Periferia conflagrada

Álvaro Barrios, Comédia, 1965
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Por HOMERO VIZEU ARAÚJO & PEDRO BAUMBACH MANICA*

Considerações sobre Cidade de Deus, Sobrevivendo no Inferno e Verdade Tropical

Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem
São jardineiros,
Guardas-noturnos, casais
São passageiros
Bombeiros e babás
Já nem se lembram
Que existe um brejo da cruz
Que eram crianças
E que comiam luz

São faxineiros
Balançam nas construções
São bilheteiras
Baleiros e garçons
Já nem se lembram
Que existe um Beco da Cruz
Que eram crianças
E que comiam luz.

(Chico Buarque, Brejo da Cruz)

1997

Estamos muito próximos dos anos 1990 para tentar uma avaliação histórica, mas é palpável a distância atual em relação ao sentimento que marcou o fim de século. Aquela mistura de exaltação yuppie com a decretação do fim da história, permitida pela vitória do chamado mundo livre democrático contra a opressão comunista, cedeu lugar a uma impotência apocalíptica, fazendo sentir o peso da ausência de alternativas, imaginárias ou não, ao capitalismo.

No Brasil, a redemocratização recente e a economia estabilizada geraram certa euforia no país, apesar da nota tétrica da violência urbana que explodia, dando notícia da desagregação urbana em curso. Pontualmente, estamos no auge dos feitos ambíguos alcançados na era FHC, combinando o fim da hiperinflação à estabilização democrática. Vistas as coisas de longe, o jogo de cena democrático teve fôlego curto.

Basta lembrar o suspeito apego de Fernando Henrique ao cargo, ao negociar no Congresso uma emenda constitucional que permitia sua própria reeleição, em um procedimento que não era só seu, na observação de Perry Anderson: “tal decisão o coloca na companhia de Fujimori e Menem, cujos exemplos ele seguiu, como mais um egoísta cheio de si responsável por degradar as tradições legais e as perspectivas democráticas de seu país”. (ANDERSON, 2020, p. 48).

As conquistas econômicas dos anos 1990, segundo o autor em pauta, também encontraram limites evidentes: “Na periferia do capitalismo, a lógica do modelo neoliberal põe qualquer país que o adote à mercê de movimentações imprevisíveis no mercado financeiro do centro; desse modo, as desventuras de FHC foram, em ampla medida, a crônica de um fiasco anunciado. Mas seu governo foi também excessivamente cauteloso e incompetente. A taxa de câmbio era insustentável desde o início, supervalorizada com objetivos demagógicos, e não se aventou a possibilidade de adotar nem algum nível modesto de controle de capital – algo que mesmo o neoliberalismo dependente ainda permite, e que ajudou a proteger a economia chilena das terríveis devastações que o Brasil viria a sofrer. De modo geral, a ideia de que a chave para atrair com sucesso o capital estrangeiro seria a desregulamentação e a privatização à outrance era extraordinariamente ingênua e provinciana”. (ANDERSON, 2020, p. 42)

A redemocratização pelo alto, acomodando as demandas mais recentes do capital com interesses atávicos de poder oligárquico, em aliança tragicômica com a centro direita que há pouco tempo respaldava os generais, foi justificada como a manobra possível naquela quadra política, mas o preço pago em termos de conformismo foi alto para as ambições da social-democracia tucana. Do ponto de vista econômico, a contenção inflacionária de fato teve efeito importante na vida dos mais pobres, porém a desproporcional euforia da classe média com o período cegava para a inviabilidade do projeto, que aleijava a já frágil indústria brasileira, e a longo prazo inócuo contra as dinâmicas destrutivas do capitalismo em sua fase atual.

Enquanto durou, o entusiasmo produziu fortes ilusões, lastreadas na esperança do fim da repressão estatal, aliada à aparente vitória das economias de mercado. A euforia envelheceu mal, mas o deslumbramento com o consumo inédito permitido pelo dólar pareado e o horizonte, também inédito, da garantia de direitos individuais resultou em uma perspectiva entre progressista, crítica, eufórica e conformista.

Esse otimismo é elaborado com ambivalência no excepcional Verdade Tropical (1997), de Caetano Veloso, o livro de memórias de grande fôlego narrativo e forte pegada ensaística. Transitando pelos contrários, ao modo da Tropicália, a prosa do livro repassa os anos 1960, tempo de maturação da geração do cancionista, refletindo sobre as tensões culturais e políticas sob o crivo do presente, que as altera.

