Pierre Clastres

Antonio Helio Cabral (Jornal de Resenhas)
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Por BENTO PRADO JR.*

Prefácio ao livroArqueologia da violência –. Ensaios de antropologia política”.

A outrem, mais competente, caberia a tarefa de apresentar e analisar de forma sistemática a obra de Pierre Clastres, parcialmente conhecida pelo leitor brasileiro, graças à tradução de seu livro A sociedade contra o Estado (Ubu Editora). Outro é o propósito desta breve nota, que pretende apenas apontar alguns momentos de seu itinerário intelectual, que (interrompido embora por uma morte precoce) marcou tão fundamente a etnologia, o pensamento político e a filosofia da França de nossos dias.

Tarefa menor que, estando ao alcance de quem teve a sorte de conviver com o autor desde o início da década de 60, pode ser útil ao leitor, dando-lhe uma visão (mesmo que impressionista) do movimento único que, atravessando etapas sucessivas, vem culminar em seus últimos escritos, reunidos neste volume. Como, com efeito, compreender plenamente uma obra sem reconstituir o andamento sinuoso que conduziu à sua expressão mais completa? Aquele caminhar, por vezes hesitante, que a versão final tende a obliterar, mas que não deixa de habitar o espaço aparentemente branco de suas entrelinhas.

Talvez não seja inútil recuar no tempo: como Lévi-Strauss, Pierre Clastres iniciou-se na etnologia a partir de uma formação prévia no campo da filosofia. Mas, ainda que tenha dado seus primeiros passos nesse novo domínio sob a inspiração do mesmo Lévi-Strauss, é certo que tal conversão não correspondeu a uma ruptura tão radical como a descrita em Tristes trópicos (Companhia das Letras), onde a filosofia ultrapassada não era conservada, mas rejeitada como retórica escolástica e estéril. No caso de Pierre Clastres, o respeito pelo mestre da etnologia francesa não o conduzia a uma denegação do passado ou da filosofia: a prática da análise estrutural não interrompeu o convívio, por exemplo, com a filosofia alemã.

Caso raro, para quem se lembra da atmosfera intelectual da época, quando o “estruturalismo” (o efeito ideológico ou mundano da análise estrutural) se apresentava como uma espécie de Juízo Final da Razão, capaz de neutralizar todas as ambiguidades da História e do Pensamento. Se não me falha a memória, no início dos anos 1960, mesmo durante sua dura convivência com os “primitivos” do Paraguai, Clastres não interrompeu sua meditação a respeito da Carta sobre o humanismo e dos Ensaios e conferências de Heidegger. Herético de primeira hora, e no momento mais vigoroso e dogmático da vaga “estruturalista”, não hesitava em vislumbrar, na hegemonia dos modelos linguísticos na prática das ciências humanas, algo como um eco da hegemonia do Logos, da ideia de que “a linguagem é a mansão do Ser” e de que o Homem “habita a linguagem”. Para a ortodoxia da época, docemente positivista, mais que heresia, tal sintonia seria perigoso sintoma de “irracionalismo” ou obscurantismo.

Avesso, assim, ao cientificismo do tempo, é compreensível que Pierre Clastres se distanciasse desde sempre da vertente puramente formalista por onde deslizava então boa parte dos discípulos de Lévi-Strauss. Mas essa heresia primeira não se fundava apenas numa questão de gosto filosófico ou, mais simplesmente, de uma opinião externa à prática científica. Detenhamo-nos, por um instante, no belíssimo ensaio “La Philosophie de la chefferie indienne” [A filosofia da chefia indígena], publicado em 1962, acessível ao leitor na edição brasileira de A sociedade contra o Estado, que exprime exemplarmente o primeiro momento da obra. O texto nos importa porque, sendo ponto de partida, revela com clareza o ponto de heresia que começamos a descrever: esse clinamen, cujo último resultado é o presente volume e a forma que o anima.

