a terra é redonda

Patologias do social

Por Matheus
Capovilla Romanetto*

Comentário
do livro
Patologias do social: arqueologias do
sofrimento psíquico, organizado por
Vladimir Safatle; Nelson da Silva Junior e Christian Dunker.

Introdução

Há uma dificuldade peculiar em resenhar um
livro escrito — como nos lembra um dos organizadores — por “mais de 50 alunos
de mestrado, doutorado e pós-doutorado”, além dos três professores que
coordenaram a pesquisa. Se a obra é tomada imediatamente em seu conjunto, à
revelia dos autores e autoras, arriscamos perder de vista as eventuais
contradições e diferenças internas entre os capítulos, e mesmo negligenciar a
singularidade dos vários projetos intelectuais e de vida que vêm aqui ao
encontro uns dos outros.

Por outro lado, se nos prendemos à
preocupação em diferenciar a autoria de cada porção do texto completo, não nos
vemos em melhor situação: a própria estrutura da obra induz certa desigualdade
entre uns capítulos — escritos por um só pesquisador — e outros, em que a letra
de cada estudante aparece ao lado de vários colegas, sem que saibamos de quem é
o texto em cada parte, nem tampouco o modo exato como a pesquisa, a escrita e a
revisão se deram.

Finalmente, há uma terceira dificuldade:
um livro destas dimensões, que “resume e abarca quase dez anos de pesquisa”,
tendo sido preparado em “trabalho coletivo” que durou “três anos”, ultrapassa
certamente, pelo menos em alguns pontos, as competências de qualquer
especialidade. Assim, na variedade de referências, que dá a este livro uma de
suas principais qualidades, o resenhista (ou pelo menos este resenhista) vê-se
diante de uma tarefa dupla: deve ponderar não apenas o conteúdo do que leu, mas
também o modo de produzir conhecimento implicado na própria forma da obra, sem
que possa reivindicar uma apreensão totalmente qualificada, nem de um, nem de
outro aspecto.

Por conta disso tudo, o texto que segue
abre mão de discutir no detalhe as várias etapas do argumento, concentrando-se
em suas premissas e conclusões mais gerais, tal como pude compreendê-las. Ora:
o subtítulo do livro promete desenvolver certas “arqueologias do sofrimento
psíquico”, a partir da “análise minuciosa de categorias clínicas mobilizadas para dar conta de patologias
sociais”, e também de “categorias
sociais construídas para descrever modalidades de sofrimento social”.

O
aparato conceitual

Não estamos diante de “arqueologias” ao
estilo dos primeiros trabalhos de Michel Foucault — caso em que o volume já
impressionante de fontes consultadas precisaria multiplicar-se ainda mais, e
com um enquadramento um pouco diferente —, mas do que poderíamos denominar uma
exposição de determinadas “linhagens” conceituais, a cuja escrita a preocupação
com o processo social e a história está pressuposta — ou justaposta — em medida
desigual ao longo do livro.

A permeabilidade efetiva da prosa à história varia conforme o caso e o capítulo:
ora temos a descrição simples do sentido que foi dado a determinadas categorias
em um momento, depois em outro, e ainda em outro; em outras porções, o nexo
entre certas formas gerais de nosografia e os processos sociais subjacentes à
sua gênese está plenamente explicitado, mas sem uma atenção específica ao
sentido que se dá a tais ou quais termos.

Ainda em outras ocasiões, damos um salto
ao evento singular, seja na apresentação (ou revisão) do caso clínico, seja na
reflexão acerca de determinados acontecimentos históricos. Eventualmente
encontramos casos mistos entre essas formas gerais do argumento, sem que se
possa dizer que “o valor histórico conjuntural do objeto em sua relação com os
outros objetos” (p. 236) — como promete um dos capítulos — esteja esclarecido
nos mesmos termos em toda parte.

Como, de um lado, a discussão dos
fundamentos teóricos da pesquisa está mais concentrada em uns capítulos do que
em outros; e, de outro, o método de exposição não é sempre consequente em mesmo
grau com as premissas da pesquisa, o livro é mais forte em seu conjunto do que
nas parcelas de que se compõe. O leitor que tem em mente as categorias mais
gerais apresentadas, sobretudo, na introdução, no primeiro capítulo e no
epílogo, pode preencher a exposição dos capítulos de um sentido que a escrita,
ela mesma, nem sempre garante. Isso tudo, entretanto, são prejuízos formais — e
compreensíveis, quando a redação envolve um número tão grande de pessoas.

Do ponto de vista do conteúdo, as alusões
repetidas às categorias centrais que organizam a argumento, bem como a
orientação comum de suas conclusões, garantem-lhe uma coerência real,
certamente mais do que nominal: à parte alguns casos singulares, o texto é
bem-sucedido em apresentar suas “arqueologias” (ou “linhagens”) a partir de uma
orientação clínica, sociológica e política consistente.

Do ponto de vista do pensamento clínico e
social, Patologias do social representa a continuação de ao menos três
grandes lutas teóricas: o conflito entre concepções organicistas e
psicodinâmicas do sofrimento; a luta entre reivindicações totalizantes e não
totalizantes do saber; e também o conflito entre duas formas distintas de
referir teoria social e norma, que podemos discriminar, um tanto
insatisfatoriamente, como “positiva” e “negativa”.

Naturalmente, não é verdadeiro que esses
aspectos apareçam sempre estritamente apartados uns dos outros na história do
pensamento: em geral, mesmo as posturas mais rigidamente organicistas têm de se
defrontar com o mundo do sentido, ainda que apenas para reduzi-lo a causas
incompreensíveis, e também aqueles que reivindicam a compreensibilidade do
sofrimento psíquico enfrentam a tarefa de dar um lugar ao elemento orgânico em
suas exposições.

Disso o próprio livro se mostra
consciente, e dá-nos bons exemplos históricos — por exemplo, ao rememorar a
relação inicial entre psicanálise e psiquiatria, distinta da que predomina hoje
em dia (cf. p. 264). O mesmo vale para os aspectos de generalização e
particularização, de “afirmação”, “negação” e “posição” na construção (lógica,
psicológica, política) das obras, que podem combinar-se, subordinar-se,
recalcar-se de modos variados. Veremos em que medida passagens singulares do
texto contradizem ou formam compromissos entre essas denominações.

