Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
A esquerda brasileira em busca de um novo projeto radical para o século XXI, precisa superar a acomodação e reconstruir um projeto revolucionário no Brasil pós-PT
1.
A história social, política e cultural da esquerda, pode-se dizer, teve seu nascimento nos anos 1840 com a obra de juventude de Marx e com a criação da Liga dos Justos seguida pela Liga dos Comunistas. (No Brasil é plausível afirmar que ela data do período que vai de fevereiro de 1906, no primeiro comício de trabalhadores em São Paulo até a fundação do Partido Comunista do Brasil no Rio de Janeiro, em 1922).
Desde então ela se constituiu de um conjunto intricado de avanços e retrocessos, vitórias (momentâneas) e derrotas, instantes áureos e conformismo renitente, compreensão teórica coerente e desordem de pensamento, situações de ofensiva e paralisia prática. Se considerarmos, de uma perspectiva marxista, que nossas expectativas existenciais somente estarão realizadas no comunismo, é provável, até que essa hipótese se torne realidade concreta, que as circunstâncias acima ainda terão que ser enfrentadas pela esquerda e aqueles e aqueles “representados” por ela.
E é assim que vem ocorrendo. No capítulo brasileiro desta história – resguardada todas as nossas particularidades – não há diferenciações gerais.
Em Cultura e Política, 1964-1969: alguns esquemas, Roberto Schwarz, narra o ciclo no qual a esquerda possuía, de certo modo, protagonismo social. A frase que abre o ensaio é, decisivamente, autoexplicativa, diz o crítico marxista (machadiano): “em 1964 intalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo”.
No desdobramento da derrota da cultura de esquerda imposta com violência física, uma guerra civil contra o povo e a esquerda nos termos de Paulo Arantes em 1964, o ano que não terminou, pelas forças civis-militares-empresariais, o pensamento crítico se reergueu com as greves do ABC, com as comunidades eclesiais de base, com o reposicionamento de nosso maior acadêmico à época (Florestan Fernandes – se transfigura em intelectual público, marxista revolucionário e publicista rebelde), com a criação da CUT-Central Única dos Trabalhadores, com a emergência de novos atores sociais e a formação do Partido dos Trabalhadores, o PT.
Dos anos 1980 a 2015-2016, a esquerda brasileira, grosso modo, teve nesse cenário, estendido no tempo histórico, diacrônico, seu núcleo formativo. Vale dizer, a estrutura de sentimentos da esquerda nacional esteve constituída pelo impacto social e político das circunstâncias subjetivas e objetivas da transição para a democracia – e posterior consolidação dessa com a competição que se configurou entre o PT (o agente político que catalisou com espírito ousado, tirocínio organizativo e representação partidário-institucional a esperança de milhões de trabalhadores e trabalhadoras) e as forças da direita e da centro-direita, a saber, o PMDB, o malufismo, o carlismo, o PFL e o PSDB.
É certo que nesse arco não se reproduziu a cultura crítica de temperamento radical, antissistêmico e socialista que Roberto Schwarz analisou no texto de 1969-1970; contudo, o período da Nova República apresentou momentos de esplendor para a esquerda.
Não se pode negar a sedimentação do habitus reflexivo nas universidades públicas e particulares de excelência (PUC’s em especial) com o alicerçamento das pós-graduações, bem como em centros de pesquisa (CEBRAP e CEDEC à frente); o surgimento da terceira geração de intelectuais negros e negras (Sueli Carneiro, Luiza Barrios, Cida Bento, Hedio Silva e tantos outros) que lutaram com o suor do rosto, denodo e competência por melhores condições de vida – contra o racismo mesmo – para os descendentes dos (ex)escravizados, com especial destaque (mas não só…) para as políticas de Ação Afirmativa que hoje ecoam positivamente pela sociedade brasileira como se pode ver (para quem quer ver…, obviamente) malgrado uma série de contradições; a ação de movimentos populares como o MST e o MTST; e, sobretudo, a chegada ao poder político do partido de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 e um conjunto de políticas sociais que mudaram a perspectiva de vida de um conjunto importante da população brasileira mais pobre.
O principal paradoxo dessa breve narrativa histórica – foi que esta configuração formativa se tornou ao longo de quatro décadas, absolutamente, adaptada ao establishment.
2.
A expressão terminante deste processo de adequação consciente pode ser averiguada em quatro contextos de nossa contemporaneidade: (i) a fatídica Carta aos Brasileiros de Lula em 2002 selando o compromisso do partido com a ordem social, econômica e política naquela ocasião; (ii) é sob governos da esquerda, nacional e o municipal, que as jornadas, insurreições, de junho de 2013 – que levou à rua de todo o Brasil uma massa insatisfeita e rebelde de jovens trabalhadores, estudantes e militantes sociais – irromperam, trazendo expectativas de transformação no horizonte imediato.