A perspectiva que revisa o período em parte está explicitada literariamente na introdução do livro, comentada por Roberto Schwarz: “As primeiras páginas de Verdade Tropical se comprazem num show de inteligência propositalmente barata, que procura desnortear o leitor esclarecido. Aliás, o uso do mal-estar como um recurso literário problematizador é uma originalidade do livro. […] As idas e vindas são conduzidas com malabarismo e se não chegam a exaltar a superstição da nacionalidade, simpatizam com ela e rebaixam um pouco o bom senso na matéria”. (SCHWARZ, 2012, p. 106-107)

Caetano Veloso enuncia superstições numéricas, profecias sobre o destino nacional e relativizações, à esquerda e à direita, do período militar, para expor e reelaborar a experiência social proporcionada pelo “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso” (SCHWARZ 2012, p. 111), a qual em vários momentos é filtrada pelo otimismo de “fina estampa”. O conjunto produz alguns dos trechos cruciais e muito discutíveis do livro.

No contravapor da euforia, 1997 também marca o amadurecimento da cultura periférica, que reelabora de forma sofisticada o avesso da redemocratização e da estabilidade econômica: a brutalidade do cotidiano nos bairros de periferia em plena desagregação, vítimas da violência policial, das guerras do tráfico e da miséria econômica modernizada.

O ano é notável, com o lançamento de Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, e de Cidade de Deus, de Paulo Lins, com Inferno e Deus comparecendo nos títulos de obras de grande impacto e sucesso, o que talvez não seja acaso. Se não há porque forçar o argumento tentando achar analogias, é sintomático que as duas obras de autores negros sobre periferias sejam do mesmo ano, com Sobrevivendo versando sobre a periferia pobre paulista, enquanto a neofavela Cidade de Deus é carioca.

Se o catatau de Paulo Lins explora por dentro os dilemas da bandidagem, com seus bichos-soltos juvenis armados, cheirados e empreendendo no tráfico, os Racionais em vários momentos do disco tratam de execrar o tráfico, os assaltos e a vida bandida em geral, com sua sequência de abusos sexuais e de apelos à intoxicação, cuja dinâmica compõe o quadro de exclusão social, espoliação econômica e encarceramento generalizado. Em outros termos, a dinâmica acelerada e letal do tráfico é narrada por Paulo Lins em detalhes, com a rapaziada preta matando e morrendo com rapidez e frequência, o que aproxima o livro dos filmes policiais e de ação (não à toa o sucesso da adaptação ao cinema).

A prosa vigorosa do livro, salvo melhor juízo, rende efeito ambíguo em que a denúncia da violência e da pobreza vem acompanhada de alguma euforia celebratória da transgressão, aliada ao humor e aos efeitos da emulação da linguagem popular. Em Sobrevivendo no Inferno comparece algum humor, muito sóbrio e amargo, e o conjunto das canções está longe de ser jocoso. Em todo o álbum paulista talvez não se registre um escasso malandro, já os becos e ruelas do romance comportam uma galeria de tipos que vai do malandro ao cafetão, do bicho-solto ao otário, não excluída a possibilidade de acúmulo de funções.

No centro dos conflitos e tiroteios envolvendo bichos soltos e policiais está o tráfico e o controle da boca de fumo, que é um negócio a ser organizado e gerido, inclusive com entradas de débito e crédito; neste sentido os traficantes são jovens empreendedores lutando para enquadrarem-se na mercantilização da sociedade brasileira, com a competição capitalista reproduzida dentro da comunidade pobre.

No ensaio de Roberto Schwarz sobre o romance há uma avaliação precisa do procedimento: “O entrevistador e o pesquisador – profissionais ligados ao ramo das novidades sociais em formação, as chamadas “tendências emergentes” – ajudaram o artista a inventar o seu esquema, ao qual imprimiram certa precariedade literária, mas também a nota recentíssima e de ponta. São outros tantos sinais do tempo, que dão modernidade à construção. Com muito tino artístico, o trabalhador, o malandro, o bicho-solto, o cocota, os rapazes do conceito e a polícia se definem uns em relação aos outros, e não separadamente. São funções, em parte antigas, de uma estrutura nova em formação, na crista da atualidade, a pesquisar e adivinhar. É dentro dela que as personagens evoluem, se distinguem ou passam à posição oposta, assegurando pertinência fina à ficcionalização. Mesmo crua, a matéria das observações – cheirando ainda à caderneta de campo – cria complexidade quase que no ato: há o menino que prefere ouvir a conversa dos bandidos a rezar com o pai na Assembleia de Deus. Há o bicho-solto que por amor de uma preta bonita sonha com a vida de otário. Outro declara que “virar otário na construção civil, jamais”. Esse mesmo, pouco depois, vira crente e arranja emprego na Sérgio Dourado: a fé ‘passava a afastar o sentimento de revolta diante da segregação que sofria por ser negro, desdentado e semianalfabeto’. O mundo relacional armado pelo jogo das posições fica na interseção da lógica do cotidiano, da literatura de imaginação e do esforço organizado de autoconhecimento da sociedade”. (SCHWARZ, 1999, p. 207)