Ao nível da generalidade, entretanto, o
partido do livro é explícito e unívoco: ele pretende exercitar uma “ontologia
do negativo” (cf. a orelha), e dirige-se com uma firme profissão de fé
psicodinâmica contra o organicismo latente às formas atualmente hegemônicas,
pretensamente a-teóricas, do saber psiquiátrico.

Como oponentes contemporâneos recorrentes
nos vários capítulos, temos o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (o DSM) — representante tanto daquele organicismo latente quanto de uma
“psicopatologia total”, por oposição à “psicopatologia não-toda” (p. 317) que o
livro advoga —; teorias sociais que os autores e autoras julgam vulgarizar o
sentido das categorias estudadas, como Christopher Lasch e Richard Sennett; e
Axel Honneth, de quem não se afirma expressamente que tome o partido do
“positivo” contra o “negativo”, mas que — por prender-se a “modelos individuais
de realização de ‘si’” (p. 21) indissociavelmente ligados a determinados
“processos de disciplina” (p. 22), e portanto às formas de sofrimento
correspondentes — acaba por chegar a uma “versão bastante desinflacionada de
crítica imanente com baixo potencial de transformação estrutural de realidades
sociais” (p. 24).

Com que armas, pois, pretende o livro
desdobrar sua luta contra esses, e tantos outros adversários? — Tomando de
empréstimo uma imagem constante no primeiro capítulo, podemos dizer que o
argumento estrutura-se num “modelo bicêntrico” (p. 50), tendo por núcleos
centrais as obras de Jacques Lacan (sobretudo do ponto de vista categorial) e
Michel Foucault (sobretudo do ponto de vista do método reivindicado).

Não são menos importantes, de certo modo,
os pensamentos de Theodor Adorno, Gilles Deleuze, Félix Guattari (sobretudo
filosoficamente) — e, como uma espécie de mediador universal, o de Sigmund
Freud, referência comum a todos os nomes já citados. Sem uma dialética negativa
como a de Adorno, com sua atenção ao singular e ao não-idêntico; sem um
conceito de esquizofrenia como o de Deleuze, dificilmente haveria o estímulo e
o espírito — a “perspectiva de leitura” (cf. orelha) — que organiza a
apropriação dos demais repertórios conceituais.

Caso se leve em conta apenas as categorias
expressamente necessárias para
produzir sentido da leitura, entretanto, são os procedimentos arqueológico e
genealógico de Foucault que estruturam — pelo menos nominalmente — o processo
da investigação e da exposição, e é o ensino de Lacan (acompanhado de sua
interpretação de Freud) que oferece o conteúdo contra o qual outras
psicanálises, psicologias e psiquiatrias são preferencialmente mensuradas.

Em Patologias do social, de todo
modo, filiação e lealdade teóricas importam menos do que a disposição a pôr em
diálogo perspectivas teóricas diferentes. Mais até do que o método
expressamente professado, o que dá unidade ao texto é a conduta, o intuito
com que se escreve. Temos aí, condensados num só aspecto, um dos méritos
maiores da obra, bem como uma de suas deficiências. O esforço de confronto com
uma pluralidade de tradições é notável, e faz-se num espírito genuíno de
abertura e disposição à síntese — aliás, bem-sucedida, em minha opinião, sempre
que de fato acontece.

Patologias do social tampouco está
disposto a deixar de lado as contribuições, mesmo daquelas vertentes de
pensamento mais contrárias à sua própria, sem examiná-las abertamente. Vemos
análises ponderadas de Freud, Lacan, Adorno, Horkheimer, Deleuze, mas também de
Heinz Kohut, Melanie Klein, Émile Durkheim, Carl Jung, Lasch, e uma variedade
de nomes contemporâneos, que vão de Judith Butler a Mario Perniola, de Giorgio
Agamben a Claude Lefort, e encontram recepção ao menos moderadamente amigável
no miolo do texto.

Em certo número de casos, entretanto, as
conclusões dos capítulos não sorvem as consequências de seu desenvolvimento.
Não há sempre uma relação “crítica” plena com o movimento histórico das
categorias examinadas — no sentido de uma remissão explícita de suas limitações
e potencialidades a tais ou quais condições de origem, de uma apropriação ou
reformulação consciente de seu conteúdo. Sobretudo quando se trata de examinar
os casos e eventos singulares a que o livro remete, a tendência é a de pressupor, sem mais, o partido
teórico e político dos autores e autoras, sem explicitar sua relação à
variedade de posições distintas que foram apresentadas anteriormente.

Naturalmente, toda obra deverá partir de
determinados pressupostos; mas, em um texto que pretende remeter as formas da
conceituação clínica às suas condições sociais, o preço desse isolamento
parcial entre pressuposto e objeto é duplo: primeiro, protege as teorias que
embasam o argumento de uma extensão reflexiva de seu método a si própria, não
obstante o reconhecimento formal, em algumas passagens mais cândidas, de que
também a psicanálise faz parte da disputa mais ampla entre regimes de
racionalidade diagnóstica distintas (cf. p. 329); depois, acaba por produzir um
empuxo — certamente não realizado de todo, mas presente como tendência
secundária — ao que poderíamos denominar um “retorno do naturalismo”, em
detrimento do naturalismo realista ingênuo contra o qual a perspectiva
“nominalista dinâmica” (cf. p. 12) do livro polemiza.

Os pontos em que acontece esse
descolamento entre teoria e método, de um lado, e objeto e forma de exposição,
de outro, têm consequências também do ponto de vista dos usos do livro, tanto
para o público leigo quanto para o de especialistas e estudiosos. A leitora e o
leitor habituados a temas de psicanálise, psiquiatria e teoria social
encontrarão uma fonte interessante e rica em material para a história das
categorias que o texto aborda: anomia, narcisismo, fetichismo, esquizofrenia,
paranoia, histeria. Os capítulos sobre essas categorias vêm acompanhados de
outros, sobre as formas de escrever e conceber o caso clínico, sobre o corpo
como lugar de sofrimento, e sobre os condicionantes e corolários (sociais e
científicos) do livro.

Duas características complementares
enriquecem o livro desse ponto de vista: em primeiro lugar, o recurso a fontes
psiquiátricas historicamente mais distantes, de menor circulação na formação
brasileira, como as obras de Bleuler, Kretschmer, Pinel, Jaspers, Kraepelin e
outros (se bem que nem sempre a partir do texto original). Em seguida, o recurso
a outras pesquisas contemporâneas sobre os assuntos tratados — textos
publicados, digamos, nos últimos 30 anos —, nem sempre conhecidas do grande
público.