(iii) É uma indagação, como o maior partido político da esquerda latino-americana não consegui resistir com suas forças materiais (sindicatos, movimentos sociais, intelectuais, acadêmicos, políticos em prefeituras etc) ao golpe de 2016 contra sua presidenta eleita legalmente (não se está aqui a desprezar a reorganização incondicional da direita desde 2007 como demonstra o estudo de Camila Rocha do Cebrap, Menos Marx, Mais Mises)?; (iv) não é preciso ser nenhum teórico ao estilo de Vladímir Lênin, Antonio Gramsci, Frantz Fanon, Rosa Luxemburgo para entender o que significa o governo atual de Lula e do PT com os planos econômicos que vem implementando no país, na esteira da Frente Ampla e das eleições em 2022.
É evidente que o PT e Lula não estiveram sem companhia nessas situações, nem se desconsidera a derrota histórica do socialismo, da esquerda, com a Queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética – suas responsabilidades, no entanto, têm de ser analisadas com o tamanho mesmo da força política e social em que se transformou decorridas as quatro décadas desde os anos 1980.
Além disso, o que é um sintoma de nosso período de “derrota”, a contração dos hommes de lettres e femmes de lettres, do intelectual engajado que “fala”, “vocaliza”, pelos de baixo na definição de Jean-Paul Sartre nas conferências Em Defesa dos Intelectuais (pronunciadas em Tóquio e Quioto em 1965), e a transfiguração deles em professores e professoras universitários, pesquisadores que vivem as restrições, normas e convenções do espaço campi tão bem descrito por Russell Jacoby em O Últimos Intelectuais e técnicos do saber prático, impactam, consideravelmente, as reflexões críticas e as práxis emancipatórias.
3.
Nos termos de Jones Manoel, Heribaldo Maia e Vladimir Safatle, a esquerda brasileira – morreu. Assim, é o momento de reconstruí-la. (Custe o que custar.) Não será um processo, como afirma Perry Anderson para a esquerda mundial, fácil, “conquistado da noite para o dia”. Entretanto, o que se espera da esquerda no atual quadro de referência histórico, cultural e político é – “uma inclinação completamente distinta; insubmissa e cáustica diante das brutalidades do capital contra os desvalidos de toda ordem; irredutível e astuciosa frente a conjunturas específicas da luta de classes; intransigente e “violenta” no enfrentamento da direita e seus projetos de acumulação capitalista seguidos do extermínio dos mais pobres, em particular os de pele preta”.
Ora, necessitamos de fazer circular ideias e práxis radicais de esquerda: que choquem; que arrebatem; que impulsionem a rebeldia popular e intelectual; que transformem a universidade não em espaços de construção de técnicas para forjar pessoas egóicas, racistas, opressivas e produtoras de papers e sim em esfera de pensamento crítico, imaginativo, insubmisso, do povo; que revolucionem a política e a sociedade brasileira com vistas aos desvalidos que sofrem as implicações do sentido do capital no atual regime neoliberal de exploração. É urgente, portanto, reconstruir com coragem, ousadia e denodo a esquerda.
Ora, o Seminário Nacional – O Futura da Esquerda Brasileira: impasses e desafios, organizado pelo Centro de Estudos em Cultura Contemporânea e o Departamento de Filosofia da USP, respectivamente, na figura de quem escreve estas linhas e de Vladimir Safatle, tem, com a modéstia e o tamanho que lhe cabe, a intenção de contribuir para pensar, refletir e recompor a esquerda brasileira.
A iniciativa, a editoria do seminário, estabeleceu algumas premissas; quais sejam? Prioritariamente, construir uma esfera de enunciação para a esquerda radical e revolucionária, em seus vários matizes representativos (intelectuais já consagrados como Paulo Arantes; intelectuais/ acadêmicos/as e militantes jovens que se destacam no debate de esquerda e público como Letícia Parks, Jones Manoel, Douglas Barros, Jane Barros, e Márcio Farias com a observação de serem esses pessoas negras; filósofos críticos como Rodrigo Nunes que escreveu a melhor intepretação sobre Jair Bolsonaro e o fenômeno do bolsonarismo; teóricos e ativistas do autonomismo como Acácio Augusto e Alana Moraes; partidos de esquerda como o PSOL, o PCBR e o MRT, e políticos socialistas declarados, é o caso, aqui, do deputado federal Glauber Braga).
