Pardos-indígenas – dilemas das cotas raciais

Imagem: Pablo Malafaia
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Por JOÃO VICTOR*

Os pardos-indígenas são merecedores de um novo olhar que contemple sua história e sua legitimidade enquanto categoria própria no contexto do debate racial brasileiro

1.

Recentemente, têm surgido muitos casos de pessoas pardas que foram indeferidas pelas comissões de heteroidentificação. Muitos deles causaram polêmica por envolverem indivíduos com clara ascendência indígena e pessoas não brancas. Essa questão é complexa, pois envolve tanto o direito à autodeclaração quanto a forma como a categoria parda é entendida socialmente, além dos critérios e avaliações adotados pelas comissões de heteroidentificação, que se baseiam em outras formas de leitura racial.

Diante desse cenário, surge um debate importante: as comissões de cotas são limitadas em suas avaliações de leitura racial? Os pardos-indígenas (ou seja, pessoas de origem indígena, mas que não se reconhecem como tal, apenas como “descendentes”) deveriam se autodeclarar como pardos nessa situação?

Para entender essa questão de forma mais abrangente, é fundamental considerar sua dimensão histórica. No Brasil, independentemente da região, existe uma grande população mestiça. No entanto, a mestiçagem brasileira nunca foi um fenômeno homogêneo e, devido a isso, podemos encontrar diferentes perfis de mestiçagem mais comuns em determinadas regiões do que em outras.

Essa questão foi bem explorada anteriormente na historiografia brasileira por autores como Darcy Ribeiro. Mas, em razão de um certo “estrangeirismo” no debate racial contemporâneo, essa questão acabou sendo obscurecida e substituída por abordagens importadas de realidades estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos. Um exemplo disso são os termos utilizados, muitos dos quais não têm lastro na história brasileira: “colorismo” (teoria norte-americana), “negro de pele clara” – tradução literal de light-skinned black.

Mas, afinal, por que é importante considerar a dimensão histórica nesse debate? A resposta está no fato de que os entraves burocráticos atuais muitas vezes ignoram aspectos fundamentais da história indígena no Brasil. Quando os pardos-indígenas tentam acesso às cotas na categoria parda, são excluídos por não serem considerados negros pelas comissões, que tendem a associar a categoria parda apenas à fenotipagem afrodescendente.

Ao mesmo tempo, esses sujeitos tampouco conseguem acessar as cotas indígenas, já que, na maioria dos editais, exige-se uma declaração de pertencimento a uma comunidade ou grupo indígena, assinada por alguma liderança indígena. Nesse sentido, recorrer a uma perspectiva histórica pode ser a chave para entender o motivo de tantos pardos-indígenas se declararem como pardos, assim como compreender por que a exigência de um certificado étnico é limitada para atender a essas populações.

2.

Durante o início da colonização portuguesa no Brasil, houve intensa interação entre diferentes grupos vindos da Europa, da África e das sociedades nativas. Essas interações levaram ao surgimento de novas subculturas com diferentes variantes socioculturais.

Os grupos indígenas já “pacificados” e convertidos nas missões religiosas eram reagrupados com nativos de diferentes aldeias e, portanto, “desetnicizados” de suas etnias originárias, dando origem a um tipo de “novo índio” –que era chamado de caboclo ou tapuio.

Carlos de Araújo Moreira Neto, em seu estudo Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850), nos explica que a singularidade cultural do tapuio consistia em sua perda de identidade étnica, ao mesmo tempo que era racialmente indígena. Essa identidade foi substituída por uma cultura compósita – uma espécie de cultura de contato, desenvolvida e promovida pelas missões religiosas.

Trata-se de uma cultura que, em geral, não podia ser diretamente associada a nenhuma etnia indígena específica, embora incorporasse, reinterpretasse e herdasse elementos de diversas culturas indígenas, bem como da cultura europeia.