Tomadas conjuntamente, essas duas
qualidades contribuem para fazer uma imagem mais completa tanto do
desenvolvimento da psiquiatria quanto da psicanálise, e também para indicar as
alternativas que têm sido exploradas contemporaneamente. Abstraindo de
problemas de método, a prosa é geralmente lúcida e — dentro de meus
conhecimentos — adequada às noções discutidas. Nas passagens em que o estilo
retrocede a uma forma mais obscura, entretanto, as dificuldades na relação
entre pressuposto e objeto de análise ficam mais sensíveis. Nem sempre o texto
garante uma elucidação suficiente das categorias que ele mesmo reivindica.
Algum conhecimento prévio, sobretudo de Lacan, é desejável na maior parte dos
casos, e em alguns deles, indispensável.

Nas piores passagens, o leitor poderá ter
a impressão de que o inconsciente se estrutura como linguagem, mas nem sempre a
redação científica se estrutura como linguagem. No todo, entretanto, o intuito
de esclarecimento pesa mais do que os problemas de estilo, e o texto serve —
ora como boa introdução, ora como boa continuação aos conhecimentos sobre os
assuntos de que trata. Para além desse uso como fonte na história das
categorias clínicas, o livro também dispõe de um interessante arsenal
filosófico e científico para tratar, seja da conceituação geral da relação
entre sofrimento e sociedade, seja de aspectos específicos seus — formas de
nosografia e sintomatologia, formas de casuística, modalidades de sofrimento.
Quer dizer: elementos para uma continuação das pesquisas que foram realizadas
até então estão desenvolvidos ao longo do livro, que não pretende apenas expor
os resultados obtidos até o momento de sua redação, mas também apontar “o caminho a ser trilhado para a
consolidação de modelos de
crítica social à altura dos desafios do presente” (p. 29).

Uma parte dos problemas que apontei
anteriormente pode ser mitigada se lermos assim o livro, mais como um ponto de partida ou como uma estação intermediária do que como um
ponto de chegada definitivo. De fato, o texto não reivindica senão “partir” dos
usos já conhecidos de categorias clínicas em teoria social para “avaliá-los, compreender
suas estratégias e seus impactos” (p. 26).

Se, em matéria de método e teoria, fica
deslocada para o leitor, em alguns casos, a tarefa de relacionar aquilo que a
exposição apenas justapõe (teoria contra teoria, categoria clínica contra
processo social…), há também nisso certa forma de generosidade, tal que a
exposição prefere conservar, como uma parte de um repertório lato, os
instrumentos que ela porventura poderá retomar frente a outros objetos e
circunstâncias, em vez de descartá-los sumariamente.

Para um livro que valoriza tanto a indeterminação da conduta humana, não
será talvez demérito seu que deixe indeterminada, em certo número de casos, sua
relação aos corpos de pensamento que estuda. A leitora e o leitor — sobretudo
quando já previamente familiarizados com os grandes temas do livro — encontram
nisso um espaço e ponto de partida para formular suas próprias impressões, e
também um estímulo a continuar acompanhando, na produção individual das autoras
e autores do volume, as fusões particulares entre os elementos que estão, aqui,
analisados e dispostos uns aos lados dos outros, mas ainda não reunidos e
sintetizados.

A
substância do argumento

Considerados os aspectos formais do livro,
passemos agora à substância de seu argumento. Como ponto de partida, temos a
ideia de que a base real dos vínculos sociais encontra-se, nem tanto nas normas
(explícitas ou implícitas) que a sociedade erige e procura inculcar em seus
membros, mas nos afetos que ela
reproduz e põe em circulação preferencialmente (p. 8,
26-7). Só que esses afetos remetem a determinados modos de interpretação da
experiência, eles próprios “normativos”: são mobilizados a partir de discursos
determinados, cuja produção encontra-se no entrecruzamento de uma série
de instituições (ou campos), com seus respectivos “modos
de reprodução da vida” (p. 11, 26, 236).

Resumindo as etapas desse raciocínio,
temos a noção de modos de subjetivação
— de inspiração foucaultiana, mas enriquecida ocasionalmente por argumentos de
outras matrizes. Sãoestruturas de linguagem segundo as quais o sujeito
põe-se como objeto de determinados saberes e poderes, e adquirindo assim seu
caráter de “sujeito” propriamente — ou seja, as peculiaridades próprias a seu
modo de pensar e desejar. A experiência
do sujeito está então “organizada” e “constituída” por determinadas
categorias e os respectivos jogos de
verdade (cf. p. 36, 44-6, 275), com suas regras de validação e
falseamento do que se pensa e faz.

O que aparece na ponta visível dos
singulares, com seus modos de agir e experimentar a vida — e mesmo o que é para
eles é “invisível” (isto é, inconsciente) — reconduz, portanto, a um processo
mais abstrato de indução dessas práticas e experiências, tendo em certas
configurações específicas da linguagem um de seus instrumentos maiores, e nas
instituições (ou “campos”), o seu suporte objetivo mais visível.

Em alguns pontos do texto, a subjetivação
aparece como fruto do entrecruzamento entre desejo, linguagem e trabalho (cf.
p. 235-6). A tendência dominante no livro, entretanto, é a de deixar de lado o
“trabalho”, dedicando-se mais minuciosamente à relação entre os outros dois
termos. É claro que a revisão de algumas das categorias discutidas ao longo da
obra incorpora reflexões de tais ou quais autores sobre o mundo do trabalho, e
mesmo sobre a troca e o modo de produção capitalista em termos mais amplos.
Sobretudo quando Marx volta a ser tematizado em alguns capítulos, o livro
mostra uma permeabilidade maior ao seu estilo de raciocínio: categorias como a
de “reprodução material da vida” (p. 10) não estão ausentes em absoluto.

Como, entretanto, os elos centrais que
fazem a passagem dos “afetos” e da “experiência” às “instituições” e práticas
continuam sendo as “estruturas de linguagem”, a inclinação mais natural do
texto é apresentar as “disposições de conduta” (p. 26) como fruto da palavra, e
não a palavra como fruto da conduta. Isso tem o benefício pelo menos heurístico
de dar um sentido mais do que puramente descritivo às “linhagens” de categorias
que o livro vai perfilando, poupando ao mesmo tempo os autores (e leitores) de
uma extensão ad infinitum do trabalho de revisão histórica.

