a terra é redonda

Parasita: o fim do “sonho coreano”

Pela primeira vez desde a década de 1950, a sociedade sul-coreana se polariza socialmente, aumentando a percepção de que as portas abertas da ascensão social estão a se fechar e intensificando a “luta de classes”

Por Ricardo Pagliuso Regatieri*

A
arte não é mera reprodução do real, mas a boa produção artística capta e
transfigura sinais da realidade. Compreendido desde essa perspectiva, Parasita, filme do diretor sul-coreano
Bong Joon-ho (em coreano, o sobrenome, Bong, vem antes do nome, Joon-ho)
ilumina aspectos do presente histórico da Coreia do Sul. O filme de Bong, que
antes havia dirigido, entre outros, O
hospedeiro
(2006), Snowpiercer
(2013) e Okja (2017), ganhou a Palma
de Ouro em Cannes, com decisão unânime do júri.

Desde
o armistício que interrompeu, sem nunca formalmente encerrar, a Guerra da
Coreia em 1953, mas especialmente a partir da década de 1960 com o governo
ditatorial de Park Chung-hee, a parte sul da península que foi dividida em duas
levou a cabo um vertiginoso processo de modernização em vista do qual o
sociólogo sul-coreano Chang Kyung-sup forjou o conceito de “modernidade
comprimida”[1].
Dos processos de modernização autoritária da segunda metade do século XX, o
sul-coreano se tornou o mais célebre e provavelmente o mais celebrado.

O
case de sucesso sul-coreano é por
vezes tomado como prova de que a mobilidade entre periferia e centro do
capitalismo global é sim possível, o que desmentiria abordagens como a teoria
da dependência de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto e a teoria do
sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. Nessa interpretação, o contexto peculiar
que possibilitou o desenvolvimento sul-coreano não é reconstruído.

Com
efeito, esse desenvolvimento só teve lugar em virtude de, após 1953, a Coreia
do Sul se ter tornado um pequeno bastião do capitalismo norte-americano face a
um território contínuo de países socialistas que ia da União Soviética à Coreia
do Norte, passando pela China. No cenário da Guerra Fria, a Coreia do Sul foi
beneficiada por investimentos de capital norte-americano, acesso privilegiado a
mercados e pela articulação de seu desenvolvimento à reconstrução do Japão
pelos norte-americanos após a Segunda Guerra.

A
“modernização retardatária”[2]
sul-coreana e o salto do país de rural e pobre a produtor dos celulares Samsung
que hoje levamos no bolso são mal compreendidos se não se leva em conta esse
cenário geopolítico dentro do qual o Estado autoritário sul-coreano conduziu
sua política de incentivo àqueles que deveriam se tornar os “campeões
nacionais” – os grandes conglomerados de empresas familiares chamados de chaebol, dos quais a Samsung, LG e
Hyundai são exemplos. A promiscuidade entre a esfera pública e a esfera privada
embutida nesse modelo levou o sociólogo sul-coreano Oh Ingyu a chamá-lo de “Estado
mafioso”[3].

De
todo modo, a Coreia do Sul logrou em grande medida realizar, na metade final do
século 20 e início do século 21, aquilo que Aníbal Quijano aponta como
fundamental para um processo de nation-building
bem sucedido: a “homogeneização” social.[4]
Diferenças e disparidades de classe não desapareceram, mas nesses quase setenta
anos as massas pobres rurais de um país destruído passaram por um processo de
integração social e de urbanização que transformou e elevou seu padrão de vida.
Esse processo foi levado a cabo com base numa arregimentação e numa exploração
brutais da classe trabalhadora pelo “capitalismo de caserna” sul-coreano[5].

Esse
é o contexto no qual, na última década, a indústria cultural sul-coreana passou
a exportar um gênero que vem fazendo sucesso em diversos países, entre eles o
Brasil: o K-Pop ou pop sul-coreano. O universo do K-Pop – cujos produtos
principais são clipes musicais, séries e cosméticos (cosméticos e cirurgias
plásticas são manias nacionais sul-coreanas, sendo a Coreia do Sul o país que
tem o mais alto índice de cirurgias estéticas per capita) – mobiliza, como
elementos centrais, o consumo, a tecnologia e o glamour, além de um romantismo
açucarado.

Referindo-nos
ao American dream do século XX,
Constanza Jorquera e eu propusemos a ideia de que, nesse início do século 21, o
imaginário do K-Pop representa aquilo que chamamos de “sonho coreano”[6]. Essencialmente,
o sonho coreano – que tem levado jovens de diversos países da periferia do
capitalismo a aprender coreano, querer morar em Seul e desejar ter um(a)
namorado(a) sul-coreano(a)[7] – se
constrói em torno do consumo e da ascensão social.

Ele
é a tradução feliz e festiva do “milagre do Rio Han”[8], e
nele habitam tecnologia, beleza estética e uma imensa coleção de mercadorias em
movimento. O sonho coreano, que é ativamente promovido pelo governo sul-coreano
no plano internacional como instrumento de soft
power
, expressa também uma consciência social enraizada na sociedade
sul-coreana: a de que, do mesmo modo que o fez o país, também as famílias e os
indivíduos podem “chegar lá”. Os meios para isso são o trabalho duro e um
diploma universitário.

Mas
é possível que, antes mesmo de se ossificar, o sonho coreano tenha chegado ao
fim. Se o K-pop veicula e difunde o sonho coreano, Parasita é uma representação de seu epílogo. Se o
desenvolvimentismo sul-coreano de fato levou a cabo um processo de integração
social, os extremos em termos de classe e renda, nunca deixaram de existir.

