Pedro Casaldáliga e o Anel de Tucum

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Alexandre Aragão de Albuquerque*

Um profeta, ao morrer, é como uma semente enterrada no chão. No tempo oportuno, brotará, crescerá e dará novos frutos

De padre cursilhista a bispo expoente da Teologia da Libertação latino-americana, o espanhol Pedro Casaldáliga (1928-2020) compõe juntamente com José Maria Pires, Paulo Evaristo Arns e Hélder Câmara, uma constelação de homens religiosos – bispos da Igreja Católica – de profundo engajamento nas causas populares e dimensão profética. Certa vez Paulo Freire pessoalmente comentou comigo que o profeta, por ser alguém com os pés mergulhados no presente, consegue anunciar o futuro de forma antecipada. Pedro tinha lado, nunca esteve nem se manteve em cima de muros: “a evangelização, que é a boa nova para os pobres, vem a partir do chão, na realidade concreta do dia a dia”, afirmava.

Para ele, “o latifúndio agrário continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América. Recordando a palavra de Jesus de Nazaré: não podeis servir a Deus e ao Dinheiro; assim, não podeis servir ao Latifúndio e à Reforma Agrária”. Pedro tinha a profunda convicção da necessidade de um novo tipo de socialismo capaz de viabilizar uma verdadeira reforma agrária e agrícola conforme o feitio de uma nova América latina, como bem registrou em sua mensagem dos 25 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST. Por conta deste seu posicionamento político, teve de enfrentar, nos anos 1980, em substituição à ditadura militar, a ira fundamentalista armada da UDR, sob o comando de Ronaldo Caiado. No programa Roda Viva, da TV Cultura, em 31/10/1988, afirmou: “Eu tenho, inclusive, excomungado fazendas, porque cortaram orelhas de trabalhadores rurais, como nos tempos mais dramáticos que motivaram o surgimento do cangaço. E continuo me negando a celebrar missa em certas fazendas, se eu não tiver a liberdade em celebrar e ficar preso à presença controladora do gerente”.

Pedro esteve na linha de frente da defesa dos direitos de um povo rural, ameaçado pelo trabalho escravo, entrando em duros choques com grandes latifundiários, empresas de agronegócios, mineradoras, madeireiras e com aqueles políticos que se vendiam aos operadores da degradação do meio ambiente, como tão bem o faz agora no momento presente, anunciando em alto e bom som na reunião ministerial dos palavrões, do governo Bolsonaro, no dia 22 de abril, o ministro Ricardo Sales: “vamos passar a boiada diante da distração da população e das instituições com a pandemia do Covid-19”.

Numa Carta pastoral, ainda em 1971, Pedro posicionou-se claramente ao lado da mensagem de Jesus de Nazaré: “Nós – bispo, padres, irmãs, leigos engajados – estamos aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo real e concreto, marginalizado e acusador, que acabo de apresentar sumariamente. Ou possibilitamos a encarnação salvadora de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos os direitos e a esperança agônica de um povo – sertanejos, peões, posseiros, este pedaço brasileiro da Amazônia – que é também Povo de Deus. Porque estamos aqui, devemos comprometer-nos. Claramente. Até o fim”.

No dia 31 de julho de 2020, Casaldáliga foi um dos 152 bispos signatários de uma carta-manifesto contra o governo Bolsonaro: “Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?”. Para nós pessoalmente, essa perplexidade, logicamente, estende-se aos bispos, padres, religiosos e leigos católicos, eleitores e apoiadores de Bolsonaro e de seu desgoverno entreguista. Que não são poucos, diga-se de passagem.

Diferentemente do Papa Inocêncio III (1198-1216), que determinou que os anéis episcopais fossem confeccionados todos em ouro com uma pedra preciosa incrustrada, dom Pedro Casaldáliga usava o Anel de Tucum. Ele mesmo explica o significado deste símbolo: “Tucum é uma palmeira da Amazônia, aliás, com uns espinhos meio bravos. O anel de Tucum é sinal da aliança com a causa indígena e com as causas populares. Quem carrega este anel normalmente significa que assumiu estas causas e as suas consequências. Muitos e Muitas, por essa causa, com esse compromisso, foram até a morte. Nós mesmos, aqui na Igreja de São Félix do Araguaia, temos o Santuário dos Mártires da Caminhada” (in O Anel de Tucum, filme de Conrado Berning, 1994).