Seguindo a isso, não se pode discutir a esquerda sem que a esquerda predominante nos diga algo – nesse intuito, o incontornável cientista político André Singer, principal nome da esquerda brasileira para a New Left Review e para Perry Anderson, terá algo a nos dizer sobre o PT, ele estará acompanhado do já lendário político petista José Genuíno; ainda na chave da esquerda serena, plácida e judiciosa, as abordagens de pesquisadores do pensamento social brasileiro serão sugestivas de serem ouvidas – Bernardo Ricupero e Jessé de Souza foram convidados tendo esse objetivo no horizonte; além deles o jovem pesquisador da UFRRJ, Leonardo Belinelli dará seus aportes.
Por fim, o campo progressista terá voz no seminário; comedimento e ponderação é o que esperamos de Lilia Schwarcs, que vem contribuindo com obras que tratam do racismo e do autoritarismo que atravessam e formam a sociedade brasileira, Ynaê Lopes, historiadora da Universidade Federal Fluminense, com destacadas pesquisas sobre a questão racial expressas no monumental livro Racismo Brasileiro: uma história da formação do país (Todavia) e com intervenções nas discussões públicas através da sua coluna no @DW.Brasil, e Camila Rocha, do Cebrap-CCI, que além de mediar uma das mesas sobre democracia brasileira (mesa com Jean Tible, Luís Felipe Miguel e Luiza Erundina), supomos que fará comentários sugestivos a partir de sua pesquisa importante sobre a direita brasileira, os contrapúblicos, e de sua coluna na Folha de S. Paulo.
Contudo, neste artigo exponho apenas uma parte, um retrato explicativo, da lógica e do sentido que queremos construir com o primeiro Seminário Nacional – O Futuro da Esquerda Brasileira: impasses e desafios. Há outros nomes, organizações, personalidades públicas, militantes, ativistas e acadêmicos/as que estarão presentes nele como está informado na programação. Em síntese; esquerda radical e revolucionária, esquerda hegemônico-moderada e progressismo tratarão de vários assuntos, temas e perspectivas aos quais a esquerda tem de lidar e responder com urgência. Assuntos tais como: democracia brasileira, clima e ecologia, subjetividades políticas, ação e organização, pensamento social, o PT, o autoritarismo e a economia.
4.
Uma nota de esclarecimento. A opção da editoria do seminário foi por não tratar, ao menos nessa primeira edição e experiência, de temas singularizados pelo debate público. Ou seja, questões de gênero e sexualidade, raça e racismo, periferia e vozes periféricas, indígenas e marcação de terras, problemas da academia e da universidade etc.
O motivo para essa decisão está articulado com o próprio momento de derrota da esquerda e a busca por uma atitude inteiramente outra, radicalmente, distinta da que estamos empreendendo até aqui recentemente. Pois, é cômodo, e de certa maneira conveniente, estabelecer lugares e posições “naturais” para certos indivíduos e grupos sociais, sobretudo para a consciência moral branca e seu autoflagelo cínico que a constituem como afirma Asad Haider em As Armadilhas da Identidade; essas são marcas, infelizmente, de nossa presente esquerda padrão.
Evidentemente, os temas singularizados, seriam, como de costume, representados por mulheres e LGBTQIA+ (gênero e sexualidade), negros e negras (raça e racismo), jovens da periferia e líderes periféricos (periferia e vozes periféricas), indígenas (questão indígena e marcação de terras), academia e universidade com suas questões (homem e mulher branca bem posicionados no campo acadêmico, mas críticos a ele). Seria reproduzir nossos erros.
Optamos, portanto, pelo generalismo bem compreendido – pela universalidade radical, não-idêntica. Não estamos livres de cometermos erros e equívocos, sobretudo, quem escreve estas linhas.
Com efeito; a expectativa é que o seminário contribua, vivamente, na reconstrução da esquerda brasileira. Os desafios são enormes. As esperanças são muitas. As dificuldades são incontáveis. Os insucessos podem ser esperados. Os que mais precisam materialmente necessitam desse renascimento. Os sonhos são incomensuráveis.
Mas no espírito de Karl Marx no fim do Manifesto do Partido Comunista se referindo aos trabalhadores e trabalhadoras: não temos nada a perder, a não ser o que já está perdido (nossas derrotas), temos um país a ganhar…[1]
*Ronaldo Tadeu de Souza é professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ.
Texto lido na abertura do seminário nacional “O Futuro da Esquerda: impasses e desafios”.
Nota
[1] O texto foi redigido e preparado dias antes da realização do evento. Alguns nomes citados não puderam por um motivo ou outro estarem presentes. Não os retirei, pois eles guardam um sentido curatorial no modo em que foi pensado o seminário. Agradeço a Vladimir Safatle dois comentários pontuais ao texto. Esse, por fim e, entretanto, expressa uma posição intelectual (política) e autoral de quem o escreve.