De outra parte, o maior relevo da palavra
em relação ao ato, por assim dizer, abre alas para que ocasionalmente o ato
fique esquecido, ou subentenda-se apenas como instância e atualização do
discurso. Mas o mundo do ato é que poderia representar, por comparação à
abstração da linguagem, a possibilidade de reencontrar a riqueza concreta das
coisas singulares e da experiência em curso. Ele poderia ao menos servir como
lembrete de que isso não se perdesse de vista. Daí a tendência a conservar a
“história” como um pressuposto que não colore sempre a prosa, bem como algumas
consequências para a problemática central do livro — a relação entre “determinação”
e “indeterminação” subjetiva — que discutiremos mais adiante.

Pensar naqueles termos conduz autoras e
autores a uma formulação bastante ampla, que permite enquadrar a literatura
científica e filosófica estudada — e especialmente as categorias tematizadas no
livro — em termos de sua “função social” (p. 56): se a subjetivação acontece na
relação do sujeito a determinados discursos e a formas de saber respectivas,
com suas regras para decidir o que é verdadeiro e o que é falso, então é
possível remeter o efeito sobre o sujeito a grandes regimes de racionalidade (cf. p. 318) — e, particularmente no
caso dos saberes médicos, a certas gramáticas
sociais do sofrimento, tais que os afetos, expectativas, experiências em
geral, sejam compreendidos de tal ou qual modo, com tais ou quais
possibilidades de legitimação (p. 9, 46).

Ora: esses regimes de racionalidade
produzirão uma série de categorias — dentre as quais aquelas que interessam ao
livro — que estão imbuídas dos “ideais culturais” (p. 309), dos “valores” (p.
22) de uma determinada sociedade ou instituição.

Mas, em Patologias do social, “toda
assunção normativa” é “necessariamente produtora de sofrimento” (p. 8-9).
Assim, o “trabalho coletivo da linguagem” (p. 37) com o real está longe de ser
um processo indiferente, mas aparece como parte essencial de determinados
“processos disciplinares” (p. 9). Aí, o sujeito, expondo-se ao conteúdo
normativo encapsulado nos discursos, a um só tempo adentra determinados regimes de sofrimento (cf. p. 308) e
encontra o repertório de categorias a partir dos quais vai tecer as “narrativas
de sofrimento” (p. 10) com as quais procura compreender-se a si mesmo ou autonomear-se (cf. p. 45). Dessa
autonomeação podem advir inclusive “identidades sociais” orientadas pelo
“sintoma” — que pode servir a processos de “identificação”, mas não de
“reconhecimento”, de acordo com o livro (p. 9, 45, 328, 333).

Patologias do social demonstra com
bastante clareza como as “formas […] de nomeação do sofrimento” pressupostas a
essas narrativas são formas “históricas”
(p. 342). Mesmo ali onde, segundo a forma, o texto não chega a explicitar a
conexão de sentido entre a transformação das categorias clínicas e a
experiência histórica a elas pressuposta, o conhecimento das sintomatologias e
nosografias alternativas estudadas pelos autores já contribui muito para
informar o leitor do quão suscetíveis a mudança são as formas de sofrimento —
bem como as formas respectivas de sua compreensão.

A história do sofrimento aparece, em suma,
como a história das respostas (simbólicas
e vivenciais) que o humano vai dando às circunstâncias que enfrenta em cada
época, cultura, local (cf. p. 323).

O texto tem também um manejo bastante
sofisticado da maneira como essas mudanças conjugam-se, eventualmente, com
continuidades e copertinências entre as várias épocas: admite tanto a
possibilidade da transversalidade
histórica (cf. p. 323) das categorias clínicas e sociais quanto a de sua
derrocada ou transformação essencial (cf. p. 35, 306, 338-9).

Outro ponto forte do argumento é sua
sensibilidade para a diferenciação entre o sofrimento em geral e duas de suas
modalidades específicas de expressão — a “patologia”, ou o “sofrimento
socialmente considerado excessivo” (p. 9), e o “mal-estar”, ou o sofrimento
“que não pode ser simbolizado por um determinado modo de existência” (p. 328),
com suas variedades históricas de delimitação e diferenciação mútua (cf. p.
328). Isso permite um controle mais rigoroso da literatura estudada e serve
como uma garantia — pelo menos formal — de que a interpretação não se restrinja
ao que essa literatura apresenta imediatamente, mas pressuponha sempre que, ali
onde determinado discurso reúne certos fenômenos, é possível voltar a
separá-los; ali, onde uma época aponta a normalidade, outra pode apontar a
patologia. Ao fim do argumento, extraímos a figura das sociedades como
“sistemas produtores e gestores de patologias” (p. 8).

“Produtores de patologias” — pois a
própria existência de determinados discursos que distinguem o sofrimento
aceitável do “excessivo” é um momento de sua existência e reprodução efetiva.
Desse ponto de vista, nenhuma classe nosográfica pode ser entendida em termos
realistas, como descoberta de uma espécie natural, mas a própria
verificabilidade de tais ou quais sintomas na prática clínica tem de ser
pensada — pelo menos em parte — como um efeito do saber que informa essa
clínica, com sua pretensão (tácita ou explícita) de “reorientação de ações e
condutas”, “modificações […] dos sujeitos” (p. 12, 43).

“Gestores de patologias” — pois a esses
discursos concatenam-se certas “práticas de intenção transformativa” (p. 321),
de cura, tratamento e intervenção, cujas formas hegemônicas entram naquele
circuito de processos disciplinares a reforçar as dependências do sujeito para
com certas instituições — certas formas de viver e de estar na vida, pois. Daí
a conclusão derradeira: as “patologias” são todas necessariamente “sociais”:
representam “modos de participação social” (p. 10, 12) induzidos e efetivados
no sujeito a partir dos discursos respectivos.

É esta a premissa de que deriva o título
da obra: as “patologias do social” entendem-se — por sugestão do próprio
texto —, ora como patologias oriundas do excesso de socialização (pressupondo o
processo de subjetivação segundo as regras que resumimos anteriormente), ora
como patologias desde o social — quer dizer, como resultado de
“contradições não reconhecidas nos laços sociais” (p. 324).

Essa segunda formulação aponta para
algumas das concepções de “crítica” que o livro rechaça, como a de Honneth; mas
também seria possível lê-la como um retorno, um pouquinho enfraquecido, daquela
dimensão em que a prática não aparece (apenas) como efeito do discurso, mas
também como constitutiva dele, e que o procedimento “arqueológico” tende a
omitir.