Ora, longe da distância estética, para os Racionais o tráfico e seu empreendedorismo assassino são algo a ser combatido e, no limite, exorcizado da comunidade. Forçando um pouco a nota, boa parte dos raps, com seus apelos e alertas, tentam promover uma espécie de desencapetamento da periferia assolada pelo ímpeto de consumo sem fundos. O diálogo implícito é interno à periferia, conversando com os sujeitos monetários sem dinheiro (na fórmula de Robert Kurz) em situação brasileira, que entre o desemprego, o emprego precário e humilhante e a sedução das mercadorias estão sempre a ponto de transgredir e serem colhidos pela degradação e violência, do que decorre em parte a importância da teologia da sobrevivência.

A condenação do consumo, de resto, tem forte acento ético de referência cristã, o que já fica indicado pela cruz na capa do disco, sem falar nos versículos bíblicos da epígrafe. Embora seja cristianismo enfático, não deixa de ser brasileiro — com saudável pragmatismo sincrético no último rap de ambição narrativa, “Fórmula mágica da paz”, Mano Brown dá a letra: “Eu tenho muito a agradecer// Agradeço a Deus e aos orixás// Cheguei aos vinte e sete/ Eu sou um vencedor, tá ligado, mano?// Agradeço a Deus e aos orixás.”

Os contrastes entre as obras são eloquentes e em parte reincidem no clichê comparativo entre a São Paulo da garoa e a cidade carioca maravilhosa e transgressiva, o que relativiza nosso argumento aqui, mas a sombria e generalizada pobreza degradante apaga muito o contraste e ressalta as semelhanças, acendendo um farol que também é sinal dos tempos.

Sobrevivendo no inferno

Pensando na disposição do álbum Sobrevivendo no Inferno,[i]o conjunto dos raps é enquadrado pelo mix religioso entre católico e afrobrasileiro, com abertura e fechamento em torno de uma das mais extraordinárias canções de Jorge Ben, “Jorge da Capadócia”. Ao que tudo indica ela remonta a um ponto de macumba a solicitar corpo fechado a Jorge, santo guerreiro, e a seu correspondente no panteão afrobrasileiro, Ogum. No início da canção a referência é explícita: “Ogunhê!// Jorge sentou praça na cavalaria/ E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia.”

No desfecho do álbum, o rap “Salve” vem acompanhado da melodia e arranjo reincidente de “Jorge da Capadócia”, o que equivale a fechar o corpo para repassar a realidade violenta da periferia, dando ares litúrgicos à estrutura do álbum. Enfatizando o receituário do evangelho ao som de Jorge Ben, o “Salve” se encerra assim:

Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo
Que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade
Um homem chamado Jesus
Só ele sabe a minha hora
Aí, ladrão, tô saindo fora
Paz.

Com o corpo fechado por Ogum, saúda-se um jesus moreno e crespo, pregador da igualdade nos marcos de um evangelho da sobrevivência, do que decorre um perfil sincrético e empenhado a ser exibido pelo “pastor-marginal”, para usarmos a fórmula provocadora de Acauam Silvério de Oliveira, no sóbrio ensaio que introduz o livro de letras do Sobrevivendo: “Em Sobrevivendo no inferno, a figura do professor autoritário dos primeiros discos cede lugar à postura do pastor-marginal, aquele que almeja “conseguir a paz de forma violenta” (“Diário de um detento”) portando uma “Bíblia velha, uma pistola automática” e “um sentimento de revolta” (“Gênesis”). Ao contrário do professor, de olhar distanciado e senhor da verdade, o pastor-marginal acolhe e guia seus irmãos pelo vale das sombras a partir da palavra divina, construída coletivamente por toda a comunidade de irmãos. Enquanto o objetivo do professor é transmitir a sua verdade, o pastor deseja salvar a alma dos irmãos desgarrados, livrando-os das mãos do demônio, mais próximo e mais destrutivo do que se imagina […]. O discurso é de aceitação e acolhimento, mas também de rigor, pois a salvação da alma depende de que o sujeito se comprometa a andar “pelo certo”. (OLIVEIRA, 2018, p. 31)