Um profeta, ao morrer, é como uma semente enterrada no chão. No tempo oportuno, brotará, crescerá e dará novos frutos. Oxalá que venham muitos profetas e profetisas com seus anéis de Tucum a povoar a Terra. Obrigado, Pedro Casaldáliga!

*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Marques Paulo Capel Narvai Elias Jabbour Caio Bugiato Salem Nasser Leonardo Sacramento Eugênio Trivinho Plínio de Arruda Sampaio Jr. Thomas Piketty Marcelo Módolo Boaventura de Sousa Santos Kátia Gerab Baggio Ronald León Núñez Marcos Silva José Micaelson Lacerda Morais Eliziário Andrade Claudio Katz Marilia Pacheco Fiorillo Marcelo Guimarães Lima Chico Alencar Eleonora Albano Renato Dagnino Dênis de Moraes Lucas Fiaschetti Estevez José Luís Fiori João Feres Júnior Daniel Costa Walnice Nogueira Galvão Everaldo de Oliveira Andrade Rafael R. Ioris Afrânio Catani Celso Favaretto José Machado Moita Neto Gilberto Maringoni Milton Pinheiro Maria Rita Kehl Vladimir Safatle Alexandre de Freitas Barbosa Francisco Fernandes Ladeira Ladislau Dowbor Daniel Brazil Ricardo Musse Francisco Pereira de Farias José Geraldo Couto Ari Marcelo Solon Paulo Sérgio Pinheiro Flávio Aguiar Jean Pierre Chauvin Julian Rodrigues André Singer Celso Frederico Valerio Arcary Ricardo Antunes Leonardo Boff Berenice Bento Érico Andrade Igor Felippe Santos Luiz Renato Martins Paulo Fernandes Silveira Bento Prado Jr. Lincoln Secco Luiz Bernardo Pericás Osvaldo Coggiola Armando Boito Michael Löwy Slavoj Žižek Luís Fernando Vitagliano Marilena Chauí Sandra Bitencourt Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Lima Castro Tranjan Priscila Figueiredo Lorenzo Vitral Flávio R. Kothe Jean Marc Von Der Weid Antonio Martins Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Alexandre Aragão de Albuquerque Henry Burnett João Sette Whitaker Ferreira Ricardo Fabbrini João Lanari Bo Rubens Pinto Lyra Fernão Pessoa Ramos Yuri Martins-Fontes Samuel Kilsztajn Eduardo Borges Marcos Aurélio da Silva Chico Whitaker Dennis Oliveira Denilson Cordeiro Luiz Werneck Vianna Leonardo Avritzer José Costa Júnior Anselm Jappe Fábio Konder Comparato João Carlos Salles Tadeu Valadares Benicio Viero Schmidt Luciano Nascimento Carla Teixeira José Dirceu Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Martins Jorge Branco José Raimundo Trindade Luiz Eduardo Soares João Carlos Loebens Leda Maria Paulani Gerson Almeida João Adolfo Hansen Sergio Amadeu da Silveira Atilio A. Boron Eleutério F. S. Prado Heraldo Campos Ronald Rocha Manuel Domingos Neto Jorge Luiz Souto Maior Michel Goulart da Silva Marjorie C. Marona Eugênio Bucci Daniel Afonso da Silva Juarez Guimarães Matheus Silveira de Souza Vanderlei Tenório Luiz Roberto Alves Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michael Roberts Liszt Vieira João Paulo Ayub Fonseca Gabriel Cohn Antônio Sales Rios Neto Tarso Genro Alysson Leandro Mascaro Antonino Infranca Mário Maestri Luis Felipe Miguel Marcus Ianoni Andrés del Río Manchetômetro Remy José Fontana Tales Ab'Sáber Bernardo Ricupero Annateresa Fabris Andrew Korybko André Márcio Neves Soares Carlos Tautz Francisco de Oliveira Barros Júnior Mariarosaria Fabris Vinício Carrilho Martinez Valerio Arcary Paulo Nogueira Batista Jr Airton Paschoa Fernando Nogueira da Costa Gilberto Lopes Ricardo Abramovay Otaviano Helene Henri Acselrad Bruno Machado Rodrigo de Faria

NOVAS PUBLICAÇÕES