Nem sempre o texto conserva consciência
firme de suas próprias premissas. O uso mais ou menos indiferente das
expressões “patologia social” e “patologia do social” (p. ex., p. 185) serve
como um sintoma sutil dessa vacilação teórica.

Se, em geral, o texto luta contra a ideia
de que seria possível falar de uma “sociedade
patológica” (p. 327) ou adoecida, ao modo das antigas analogias
funcionalistas entre corpo social e organismo, não deixa de aparecer vez por
outra a ideia de que uma “forma de vida” determinada — isto é, por referência
ao que viemos discutindo: um efeito, dentre outras coisas, das
estruturas de linguagem — tenha, em si mesma, um “caráter patológico” (p. 282).

A
individualidade moderna

Veremos que, sobretudo, a “individualidade
moderna” é acusada várias vezes de ter uma “natureza patológica” (p. 26). Ora:
fazer recurso a esse tipo de denominação não tem o efeito “crítico” pretendido
se o vocabulário do normal e do patológico não recupera, pelo menos em parte,
um bocadinho de pretensão “realista”. Como expressão mais visível disso,
teremos, sobretudo em dois pontos da discussão, não a convicção de que toda “patologia” — sendo efeito e objeto de
determinados saberes etc. — é, em si mesma, enquanto ente conhecível e
reconhecível, “social”, mas a dúvida
acerca do enquadramento que se deve dar a tais ou quais categorias clínicas.

“[S]eria o fetichismo uma patologia social?” (ou
“do social”?) (p. 185, 229), pergunta-se um dos capítulos. “[S]eria o narcisismo uma categoria válida para pensar em patologias do
social?” (p. 180), pergunta-se outro. Se a esquizofrenia é “uma das patologias do social” (p.
235), não haverá um “grupo das
patologias sociais” (p. 142), por oposição a outros, de patologias porventura
“não-sociais”?

Formulações como essas fazem enfraquecer
em parte a radicalidade com que aquele “nominalismo dinâmico” queria tirar dos
modos de sofrimento toda feição natural. De fato, o texto é, em geral, muito
bem-sucedido em retirar da natureza (isto é, do organismo considerado isoladamente) a determinação essencial das
formas de sofrimento que ele aborda. Mas ele o faz ao custo ocasional de ter de
emprestar de volta o peso “normativo” da “patologia” concebida em termos
naturalistas, sempre que transparece sua predileção por umas “formas de vida”
dentre outras.

Independentemente de como se interpretem
as questões que transcrevi acima — com ênfase sobre o problema de saber se “são
ou não patologias”, se são patologias “sociais ou não-sociais” —, elas recaem,
segundo a forma e o espírito, no mesmo tipo de problema que o livro acusa
porventura em seus oponentes na psiquiatria: a tendência a enredar-se em
problemas de classificação, de contraste entre determinados critérios formais e
o caso realmente observado.

De livre confissão, um dos capítulos a que
aludi termina justamente redescobrindo a noção de que, para afirmar
positivamente se tal fenômeno seria ou
não uma “patologia do social”, seria preciso dar conta das “dificuldades
acerca dos próprios critérios que definiriam uma patologia” (p. 230) — dificuldades que, em outra passagem, a
obra reconhece como inevitáveis a qualquer diagnóstica (cf. epílogo), mas que
são certamente desconfortáveis (embora não insuperáveis) para um texto que tem,
na desconfiança frente aos “critérios normativos” (p. 230) em geral, um de seus
órgãos vitais.

Essa mesma contradição é expressa de modo
um pouco diferente quando, em algumas passagens, o texto recai em topoi
argumentativos que ele mesmo trata — se não com total rejeição, ao menos com
hesitação e reticência. Um dos trechos mais sugestivos do livro aborda o que
seriam quatro estratégias de síntese teórica entre os aspectos subjetivos e
sociais — a analogia funcional, a normalização, a ancoragem e a unidade (cf. p.
160-3).

Se, da “analogia funcional” entre
sociedade e indivíduo, diz-se que não é problemática per se, mas que
requer cuidados muito especiais (pois a semelhança formal não significa
necessariamente consubstancialidade — cf. p. 161), não demoramos a encontrar no
mesmo capítulo — bem como em outros pontos — uma explicação da ideologia nos
anos da ditadura militar brasileira em que “a sociedade age como se devesse
excluir […] toda e qualquer forma de ameaça” (p. 176), por comparação
(dificilmente diferenciável de uma “analogia” simples) com o procedimento identitarista
da paranoia individual.

Se desvios pequeninos como esses não dão o
tom geral do texto — e muito menos invalidam ou inutilizam a discussão que
circunscrevem —, tampouco podemos deixar de nos perguntar por que é que chegam
a constar na redação final. Talvez em parte isso seja devido ao número imenso
de mãos que foram postas à obra para redigir o livro, o que dificulta
naturalmente uma conciliação absoluta
de todas as partes que se escreveram. Sinto-me inclinado, entretanto, a ver
nisso mais do que uma consequência da forma de produção do texto, pensando que
deve expressar-se aí também uma dificuldade própria ao enquadramento teórico
que o livro privilegia.

Se, de fato, por livre admissão sua, toda
categoria clínica (ou que pretende descrever um sofrimento social) — e,
sobretudo, uma categoria como a do “patológico” — contém juízos de valor
determinados, apontando para as formas de vida correspondentes, então também
aqui a insistência em uma categoria como a de “patologia do social” — ainda que
considerando todas as suas transmutações com relação às acepções anteriores do
termo — precisa levantar a bandeira de ao menos um tipo de experiência, ao
menos uma “forma de vida” contra outras já existentes.

E ela tem de valorar os aspectos dessa forma de vida antecipada, ainda que
ela não se pretenda descrever exaustivamente, nem “prescrever-se” a ninguém,
nem tampouco delinear-se senão por “negação” daquilo que, no aqui e agora, dá
as condições do sofrimento já conhecido. Mas “valor” e disciplina, “ideal” e imperativo,
não se distinguem com facilidade no texto.

Patologias do social tende a
experimentar todas as expressões afirmativas de “normas” — ou ao menos certo
conjunto delas — como um risco de recaída na submissão, no conformismo, no
engodo: o texto quer expressamente escapar de um tratamento orientado por
“ideais normativos” (p. 77). De fato, todos esses são riscos reais sempre que
tratamos de “ideais”. Mas então não temos espaço para distinguir com clareza o
“ideal” propriamente dito, com seu comportamento prescritivo, impositivo, do “ideal” enquanto expressão e
antecipação do que — para falar um vocabulário próximo ao do próprio livro —
estaria porventura mais próximo do desejo.