Na tentativa de nomear a perspectiva que organiza os raps, Acauam propõe uma figura caracterizada por um horizonte ético filtrado pelo cristianismo evangélico e pela disposição de revolta das populações marginais, o que, no limite, enquadra o álbum como uma “teologia da sobrevivência”, ritualística e conscientizadora. Curiosamente, configura-se então, enquanto rapper narrador, um pastor-marginal armado dentro de um álbum em que as extremidades são fechadas por umbanda e catolicismo. O contraste entre a proposta de caracterização evangélica proposto pelo crítico e os elementos explicitamente católicos do disco não é explorado, mas interessa aqui sublinhar o quanto a autoridade discursiva dos rappers no álbum é construída por uma mistura religiosa com a elaboração de uma experiência vivida que busca apresentar-se como real, borrando a separação entre autor e a voz que canta.

Por outro lado, no conjunto dos raps a disposição normativa a enformar a fratria possível dos manos, nos termos de Maria Rita Kehl (2000), não parece apontar para nenhuma prática coletiva minimamente estável. Não há associação de bairro, centro comunitário, escola, etc. que organize o protesto ou contestação, o que reforça o caráter abstrato do apelo aos manos disseminados por todo o Brasil. Eles constituem a juventude rifada pelo capital e aglomerada em periferias e favelas que se encontram segregadas em torno de centros urbanos que recebem as multidões destituídas, mas necessárias para dar conta de serviços mal pagos, na maioria informais e precários. Estaríamos aqui a ponto de retomar uma síntese da língua dos ps, com pretos, pobres, periféricos, e muitos deles presos, confirmando as patologias mais funestas da sociedade brasileira, indo do racismo arraigado à segregação e ao extermínio.

Os Racionais falam desde a periferia e se dirigem ao seu público interno, dedicando não muita atenção à cidade que os hostiliza, e que por sua vez é por eles repudiada. Walter Garcia (2004) aproxima essa hostilidade com a disposição de quem “canta com a cabeça levantada, como quem está pronto para revidar tudo” (p.172). “Revide” talvez seja o termo exato para a atitude dos rappers frente à situação social, condensando uma das tensões importantes do disco de 1997: a ausência de horizonte político, em sentido amplo, é compensada por uma postura de revolta, com efeitos profundos no imaginário periférico brasileiro, garantindo a permanência do álbum no repertório simbólico da cultura marginal contemporânea.

Pesando o conjunto dos fatores, há algo no horizonte normativo que estrutura o álbum, essa espécie de apelo religioso rigoroso, porém sincrético, emergencial, porém abstrato, algo pouco óbvio. A violência que encurta a vida dos manos não é analisada em seus vínculos internos, como opera parcialmente Cidade de Deus, sendo representada a partir de um apelo desesperado pela vida, pela interrupção da violência.

Ou seja, a fratria religiosa não existe de fato, e nem poderia existir, daí certo andamento exasperado do álbum, terminando na conclusão “Nossa lei é falha, violenta e suicida”, de “Fórmula Mágica da Paz”. Repare-se que não é a lei excludente da sociedade brasileira onde a tensão é concentrada, apesar de estar pressuposta, mas a lei interna da periferia, que parece ser ameaçada mais pela guerra entre os manos do que pelo extermínio policial militarizado.

“Tô ouvindo alguém me chamar”

O rap “Tô ouvindo alguém me chamar” ocupa a quarta faixa de Sobrevivendo. É cantado em primeira pessoa por um bandido em agonia de morte, após ser baleado à mando de seu antigo parceiro no crime. Acusado de ter cometido algum deslize, rompendo os códigos de solidariedade do crime, ele repassa sua trajetória em face da morte, defendendo-se da acusação enquanto tenta fazer sentido das motivações que levaram a sua morte iminente.

Um dado relevante é que, ao contrário do que acontece em praticamente todo o álbum, aqui não se enuncia abertamente conselho e alerta sobre os perigos do crime e da droga; não há espaço nesta rememoração para o aconselhamento, entre fraternal e agressivo, comum ao conjunto dos raps, tornando necessário encontrar a concepção moral em jogo na própria composição de seu enredo.