Esses processos levaram à formação de uma nova amálgama sociocultural, genericamente “indígena”, mas sem especificidade étnica. Em outras palavras: as pessoas foram deixando de ser “tapajós”, “pacajás”, “barés”, “cuicuros”, “karajás” etc., para se tornarem uma massa amalgamada de “índios genéricos”. Embora esse fenômeno tenha sido mais forte no Norte, também ocorreram situações semelhantes em outras regiões do país. Pessoas de de origem indígena eram frequentemente referidas como “caboclas”, termo que posteriormente passou a ser sinônimo de indígena e de seus descendentes. 

No final do século XIX, especialmente durante o ciclo da borracha, intensificaram-se os processos de miscigenação entre os migrantes de outras regiões do país, em especial do Nordeste (que em muitos casos, também possuíam ancestralidade indígena e negra) com os indígenas nortistas, os tapuios. Naquele momento histórico os últimos já haviam sofrido uma drástica redução populacional devido a epidemias de sarampo e à violenta repressão durante a Cabanagem, que resultou em um verdadeiro massacre. Como consequência, os tapuios gradualmente deixaram de existir como uma categoria social distinta. Contudo, seus descendentes, sobretudo resultantes da união com migrantes nordestinos, configuraram o amazonense típico atual.

Devido a isso, podemos encontrar pessoas com clara ascendência indígena, mas que não sabem exatamente a qual etnia pertenciam seus antepassados. Em estados como Amazonas e Pará, onde vive grande parte da população parda-indígena, é comum que esses indivíduos se autodeclarem pardos nos censos estatísticos, baseando-se em sua cor de pele.

Para a população amazônica, o “pardo” não é o negro, mas principalmente o mestiço de origem indígena. Isso ajuda a explicar por que esses estados apresentam uma maioria de pessoas pardas em suas estatísticas populacionais, mesmo que a presença africana não tenha sido tão expressiva quanto em alguns estados do Sudeste e Nordeste.

3.

E esse é um ponto importante. Assim como o negro brasileiro perdeu sua identidade étnica originária da África durante a diáspora, deixando de ser identificados como bacongos, ovimbundos, iorubás, fons, entre outros, para ser amalgamados em uma identidade negra genérica – um fenômeno semelhante ocorreu entre as populações nativas, que também perderam suas filiações étnicas.

Se os descendentes de africanos não precisam saber exatamente sua etnia de origem para acessar políticas afirmativas, seria justo exigir o mesmo nível de comprovação dos pardos com ancestralidade indígena?

Outra questão relevante é a recorrente divergência entre a definição de pardo adotada pelo IBGE, que inclui pessoas com miscigenação racial, ou seja, uma mistura de diferentes grupos ou cores (branca, preta e indígena) e o critério utilizado por comissões avaliadoras, que estabelecem seus parâmetros com base exclusivamente na ancestralidade africana. Essa falta de alinhamento entre as partes faz com que as políticas públicas não atendam adequadamente os pardos-indígena.

Assim, ao se impor uma classificação sem ressonância com a definição do IBGE, com a cultura da região amazônica e com o que a população pensa de si mesma, pode acabar resultando em formas de exclusão e invisibilidade. Embora a Amazônia represente um caso emblemático, é importante lembrar que a mestiçagem e a ancestralidade indígena estão presentes em todo o território nacional.

Portanto, os pardos-indígenas são merecedores de um novo olhar que contemple sua história e sua legitimidade enquanto categoria própria no contexto do debate racial brasileiro. É verdade que a categoria parda é alvo de disputas e ambiguidades tanto conceituais quanto institucionais. No entanto, ao destrinchar como essa categoria é entendida em diferentes contextos, é possível propor políticas públicas mais justas e sensíveis a complexidade da questão racial brasileira em nível macro.

*João Victor é licenciado em história e pós-graduado em história da arte.

Referências


ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Cultura popular e sociedade regional no Maranhão do século XIX. Revista de Políticas Públicas, v. 3, n. 1, 1999.

MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia, de maioria a minoria (1750-1850). 1988.

RAMOS, Arthur. Introdução à antropologia brasileira: v. As culturas européias e os contactos raciais e culturais. 1947.


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