Uma teoria crítica pode abrir mão da
primeira acepção, talvez, mas não pode abrir mão da segunda, se não quiser
recair em uma determinação puramente abstrata do que significa “negar” o
presente — por via de “recusa” (p. 287) simples, ou pelo “impulso” de
“subtrair-se” aos “modos atuais de determinação” (cf. p. 25) da subjetividade e
da experiência. Que essa recusa ou esse impulso existam, pode dar-se na
tentativa simples de negar o sofrimento presente; mas que elas se direcionem a
algo de mais específico e constituam de fato um “desafio levantado” (p. 25)
contra as condições que originam o sofrimento, revestindo-se da feição de uma
negação “determinada”, exige algo mais.

Na medida em que persiste a dificuldade de
diferenciar, no “ideal”, o que é fruto do desejo e o que é fruto da disciplina,
Patologias do social tem de evitar discutir a forma de experiência (ou
de antecipação da experiência possível) que serve de base para a sua
contraposição com os modos de vida hoje dominantes.

Veremos que isso não acontece
absolutamente, e temos bons indícios daquilo que o livro, por assim dizer,
gostaria de poder viver. Mas é um “recalque” suficientemente extenso para que
aconteçam aqueles descompassos entre os pressupostos do livro — a desconfiança
dos valores, a luta contra o realismo nosográfico — e o seu procedimento
concreto, que acaba reincorporando — se não os valores como tais, pelo menos um
efeito de valoração, ou o seu modo de expressão teórico: os “conceitos
[…] classificatórios”, que em certa parte o texto quer diferenciar de seus
preferidos “conceitos psicodinâmicos” (p. 294-5). Isso nos conduz aos dois
grupos principais de argumentos que resta considerar: a relação entre
organicismo e psicodinâmica, e a relação entre afirmação e negação na crítica.

Contra
a tendência predominante na psiquiatria

Os autores e autoras extraem do aparato
conceitual que expusemos uma base bastante firme para enfrentar a tendência
hoje dominante da psiquiatria, de base organicista, cuja representação
literária mais conhecida encontra-se no já mencionado DSM. Se há determinados
“regimes de racionalidade”, com efeitos determinados sobre o sujeito; se os
discursos pertinentes a esses regimes participam dos modos de narrar o
sofrimento e autonomear-se — então é porque há algo como uma série de racionalidades diagnósticas (cf. p.
318), capazes de identificar, nomear, legitimar e deslegitimar, reconhecer e
sancionar determinados sofrimentos e patologias — e, com elas, determinadas
formas de vida (cf. p. 36, 40, 235, 320, 328).

Dois órgãos vitais de qualquer diagnóstica
são o tipo clínico e o caso clínico, bem como uma semiologia que permita
identificar e compreender o sintoma. Mas o texto bem nota que, em certa “indústria do bem-estar” (p. 41)
consolidada nas últimas décadas, a ênfase recai cada vez menos sobre o caso clínico — isto é, sobre a
narrativa de um sofrimento singular,
emaranhado à vida social — e cada vez mais sobre o tipo clínico, que por sua própria natureza configura uma generalização a partir do que (por
suposto) foi uma série de casos observados (cf. p. 307, 319, 335).

A supressão da casuística corresponde a
uma tendência mais ampla, também corretamente avaliada pelo livro, de procurar
chegar a uma forma de conhecimento nosográfico que seja totalizante, exaustiva
e a-teórica — ou seja, que abre mão de compreender,
ou mesmo de encontrar as causas das patologias, para remetê-las ao procedimento
que, em outra passagem, o livro descreve como “normalização” estatística. Sem a
referência à singularidade, desaparece também aquilo que é tão caro aos
autores, e que nós quisemos valorizar mais acima: a compreensão de que o
sofrimento — e particularmente o sofrimento “patológico” — é também fenômeno
histórico, socialmente condicionado (cf. p. 318-9).

A crítica desse modelo é muito bem-vinda,
sobretudo por conta de um fenômeno de que o texto também está bastante
consciente: se o saber médico desdobra-se em uma série de discursos que acessam
o sujeito e passam a participar de suas formas de agir e pensar, então é
compreensível que o discurso psiquiátrico de tipo a-histórico tenha se
generalizado também entre o público “leigo”, que passa a compreender-se e agir
a partir da diagnose psiquiátrica.

O livro apresenta uma porção de casos
clínicos que levam essa forma de narrativa aos ouvidos do psicanalista; mas o
leitor e a leitora não terão dificuldade em tomar contato com ocorrências
similares no dia a dia e poderão assim convencer-se de que levantar resistência
e consciência crítica contra a naturalização ingênua do sofrimento é uma tarefa
social importante hoje em dia.

Este é um dentre outros motivos que tornam
a obra relevante também para o público não especializado: pois ela chama a
atenção para o elemento de desresponsabilização (cf. p. 45) pelo sofrimento que
certas diagnósticas implicam, já que suprime a conexão de sentido entre o sintoma, o sofrimento e suas causas — ou
seja, suprime a relação propriamente subjetiva
com o sofrer e, com ela, também a “potencialidade enunciativa” em que a
psicanálise gostaria de se apoiar para tratar seus analisandos (p. 43, 45).

Igualmente bem-vinda é a proposta que dá
fecho ao livro, de uma “psicopatologia não-toda” (p. 222), por oposição à
“psicopatologia da totalidade”, que tem no DSM um de seus casos. Em realidade,
o que está em jogo não é necessariamente a pretensão de conceber um manual como
esse em termos “finais”, “totais”: o procedimento classificatório pode
interpretar-se a si mesmo como infinito e suscetível à “correção” empírica.

Mas existe de fato uma diferença
fundamental de forma lógica entre
o que um texto como o DSM propõe e o tipo de diagnóstica que Patologias do
social
defende. Se o interesse está em recuperar a possibilidade de acessar
o caso e o sofrimento singulares enquanto
singulares, não pode haver uma estrutura categorial que reduz sem mais o
caso (ou mesmo determinadas síndromes) a particularizações, especificações, de
um quadro mais geral; que trata o geral como hierarquicamente superior ao particular e ao singular, pois.