É um rap de teor confessional, digamos, que rende complexidade no conjunto do álbum ao abolir o dispositivo conativo, para lembrar as funções de Jakobson (MENDES, 2020), uma função conativa solidária e interna à comunidade que emerge entre os relatos e caracterizações provocativas dos pretos periféricos.

Já no título, o relato de “Tô ouvindo alguém me chamar” refere-se tanto a um alguém abstrato, uma espécie de chamado da morte, que será o refrão do rap, quanto à cena de morte do narrador. A primeira voz que ouvimos é um apelo anônimo, irônico e abrutalhado: “Aí, mano o Guina mandou isso aqui pra você!”, quando o presente é suspenso e entra a voz de Mano Brown, junto da base acompanhada pelo apito estridente de um monitor cardíaco, indicando que nosso narrador está dentro de uma ambulância, por um fio de vida:

Tô ouvindo alguém gritar meu nome
Parece um mano meu, é voz de homem
Eu não consigo ver quem me chama
É tipo a voz do Guina
Não, não, não, o Guina tá em cana
Será? Ouvi dizer que morreu

A dúvida sobre quem grita é seguida da associação à Guina, o parceiro que talvez esteja preso ou morto, embora o envio anunciado o garanta na condição de mandante da morte do narrador. O tiro seguido da associação duvidosa é o pontapé inicial da narrativa, que leva o narrador a rememorar Guina junto com sua própria trajetória no crime. Sem maior paradoxo, entre o narrador e Guina houve grande amizade, a ponto de Guina constituir-se uma espécie de instrutor (“Meu professor no crime”). Mas o assunto não é, curiosamente, o tráfico, apesar da ubiquidade da droga assim como no resto do álbum (“Cheirava pra caralho/Vixe, sem miséria”), e sim roubos e assaltos à banco.

Se levarmos em conta que a droga é um tema destacado do álbum, passado pelo filtro do alerta ao consumo degradante e à violência da disputa pelo empreendimento, não deixa de ser estranho a entrada de um rap de 11 minutos, sem refrão, sobre um tipo de crime que termina violento para quem o executa, mas a rigor não fere o resto da periferia gravemente. Talvez o tipo de aderência e compreensão que a narrativa em primeira pessoa oferece bloqueie a possibilidade do crime em questão ser tráfico, sob pena de cair no mau gosto. Ou melhor, o tráfico é inaceitável por afetar internamente os jovens da comunidade, enquanto o assalto é algo mais palatável como objeto narrativo, especialmente se atacar os playboys, o banco, a cidade hostil, etc.

A rememoração começa com avaliação do narrador em favor do parceiro Guina:

Puta, aquele mano era foda
Só moto nervosa
Só mina da hora
Só roupa da moda
Deu uma pá de blusa pra mim
Naquela fita na butique do Itaim
Mas sem essa de sermão, mano, eu também quero ser assim
Vida de ladrão não é tão ruim

A entrada do narrador na vida do crime vem pelo exemplo do amigo. Em um rap sem menções à favela, pobreza ou cor de pele, podemos interpretar a relação entre Guina e o narrador pela maneira como o parceiro é caracterizado, como o espelhamento de um mano pobre em outro que tem autoestima, consideração e acesso às mercadorias.

O poder de atração exercido pelo enfileiramento de moto, roupa e mulher em rimas toantes como propriedades, contrastando implicitamente com a carência de soluções materiais, impele ao crime. O interesse narrativo da reiteração de um lugar comum dentro e fora do rap como explicação sensata da violência urbana contemporânea é conformado na agilidade de caracterização da personagem, depurada da redundância de narrativas anteriores do grupo.

A seguir vem a narração do primeiro assalto a banco. A parceria entre os manos sai bem avaliada, apesar da/ou por causa da morte de um vigilante que reage:

Pela primeira vez vi o sistema nos pés
Apavorei, desempenho nota dez
Dinheiro na mão o cofre já tava aberto
O Segurança tentou ser mais esperto
Foi defender o patrimônio do playboy
Não vai dar mais pra ser super-herói

O gozo inédito do narrador com o poder desliza rapidamente para o comentário indistinto, pois poderia ser de Guina ou do narrador que começa a assemelhar-se ao parceiro, marcando a derrota revanchista. A morte vem acompanhada do comentário de quem sabe que a quantia roubada seria ressarcida, o que define o vigilante zeloso como praticamente um colaboracionista do capital. A disposição cínica e brutal modula o enunciado desesperado que virá a seguir:

Não vai dar mais pra ser super-herói
Se o seguro vai cobrir…Hehe… Foda-se e daí?
O Guina não tinha dó
Se reagir, bum, vira pó
Sinto a garganta ressecada
E a minha vida escorrer pela escada
Mas se eu sair daqui eu vou mudar
Eu tô ouvindo alguém me chamar

Depois do comentário a seco, que é um tanto efusivo e drástico, vem a avaliação do próprio corpo e do líquido corporal que escorre, a assinalar o ferimento que saberemos mortal em breve. A repetição da frase-título acompanhada de um desejo de sair do caminho desgarrado revela, na sua insistência, sua gravidade. O truque narrativo é eficiente e vai enquadrar a memória da parceria aventureira e nefasta.

A parceria dos amigos inclui também a execução de um ladrão “Robin Hood” querido pela comunidade e especializado em crimes de alto nível (“Ladrão, ladrão / E dos bons / Especialista em invadir mansão”). Na intenção de apoderar-se das suas armas e do butim de joias, a dupla invade à noite a casa do ladrão, este que intimidava e provocava comparações ao narrador. (“O cara é gente fina, mas eu sou melhor/Eu aqui na pior, ele tem o que eu quero”, “No desbaratino ele até se crescia, se pã ignorava até que eu existia”).

Após a contextualização dos motivos, a cena da execução é macabra, pontuada por um presságio que marca uma virada na narrativa:

Hum…
Se dirigia a mim
E ria, ria, como se eu não fosse nada
Ria, como fosse ter virada
Estava em jogo, meu nome é atitude
Era uma vez Robin Hood
Fulano sangue ruim, caiu de olho aberto
Tipo me olhando, me jurando
Eu tava bem de perto e acertei os seis
O Guina foi e deu mais três

A atitude misteriosa da vítima contribui para a paranoia crescente no narrador, que será seguida por uma execução a sangue frio, secundada pela escalada fálica do parceiro Guina, atirando em um corpo já morto. A brutalidade da cena, talvez a maior de toda trajetória do grupo, é seguida de imediato à entrada mais sensível do rap, voltando da violência para a história de vida do parceiro, que em algum momento da amizade relatou sua trajetória.

Entre explicações genéricas/triviais da origem pobre e violenta à transição ao crime com uma metáfora inteligente que espelha a formação letrada em negativo (“Longe dos cadernos, bem depois / A primeira mulher e o vinte e dois / Prestou vestibular no assalto do busão / Numa agência bancária se formou ladrão / Não, não se sente mais inferior / Aí, neguinho, agora eu tenho o meu valor”), a habilidade narrativa de Mano Brown explora oscilações entre arrependimento e ambição mais ou menos modesta, com o narrador agonizante alcançando complexidade:

Pensando bem, que desperdício
Aqui na área acontece muito disso
Inteligência e personalidade
Mofando atrás da porra de uma grade
Eu só queria ter moral e mais nada
Mostrar pro meu irmão
Pros cara da quebrada
Uma caranga e uma mina de esquema
Algum dinheiro resolvia o meu problema

A autopiedade é condescendente e busca amenizar a brutalidade da qual a personagem não abre mão, depois de se identificar em alguma medida com alguém de inteligência e personalidade. O arroubo patético virá a seguir, acompanhado do reconhecimento arrependido de que se está em um caminho sem volta (“Agora é tarde, eu já não podia mais / parar com tudo, nem tentar voltar atrás”).

A paranoia indicada, mas sem motivo aparente (“Estava enlouquecendo, não podia mais dormir”) acompanha a dinâmica cada vez mais violenta e degradada da vida do crime (“Precisava acalmar a adrenalina / Precisava parar com a cocaína”), combinando-se em sonhos antecipatórios de culpa, que prefiguram a morte do narrador (“Eu sonho toda madrugada / com criança chorando e alguém dando risada”, “Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei o lugar que um conhecido meu (quem?) ia me matar). A autoconsciência do beco sem saída e o desejo de mudar é enquadrado por um apelo religioso que o acompanha (“Será que Deus ainda olha pra mim?”).

A retomada do comentário moribundo e agônico vem junto da lembrança do irmão, que funciona como um duplo de Guina. Tendo seguido o caminho correto, o irmão constrói uma família e entra em uma faculdade (“Deve estar a essa altura / Bem perto de fazer a formatura / Acho que é direito, advocacia / Acho que era isso que ele queria / Sinceramente, eu me sinto feliz / Graças a Deus, não fez o que eu fiz”), contrastando com as imagens iniciais do “professor no crime”. O afastamento da família é clara marca de explicação, como apelo de comunidade possível frente à violência.

