [4].  

*Lucas Fiaschetti Estevez é pós-graduando no departamento de sociologia da USP.

Notas

[1] Fiódor Doistoiévski. Memórias do subsolo. São Paulo, Editora 34, 2009, p.24.

[2] Idem, p. 50.

[3] Sigmund Freud. O mal-estar na civilização. São Paulo, Penguin Classics. Companhia das Letras, 2011, p.38.

[4] Herbert Marcuse. A dimensão estética. Lisboa, Edições 70, 2016, p.26.

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