Não é apenas a presença da palavra filosofia no título (e que, no entanto, tem história), nem a ausência de qualquer algoritmo ao longo do texto, que nos interessam no momento (embora uma e outra coisa não sejam indiferentes na definição de um estilo). O que nos interessa nesse ensaio, que alcançou grande notoriedade logo após sua publicação, é o modo pelo qual ele põe em xeque a transparência da troca e da comunicação como regra de constituição da sociedade. Não cabe, aqui, resumir esse texto mais que conhecido, mas sublinhar a maneira sutil pela qual o autor mostra como o exercício do poder nas sociedades primitivas introduz um mínimo de obscuridade na clareza da pura reciprocidade. O problema é o do chefe, sujeito de um poder sem eficácia e de um discurso sem interlocutores.

Nesse ponto crítico, uma sociedade que se desdobra segundo o esquema da reciprocidade encontra sua sombra ou seu negativo: o lugar onde se interrompe qualquer comunicação. E, no entanto, esse negativo possui substância, já que é indispensável à costura da sociabilidade. A lição que daí se tira é a seguinte: não basta construir os modelos da troca para captar o ser dessa sociedade. Para tanto, é preciso captar algo como uma intencionalidade coletiva, mais profunda do que as estruturas que a exprimem, a qual funda justamente uma sociabilidade que cerca o poder como negativo, para prevenir sua separação do corpo social, assim como é capaz de transformar a linguagem (que era signo) em valor. Desde o primeiro momento, ontologia do social e reflexão sobre o Poder estão intimamente associadas.

Mas, com essa decisão teórica, não é apenas o famoso império da “estrutura” que entra em crise, pois, com ele, é o fio diacrônico das “filosofias da história” que sofre um grande abalo. Não é paradoxal, com efeito, que uma sociedade se organize para impedir o nascimento de uma figura que ela desconhece? O tempo, tal como nós o representamos comumente, não é severamente subvertido? Presente, Passado, Futuro dão cabriolas e parecem embrulhar-se de maneira incompreensível.

Mas, simplifiquemos e datemos: é no fim da década de 60 e no começo da seguinte que Pierre Clastres abre o segundo momento de seu itinerário. É aí que começa a tirar os efeitos teóricos mais gerais de seus primeiros trabalhos e passa da pura etnologia para aquilo que poderíamos chamar de crítica da etnologia. As chamadas ciências humanas pensariam, hoje, as sociedades primitivas de modo diverso da filosofia clássica? De fato, a metafísica clássica (e as ciências humanas dela dependentes) habituou-nos a pensar o tempo como linear e a história como cumulativa: imaginemos uma linha ascendente, que conduz do menos ao mais, do nada ao ser, do possível ao real.

Já Bergson denunciava uma coisa e outra, particularmente em sua bela crítica da ideia do nada e da ilusão retrospectiva. Decifrar o passado como um presente incompleto é descrever o passado como perfurado pelos alvéolos do nada, diria Bergson. Não é muito diferente o que diz Clastres a respeito da representação dominante das sociedades sem Estado: esse organismo que abriga, em seu interior, o volume de uma pura ausência. Mas será bem assim, ou tal proposição deriva da ilusão retrospectiva e das miragens da ausência, fantasmas de nosso pensamento? Ilusão retrospectiva, miragem da ausência, concepção do Estado como destino da humanidade – todos esses pré-juízos estão entrelaçados na representação tradicional do primitivo e da Razão, que permanece viva em grande parte da etnologia, na filosofia da história e da política em nossos dias.

Mas – esta é a insidiosa pergunta formulada por Pierre Clastres – e se tentássemos pensar de maneira diferente? Por que não pensar a sociedade primitiva em sua plena positividade, liberta da relação linear que a condena ao seu outro ou a seu depois? Com essa questão, o panorama problemático muda de figura: o que se descreve como carência pode perfeitamente ser descrito como a autarquia de uma sociedade indivisa. O nascimento do Estado não precisa necessariamente ser considerado como a passagem do vazio ao pleno; pode ser visto, mesmo, como queda, passagem da indivisão para a divisão.