O texto é cuidadoso também em identificar
a possibilidade de que essa tendência se infiltre no próprio manejo clínico da
psicanálise lacaniana — na hierarquia que leva das grandes estruturas clínicas
aos tipos clínicos, depois a determinados subtipos, e ainda aos sintomas (cf.
p. 333). O esforço principal do texto, nesse ponto, é extrair, sobretudo da
herança do último ensino de Lacan, alternativas que — sem que se proponham como
excludentes da clínica propriamente “estrutural” — deem conta de aproximar-se
de um modelo mais receptivo à singularidade e que enfraqueçam a tendência
apontada por alguns críticos tanto ao “neurótico-centrismo”
quanto ao “androcentrismo” (p. 334, 342) na diagnose. Visa-se assim atingir um
modelo que inclua indiferentemente neuroses, psicoses e perversões, e meça de
idêntico modo as economias de gozo distintas que deparamos na clínica e na vida
cotidiana.

Esse esforço de deslocamento da forma
lógica da diagnóstica — da ênfase sobre o geral para a ênfase sobre o singular —
vem acompanhado de uma segunda proposta, agora ligada mais diretamente ao
emprego das categorias clínicas no trabalho com teoria social. É que o texto
quer evitar o que ele reconhece, segundo uma expressão muito espirituosa, como
uma “crítica de juizado de pequenas causas” (p. 321), limitada a contrastar o
caso empírico com uma norma (explícita ou implícita) e a tirar daí a acusação
de que, afinal, as coisas não são tal como deveriam ser.

Há algo de consubstancial entre o
procedimento “totalizante” ingênuo, que confronta o caso observado com uma
série de critérios antepostos, para ver se uma coisa corresponde à outra, e o
procedimento “normativo” ingênuo, que descobre a cada vez que as coisas não
correspondem a seus critérios, para em seguida “exigir” a sua “realização” (p.
321). A diferença está apenas em que o sinal se inverte de um caso a outro: o
psiquiatra mensura aquilo que, de seu ponto de vista, não deveria ser, enquanto o teórico crítico aponta para aquilo
que, em seu juízo, deveria ser.

Nesse sentido, o gesto de desconfiança com
um dos modelos é o mesmo que leva à crítica do outro e reúne-se num mesmo
complexo de determinações, que nós já identificamos sob a figura da
“negatividade”.

Patologias do social pensa que há uma
“negatividade inerente a todo sujeito” (p. 95), que carrega dentro de si certa
falta constitutiva, e foi ele próprio “constituído” em sua relação com o
indeterminado. Está aí a base subjetiva suposta ao que a teoria deverá
expressar em uma série de comportamentos particulares.

Em primeiro lugar, supondo-se que o
cimento social efetivo não sejam de fato as “normas”, mas os circuitos de
afetos — então é a eles que deverá dirigir-se a crítica, e não aos ideais e seu
cumprimento (p. 8). O sofrimento deverá ser visto como evidência dos efeitos da
ordem social sobre a economia psíquica, como ponto de partida para analisar as
forças reais de laço social, e não como marca de um déficit em relação aos
ideais imaginados (p. 26, 95).

Dever-se-á compreender que “utopias
políticas e visões totalizantes de mundo” têm “efeitos deletérios para a vida
humana” (p. 51), evitando-se com isso toda discussão propriamente prescritiva,
que poderia recair em uma “moralização” (p. 226) indesejada, e assim dissuadir
o movimento de negação de seu impulso mais genuíno.

Essa concepção desdobra-se no que talvez
seja a contribuição mais interessante do livro: sua apresentação (e tomada de
partido) com relação ao que seria um metadiagnóstico
“bífido” (p. 236) da modernidade, que reconhece, como fonte do sofrimento, duas
formas distintas de “perda da experiência” (p. 329): de um lado, o excesso de experiências improdutivas de
determinação e, de outro, o déficit
de experiências produtivas de indeterminação.

Ou seja: se algumas vertentes de
interpretação e crítica da modernidade reconheceram como fonte do sofrimento o
que seria uma espécie de saturação de determinações sociais, outras pensaram
fazer falta a possibilidade de experimentar indeterminação, desconhecimento de
si. Essas duas formulações aparecem por contraste a outra classificação, também
“bífida”, mas agora “não complementar” (p. 236): a diferença mais simples entre
sofrimento de determinação e sofrimento de indeterminação, sem levar em conta
as determinações da “produtividade ou improdutividade”, “exagero ou
deficiência”.

Patologias do social costuma dar
preferência à primeira concepção: a de que o que faz sofrer não é que não
possamos “determinar-nos”, caminhando em direção a certos ideais de
individualidade e autorrealização (cf. p. 209), mas, ao contrário, que sofremos
justamente por estarmos de saída determinados
demais, sem a possibilidade de uma variação ou diferenciação que
concorra com o tipo de síntese egoica característica à nossa época.

Toda tentativa de continuar nessa direção —
representada por valores como os de autonomia, unidade reflexiva e
autenticidade (cf. p. 96) — apenas serviria para reproduzir o que está suposto
à individuação egoica e, com isso, também os sofrimentos que ela acarreta (cf.
p. 19).

Com isso, aqueles ideais (gerais) estariam fadados ao fracasso
(cf. p. 279), e em seu lugar seria preciso procurar uma maneira de pensar e
atuar que reconhecesse “múltiplos modelos individuais de realização de si” (p.
21) — singulares, portanto — e
que determinassem o normal e o patológico por referência à “experiência” de
cada pessoa, que teria então valor “normativo” para o seu próprio sujeito, e
apenas para ele (p. 78).

Agora, é a “a-normatividade” e a
“indeterminação” que têm de vir a ser “índices do humano” (p. 95): do que o
texto dá seu próprio “indício” sempre que demonstra amor e interesse pelo
mimetismo do inorgânico, pela relação fetichista com as coisas, e também em
outros pontos análogos, que o distanciam radicalmente do que consta em algumas
passagens como “humanismo” (p. ex., p. 20).

Mas o livro não deixa de fato totalmente indeterminada a sua noção de “indeterminação”,
nem tampouco essa atividade “sem norma” que inspira sua devoção. Seu interesse
maior, por comparação ao “juizado de causas menores” de um Honneth, estaria em
“liberar a experiência da vida em sua figura insubmissa” (p. 25). E que figura
é essa, pois? — Temos uma imagem preliminar dela nas “dinâmicas pré-pessoais da
vida” (p. 28) — sobretudo em categorias, como a das pulsões parciais,
insubordinadas ao Eu, que apontam para outra forma de economia dos prazeres
(cf. p. 95, 227).