O último assalto narrado contrasta com os dois anteriores em tudo:

Me chamaram pra roubar um posto
Eu tava duro, era mês de agosto
Mais ou menos três e meia, à luz do dia
Tudo fácil demais, só tinha um vigia
Não sei, não deu tempo, eu não vi, ninguém viu
Atiraram na gente, um moleque caiu
Prometi pra mim mesmo, era a última vez
Porra, ele só tinha dezesseis

Enquanto a iniciação no crime era acompanhada de uma mistura de prazer com terror, agora temos apenas um horror que mal é descrito, sem ironia. Enquanto o assassinato era comemorado antes, agora é um garoto menor de idade que perde a vida, para o desespero do narrador. O desejo de parar é especificado com uma aproximação implícita com o irmão (“Não, não, não, eu tô a fim de parar / Mudar de vida, ir pra outro lugar / Um emprego decente, sei lá / Talvez eu volte a estudar”), a única outra figura masculina a dividir referência com Guina.

Logo na sequência temos revelado o conflito central da narrativa, do que decorre a situação do narrador:

Dormir à noite era difícil pra mim
Medo, pensamento ruim
Ainda ouço gargalhada, choro, vozes
A noite era longa, mó neurose
Tem uns maluco atrás de mim
Qual que é? Eu nem sei
Diz que o Guina tá em cana e eu que caguetei
Logo quem, logo eu, olha só, ó
Que sempre segurei os B.O.
Não, eu não sou bobo, eu sei qualé que é
Mas eu não tô com esse dinheiro que os cara quer
Maior que o medo, o que eu tinha era decepção
A trairagem, a pilantragem, a traição
Meus aliado, meus mano, meus parceiro
Querendo me matar por dinheiro

Infração grave na sociabilidade do crime, caguetar é traição punível por morte. O narrador negará até o final, mas há pistas de uma ambiguidade a acender desconfiança em relação ao narrador, que parece fazer-se de desentendido em vários momentos. A resignação, agora, sabemos vir acompanhada do reconhecimento de que a morte é inevitável (“Homem morto, cagueta, sem ser / Que se foda, deixa acontecer / Não há mais nada a fazer”).

A cena final, quase como um suicídio, vem acompanhada de uma espécie de epifania:

Essa noite eu resolvi sair
Tava calor demais, não dava pra dormir
Ia levar meu canhão, sei lá, decidi que não
É rapidinho, não tem precisão
Muita criança, pouco carro, vou tomar um ar
Acabou meu cigarro, vou até o bar [E aí, como é que é, e aquela lá, ó?]
Tô devagar, tô devagar
Tem uns barato que não dá pra perceber
Que tem mó valor e você não vê
Uma pá de árvore na praça, as criança na rua
O vento fresco na cara, as estrela, a lua

O desfecho do rap é patético, o assassino é um moleque “novato com a cara assustada” que carrega uma arma que é presente da vítima/narrador a Guina, a .380 tomada do ladrão assassinado ao início. As últimas linhas evocam mais de quatro tiros, antecedidos da frase de abertura “Aí, mano, o Guina mandou isso aqui pra você!”. O narrador continua com a mesma esperança de mudança, que sabemos agora tratar-se de um ferimento de morte, envolvido na violência circular do crime (“Eu quero viver, não posso estar morto / Mas se eu sair daqui eu vou mudar / Eu tô ouvindo alguém me chamar”). Logo depois, o som do monitor cardíaco se estabiliza.

O conjunto soa um tanto didático e enfático, que contradiz a situação de agonia e medo, mas a força de caracterização do conjunto macabro é notável, com encerramento que oscila entre autoengano e lucidez. Os prazeres e picos emocionais da trajetória criminosa e transgressiva são interrompidos por algum arrependimento e remorso, resultando no encerramento melancólico. Pensando na posição da faixa analisada no interior do álbum, partimos, novamente, da formulação de Acauam de Oliveira:

De forma bastante livre, e aproveitando-se das sugestões teológicas do disco, podemos esquematizar as várias partes desse “culto” […] Teríamos assim a seguinte divisão: cântico de louvor e proteção direcionado ao santo guerreiro (“Jorge da Capadócia”); leitura do evangelho marginal (“Gênesis”); entrada em cena do pregador do proceder, explicando (ou confundindo, a depender da necessidade) os sentidos da palavra divina (“Capítulo 4, versículo 3”); o momento dos testemunhos das almas que se perderam para o diabo, com resultados trágicos (“Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz comum”); intermezzo musical para velar aquelas mortes, interrompido por tiros que fazem recomeçar o ciclo; a pregação ou mensagem central (massacre do Carandiru) que liga o destino daqueles sujeitos ao de toda a comunidade (“Diário de um detento”), chave de compreensão do destino de todos e descrição do próprio inferno; exemplos do modo de atuação do diabo no interior da comunidade (“Periferia é periferia”); exemplos do modo de atuação do diabo fora da comunidade (“Qual mentira vou acreditar”). Ao final, um momento de autorreflexão sobre os limites da própria palavra enunciada (“Mágico de Oz” e “Fórmula mágica da paz”) e os agradecimentos a todos os presentes, verdadeiros portadores da centelha divina (“Salve”). (OLIVEIRA, 2018 p. 33)

Descontando a tensão ignorada entre o suposto caráter evangélico com as referências explicitamente católicas e afro-brasileiras, a sugestão criativa de uma continuidade litúrgica entre as faixas é também uma formulação preciosa. Pensando na condução de um culto efetuada por um pastor-marginal, o rap em questão, “o momento dos testemunhos das almas que se perderam para o diabo, com resultados trágicos”, funcionaria como um exemplo do resultado da vida no crime, um alerta.

A dimensão religiosa costura os relatos, com o culto/álbum sendo aberto e fechado por São Jorge/Ogum, e, se o conjunto de raps contém apelo didático explícito, o fatalismo sóbrio e agressivo pauta a paisagem desoladora e nutre a resistência.

Uma vez examinado, mas não esgotado, o caso do rap transgressivo e agônico, vale retomar o conjunto do argumento que sustenta a primeira parte deste texto. Em parte, propomos aqui um marco temporal que ilumina nossos anos 1990 e refrata com vigor a dinâmica mercadista acompanhada de estabilidade monetária e de providências democratizantes dos anos sob Fernando Henrique.

A memória ensaística de Caetano Veloso, de acabamento retórico notável e caracterização precisa e tensa de personagens e eventos, revelou um escritor repleto de recursos, não obstante mobilizar tais recursos em andamento ambivalente que vai da polêmica aberta com a esquerda à saudação mitológica da brasilidade, do exame refinado da cena cultural à superstição em torno do caráter democratizante das forças de mercado.

O conjunto desigual resulta às vezes em esforço crítico informado e afiado, mas acompanhado de celebração ofuscada da variedade e riqueza da cultura brasileira, que estaria pronta para estabelecer uma posição por fim relevante do Brasil no conjunto das nações. Este ufanismo paradoxal, até certo ponto herdeiro das provocações tropicalistas, contrasta com o mundo dos pretos, pobres e periféricos que encontrou nos Racionais MCs e em Paulo Lins um enunciado que emerge de dentro da periferia e revela tensões e desastres capazes de reorganizar boa parte das fórmulas e promessas atribuídas à modernidade celebrada. O ponto de vista interno à quebrada periférica, a que não falta lirismo sombrio, comporta inclusive algum desafio para a história da literatura brasileira do final do século XX.

*Homero Vizeu Araújo é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

*Pedro Baumbach Manica é mestrando em literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Referências


ANDERSON, Perry. “Fernando Henrique”. In: Brasil à Parte. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

GARCIA, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa, Revista de Literatura Brasileira. No. 4/5. São Paulo, 2004. p. 166-180.

KEHL, Maria Rita. “A fratria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo”. In: KEHL. M. R. (org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 209-244.

KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra. 1993.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

MENDES, Rodrigo Estella. Dialética do papo reto. SEDA – Revista de Letras da Rural-RJ, v. 4, n. 10, p. 138-159, 21 mar. 2020.

OLIVEIRA, Acauam S. de. “O evangelho marginal dos Racionais MC’s”. In: RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

SOBREVIVENDO no Inferno. Racionais Mc’s. São Paulo: Cosa Nostra, 1997. 1 LP (73 min).

SCHWARZ, Roberto. “Cidade de Deus” in Sequências brasileiras. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SCHWARZ, Roberto. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. In Martinha versus Lucrécia. 1a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Nota


[i] As letras citadas foram cotejadas com o livro de letras e as faixas, cabendo aos autores a separação em versos.


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