Pela revogação da lei 13.800

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Por OTAVIANO HELENE*

Considerações sobre o novo ensino médio e outros projetos do MEC

As mudanças do ensino médio feitas em 2017, o lamentável NEM (novo ensino médio), não é um projeto isolado. Ele faz parte de um conjunto de leis, iniciadas no governo Temer, que correspondem à criação de um sistema de ensino, educação, ciência e tecnologia e tomadas de decisão relativas a esses setores, adequado a um novo perfil de país.

Em outubro de 2015, o então PMDB lançou o documento “Uma ponte para o futuro”, que continha as principais diretrizes das ações governamentais, centradas na redução dos direitos, inclusive trabalhistas, na redução do setor público por meio das privatizações, na redução de impostos, no fim das vinculações constitucionais de gastos (educação e saúde, especialmente), na transferência de decisões de interesse público para o setor privado, entre tantas outras. Esse documento serviu para angariar apoios dos setores economicamente dominantes para o golpe de 2016 e a derrubada da presidenta Dilma Rousseff.

O projeto começou a ser implantado já no primeiro dia do período Temer, 12 de maio de 2016, com a fusão do ministério de Ciência e Tecnologia com o de Comunicação e o rebaixamento do CNPq na nova estrutura ministerial. O que seguiu a isso foi uma enorme redução do orçamento desse órgão que, em termos reais, caiu rapidamente para a metade ou menos do que havia sido em meados da década de 2010. Esse desmonte estendeu-se para a Capes e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

Os recursos totais dessas fontes de financiamento foram reduzidos, em poucos anos e em termos reais, para cerca da terça parte do que havia sido em 2015. Esse desmonte foi mantido no período Bolsonaro e se não foi muito intensificado porque essa enorme redução de recursos já era suficiente, pelo menos por ora. Esse foi um primeiro aspecto de construção de um novo projeto de país que, como veremos, está vinculado a outros.

Um segundo ponto a considerar ocorreu no final de setembro de 2016, com a medida provisória 746, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e criou o tal Novo Ensino Médio. Vale a pena lembrar que a elaboração da LDB de 2016 demorou muitos anos e envolveu uma grande participação da sociedade, enquanto a Medida Provisória em questão foi convertida em lei em poucos meses e durante um período de férias escolares: em fevereiro de 2017![1].

Essa rapidez na alteração da Lei de Diretrizes e Bases tinha como objetivo impedir o necessário exame da proposta pelas entidades estudantis, educacionais, cientificas e acadêmicas e a avaliação de suas consequências. Pouquíssimas foram, por isso, as manifestações da sociedade. Assim nasceu o novo ensino médio, cujas característica incluem: obrigatoriedade de ensino apenas de português e matemática na segunda metade desse ciclo educacional; o conteúdo previsto na base curricular nacional (a BNCC) não pode, por lei, ocupar mais do que 1.800 horas (uma lei que proíbe que se ensine mais é, realmente, fantástica!); a criação da figura de um professor por notório saber, notoriedade esta reconhecida pelos muitos sistemas de ensino do país com base em atividades práticas, inclusive no setor privado, sem exigência de licenciatura ou mesmo de curso superior.

Demorou algum tempo para que a sociedade, estudantes especialmente, percebessem, com clareza, as consequências práticas do Novo Ensino Médio (NEM). Mas, quando percebidas, em especial o aumento do abismo entre as escolas públicas e privadas que essa mudança provoca, a sociedade deixou clara sua discordância e os estudantes e educadores foram à luta e às ruas.

As alterações iniciadas no período Temer continuaram no período Bolsonaro, adicionadas a uma coleção estranha de ocupantes do que deveria ser um ministério dedicado à educação, e de propostas grotescas, mas seguindo na mesma linha de desmonte do sistema educacional público.

Há mais um ponto importante a costurar com os outros dois. Em janeiro de 2019, a lei 13.800, promulgada por Jair Bolsonaro, mas construída no período Temer, passou a permitir que entidades privadas doassem recursos para instituições públicas, cujos beneficiários e finalidades eram definidos apenas por elas, independentemente da instituição recebedora. Nunca foi proibido doação de recursos para instituições; e o que estava em jogo não era isso; o que se almejava (e se conseguiu) foi fazer com que tais entidades pudessem participar de decisões sobre os rumos de instituições públicas.

Assim, ficou possível que uma entidade pague para pesquisadores e estudantes desenvolvem projetos definidos por essa entidade, independentemente da avaliação por conselhos de departamento, comissão de pesquisas, congregações, conselhos universitários etc. Também podem participar de comissões internas de instituições públicas. Consequentemente, com pouquíssimos recursos essas entidades privadas (constituídas como institutos ou fundações) passam a ter um grande poder na definição de políticas no setor educacional e das Universidades e instituições de pesquisa públicas.

A lei 13.800 foi apresentada à sociedade como correspondendo à criação de ações filantrópicas e desinteressadas. (A justificativa que foi apresentada no período Temer para a Medida Provisória que antecedeu a lei é uma costura de mentiras, meias verdades e manipulações.[2]).[3] A presença de várias fundações privadas nas Universidades aumentou enormemente depois dessa lei e passam a ter influências em áreas estratégicas. É fácil encontrá-las atuando em “parceria” com pesquisadores, estudantes e docentes nas Universidades públicas e na elaboração de projetos junto com órgãos públicos.

Essas e muitas outras ações trazem como consequência um país fraco em conhecimento e, portanto, um país manipulável, submisso. Um país apenas produtor de matéria prima e fornecedor de mão de obra barata, cujas decisões estratégicas são tomadas por aquelas pessoas que dirigirão essas atividades, os donos e grandes acionistas das grandes empresas.

Se queremos ter a chance de construir um país soberano e independente, devemos lutar não apenas pela revogação do Novo Ensino Médio, mas de toda a lei 13417/2017, mas, também, pela recuperação dos órgãos de fomento à Ciência & Tecnologia e ao conhecimento em geral, pela revogação da famigerada lei 13.800 e pela derrota de todo o projeto de país construído no período Temer e Bolsonaro.

*Otaviano Helene é professor sênior no Instituto de Física da USP.

Notas


[1] As mudanças na LDB feitas pela lei 13.415, de fevereiro de 2017, estão neste endereço, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm#art1

[2] “Lei 13.800/2019: mais um problema?, https://jornal.usp.br/artigos/lei-13-800-2019-mais-um-problema?

[3] A MP 851, de setembro de 2018, pode ser consultada em https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/134246. A justificativa, que aparece nas páginas 21 e seguintes merece ser lida.


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