Indeterminar-se não é, então, aqui, de
fato apenas “subtrair-se” à determinação, recair em uma incógnita ou
esvaziamento, como indica uma passagem que já citamos, mas entrar em um outro modo de determinação do ato — um modo
que é experimentado, do ponto de vista
do Eu ainda vigente,
como confronto (ou unidade transitória) com um fragmento: algo de parcelar,
não-identitário, mas ainda em
referência à identidade.

Não é apenas nominalmente que as pulsões
“parciais” contrapõem-se a algo “total” (ou não-parcial): a vigência dessa
totalidade — que a psicanálise de inspiração freudiana reconhece sobretudo no
Eu — é o pressuposto efetivo de
que elas sejam experimentadas como
parciais.

A “força de indeterminação da pulsão” (p.
23) consta como indeterminante com
relação a esse modo de organização conhecido, mas não como
indeterminação (ou como indeterminada) “em si mesma”, por assim dizer. Do mesmo
modo, o Eu aparece como “determinado” do ponto de vista de sua relativa
estabilidade e unidade, quando comparado com a mobilidade dos arranjos de
energia no inconsciente; mas ele próprio é (mesmo para Freud, e mesmo para
Freud tal como representado em alguns dos capítulos do livro) passível de um
processo próprio, que não o dá por acabado, “determinado”, de uma só vez.

Além disso, ele pode representar uma força
de “indeterminação” para a pulsão: por exemplo, no próprio
recalque, quando subtrai dela a possibilidade de desenvolver-se em um ato
concreto, e tira com isso o instrumento que ela teria para enriquecer-se do
contato com objetos reais, e mesmo com a linguagem. (A riqueza do humano, lembra-nos
a Ideologia alemã de Marx e Engels, é a riqueza de suas relações, sobretudo
daquelas que se desenvolvem de
fato.)

Aquilo para o que estou tentando chamar a
atenção é o seguinte: no fundo, “determinação” e “indeterminação” não aparecem
no texto como simples marcadores do que têm uma qualidade definida ou
indefinida, mais específica ou mais geral, mais diferenciada ou mais confusa.
São verdadeiramente os termos portadores de uma experiência específica da vida — ou até de uma reação a ela, para falar como o próprio
livro — e, com isso, estão para além da “determinação” puramente lógica com que
a formalidade dos termos parece investi-los.

Se Patologias do social aponta, com
razão, que a “crítica imanente” não pode prender-se às “formas atuais da vida”
(p. 25) — e, com isso, que também as “normas” atualmente vigentes ou
reconhecíveis não constituem base suficiente para a crítica: então tem de
reconhecer também que as formas atuais do desejo não podem servir senão como ponto de partida, antecipação
preliminar do que seria o seu desdobramento
efetivo em condições sociais modificadas.

Não se trata, no fundo, senão de levar
radicalmente a sério uma expressão encontradiça na própria a obra: se é
“possível” uma “experiência”
outra de “organização libidinal”   (p. 227); quer dizer: se a “organização
libidinal” está, não só como categoria conjectural, propriamente subjacente ao
Eu, mas também como algo que se pode experimentar
(seja em si mesma ou em seus reflexos)
— então não podemos restringir essa experiência ao que seria porventura
a sua primeira figura, a perfuração ocasional do Eu pelo que estava antes
recalcado, ou mesmo a suspensão parcial da resistência.

Se nos apegamos demasiado a essa figura,
escapamos certamente de um juizado de causas menores, mas corremos o risco de
ingressar em uma legislação de resistências menores, à qual está sempre
pressuposta a força e a vigência daquilo que se gostaria de transformar. Enquanto
sentimos o cansaço de ser como somos, e enquanto apreendemos o que somos por
referência àquilo de que precisamos abrir mão em favor da “norma” — então a
aspiração de chegar a atingir uma nova forma de subjetividade tem de aparecer
realmente como um processo imediato (ainda que árduo) de “dissolução das
normas” (p. 287).

Não seria despropositado lembrar, a esse
respeito, o juízo que o próprio Lacan faz, no livro sétimo do Seminário,
acerca da experiência da libertinagem: por mor de sua profanação apaixonada,
ela acaba reencontrando Deus ao final. Negar o Eu como forma de síntese
subjetiva sem preocupar-se em desenvolver (no conceito, sim, mas sobretudo na
experiência) que tipo outro de determinação
imaginamos encontrar no processo subsequente não enfraquece mais a crítica do
que o contraste abstrato entre ideal e realidade. Não é preciso querer prever ou prescrever nada para que essa seja uma tarefa viva para nós: ela
não se encarna na figura de um cérebro despótico, mas na figura de um corpo
experimentador com os pontos em que — a despeito de tudo — ainda existem
flexibilidade e alteridade possíveis na rotina de cada um.

Para que isso fosse acompanhado de uma
reflexão teórica correspondente, entretanto, seria recomendável levar mais
adiante a dialética implícita aos termos que o livro já reconhece com
brilhantismo: naquilo que, aberta ou tacitamente, a obra identifica o elemento
de “determinação”, há também indeterminação; naquilo que representa a
“indeterminação”, há também determinação, ou pelo menos o intuito de
determinar-se. Se — para fazer jus a uma formulação do próprio texto — a
experiência tem sua dialética interna (cf. p. 226), também a experiência do
desdobramento do desejo em direção ao real tem de informar o horizonte de
nossas possibilidades. Fixá-lo no tipo de fragmentação e alteridade parcial
subentendido às passagens mais apaixonadas do texto é fixá-lo, não propriamente
enquanto “negativo”, mas enquanto negado pelo “positivo”. Recuperar sua
força enquanto propriamente “negativa” exigiria que déssemos conta também de
reconhecer nele o que tem de afirmativo
em si mesmo.

A própria obra não deixa de reconhecê-lo
em uma de suas passagens mais cândidas: “impõe-se como tarefa fundamental
definir com maior precisão quais tipos de experiência de indeterminação é essa
que designamos como saudável ou positiva” (p. 287).

Esclarecer essa questão ajudaria, não
apenas a evitar os lapsos lógicos menores que discutimos anteriormente, mas,
sobretudo, orientaria pesquisadores, pesquisadoras, leitoras e leitores a uma
conduta propriamente experimental
com as “formas de vida” que assumimos — certamente, uma tarefa das mais
relevantes para o momento político em que vivemos.

*Matheus
Capovilla Romanetto
é mestrando
em sociologia na USP

Referência

SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica Editora, 2019 (https://amzn.to/45bQ6kc).

Patologias do social – 02/04/2020 – 1/1
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