Alguém poderia perguntar: “Se assim é, como dar conta do nascimento do Estado?”. Prudente, Pierre Clastres não pretende responder (embora suas últimas pesquisas sobre a guerra talvez caminhassem nessa direção, como se pode adivinhar em Arqueologia da violência, cap. II, infra). Mas podia descartar, pelo menos, algumas respostas correntes. Principalmente a que vê o fio condutor da passagem ou a lógica do salto na calma continuidade da história econômica. Como a resposta que é uma dentre as respostas fornecidas pelos clássicos do marxismo (cf. Claude Lefort. As formas da história, Brasiliense) e que veio a tornar-se única no marxismo hoje dominante. É o que transparece, por exemplo, no prefácio ao livro de Marshall Sahlins e nos vários textos que polemizam de maneira tão alegre e cruel com os etnomarxistas. Ao contrário dessa visão, não é a divisão econômica que cria as condições do poder separado; pelo contrário, é a emergência do Estado ou da divisão social que desencadeia a Necessidade, destino e economia.

Eis, portanto, que este itinerário fecha seu círculo: saindo da filosofia, passando pelo trabalho etnográfico de campo, lá descobrindo a articulação entre a ontologia do social e a reflexão sobre o Poder, ampliando o alcance teórico do primeiro passo na direção de uma crítica das ciências humanas, somos devolvidos às questões fundamentais da filosofia política (em tempo, se Clastres era leitor de Heidegger, sempre foi leitor atento da Filosofia do direito de Hegel e do Contrato social de Rousseau).

Antes mesmo da publicação, em 1974, de A sociedade contra o Estado, seus ensaios já haviam sido acolhidos como ponto de referência essencial da filosofia francesa. É o que eu podia perceber, acompanhando os cursos das universidades de Paris, já em 1970, antes talvez do que o próprio Clastres, muito ocupado em seu trabalho solitário. Mas, repito, o círculo se fecha com o terceiro momento da obra, e sua expressão exemplar é o texto sobre La Boétie, também presente neste volume.

O Inominável, expressão que figura no título desse ensaio, dá o que pensar. Pois não é apenas a uma antropologia política que se chega ao fim do itinerário (ou ao reinício de uma perpétua reiteração), mas à imbricação entre antropologia, política e metafísica – ou melhor, à arqueologia simultânea desses discursos, hoje dispersos. Se o etnólogo era obrigado a abandonar sua sociedade, a exilar-se numa sociedade outra, para melhor compreender a sua, o pensador, ao contrário do cientista, é obrigado a desertar o pensamento político presente, buscar seu outro no passado, para melhor assimilar aquilo que rumina no presente. Principalmente se esse outro, como La Boétie, começa por colocar em questão a evidência que normalmente (dos clássicos aos contemporâneos) se via como ponto de partida: o paradoxo, por ele formulado, da submissão como objeto de desejo, e não como destino sofrido do exterior. Tarefa inútil, talvez, para os cientistas políticos, para quem a política não oferece mistério, mas indispensável para aqueles a quem a história contemporânea obrigou a desconfiar de suas mais caras certezas. O que é o Poder? Seria esta uma pergunta vã?

* * *

Fixei três pontos e tracei uma linha, de maneira grosseira, como soem fazer os leigos. Sobretudo não pude sequer evocar a fisionomia viva do autor e do homem livre que deixou passar por seu pensamento (não recalcou) o horror dos dois “mundos” que dividem nosso planeta. Pelo menos mostrei alguns dos momentos do impacto que o pensamento de Pierre Clastres exerceu sobre seu amigo brasileiro.

*Bento Prado Jr. (1937-2007) foi professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros livros, de Alguns ensaios (Paz e Terra)

Referência

Pierre Clastres. Arqueologia da violência – Ensaios de antropologia política. São Paulo, Brasiliense, 1982.

 

 

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