Ainda
assim, a promessa que animava o sonho coreano era a ascensão social, ao menos
para a geração seguinte – pais trabalhadores e/ou pobres que, conseguindo
enviar seus filhos à escola e depois à universidade, garantiriam para eles um
futuro mais próspero. Nos últimos dez anos, porém, justamente ao passo em que o
K-Pop era difundido internacionalmente e disseminava o sonho coreano para os
quatro cantos do mundo, os sul-coreanos têm tido crescentemente a percepção de
que, no plano doméstico, as portas abertas da ascensão social estão a se
fechar.

Estudo
realizado a cada dois anos pela Statistics
Korea
entre pessoas com 19 anos ou mais mostra que, em 2009, 48,3% delas
acreditavam que a geração de seus filhos teria altas chances de mobilidade
social, enquanto em 2019 apenas 28,9% acreditavam nisso[9]. O
governo de Moon Jae-in, político “progressista” eleito na sequência do
impeachment da presidente Park Geun-hye (filha do ditador Park Chung-hee) em
2017, não foi capaz de cumprir suas promessas de diminuir o fosso social; pelo
contrário, desde o início de seu governo esse se aprofundou ainda mais.

Pela
primeira vez desde a década de 1950, ao invés de convergir para o centro, a
sociedade sul-coreana se polariza socialmente. Na linguagem cotidiana, criou-se
inclusive uma categorização que expressa essa polarização: a oposição entre os
“colheres de ouro” (금수저 ou geumsujeo) e os “colheres
sujas” (흙수저 ou heuksujeo). Os primeiros são a elite
privilegiada do país, que conta com altos rendimentos e propriedades, bem como
acesso às melhores universidades da Coreia do Sul e dos Estados Unidos. Os
últimos caracterizam o estrato mais baixo da sociedade sul-coreana, para os quais
não resta mais nada do que levar sua própria pele ao mercado precário e
sobreviver com os baixos rendimentos daí obtidos.

Parasita retrata precisamente
a “luta de classes” entre esses dois extremos. Se, de fato, as chances de
ascensão social se esfumaram no ar, em lugar do trabalho duro e honesto, restam
a desonestidade e a farsa como modo de vida. Quando vemos o primeiro movimento
de Kim Ki-woo, pensamos ser ele o parasita do título do filme. Quando toda a
família Kim se envolve na impostura, parece-nos que se trata de uma família de
parasitas. Quando descobrimos o segredo guardado pela antiga empregada e seu
modo de vida sumamente parasitário, temos certeza que encontramos o
desfrutador.

Mas,
nas apoteóticas cenas da festa na parte final do filme, suspeitamos que
parasita pode ser uma referência ao Sr. Park e ao estilo de vida de sua família
e dos amigos que comparecem à garden
party
postiçamente ocidental[10]
organizada de última hora, de forma “casual”, por sua esposa. Os acontecimentos
da festa sugerem que o pacto de classes nacional-desenvolvimentista sul-coreano
chegou a seu final, com o sonho coreano se transformando, a passos largos, em pesadelo.

* Ricardo Pagliuso Regatieri é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia

Notas


[1]
Chang, Kyung-sup. South Korea under
Compressed Modernity: Familial Political Economy in Transition
. New York: Routledge, 2010.

[2] Kurz, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do
socialismo de caserna à crise da economia mundial
. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1999.

[3] Oh, Ingyu and Varcin, Recep. “The
mafioso state: state-led market bypassing in South Korea and Turkey”. Third World Quarterly 23 (4):
711-723, 2002.

[4] Quijano, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América
Latina”. In: Quijano, Aníbal. Cuestiones
y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la
colonialidad/descolonialidad del poder
. Buenos Aires: CLACSO, 2014, p.
807 e segs.

[5] Em O colapso da modernização, Kurz nomeia o sistema soviético e os
regimes a ele vinculados, como a Coreia do Norte, de “socialismo de caserna”.
Penso que a modernização retardatária sul-coreana oferece um exemplo
prototípico do que, nessa mesma linha, poderia ser chamado de “capitalismo de
caserna”. Diferentemente do vizinho do norte, a modernização autoritária no sul
não foi movida por nenhum espírito “socialista”; muito pelo contrário, buscou
sempre ativamente se contrapor a ele.

[6]
Regatieri, Ricardo Pagliuso. “Development and dream: on the dynamics of K-Pop
in Brazil”. Development and Society 46 (2): 505-522, 2017.

[7] Para uma análise comparativa do
fenômeno do K-Pop em cinco países latino-americanos (Argentina, Brasil, Chile,
México e Peru), ver: Regatieri, Ricardo Pagliuso. “The
Sweet Scent of Development: Korean Pop Culture in Latin America”. In: Korea
Institute for International Economic Policy. Studies in Comprehensive Regional Strategies Collected Papers
(International Edition)
. Seoul:
Korea Institute for International Economic Policy, 2016.

[8] Expressão que se refere ao
acelerado crescimento econômico sul-coreano, especialmente a partir da década
de 1960, aludindo ao rio que corta Seul.

[9]
The Korea Times. “Koreans become more skeptical about upward social mobility”. 25/11/2019. Extraído de: https://www.koreatimes.co.kr/www/biz/2019/11/367_279308.html

[10] A adoração dos Park pelo Ocidente
se faz presente de cabo a rabo em Parasita:
Ki-woo entra na vida da família como tutor particular de inglês da filha –
entre a classe média e a elite sul-coreanas, o aprendizado de inglês é uma
obsessão que as leva a gastar rios de dinheiro, preferencialmente contratando
professores norte-americanos –, a cabaninha do filho veio dos EUA, assim como
os petiscos do cachorro, etc.

Parasita: o fim do “sonho coreano” – 28/12/2019 – 1/1
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