Podemos falar de herança cultural africana no Brasil?

Imagem: Julian Vera Film

Por MARCIO DOS SANTOS*

Não é um desafio valorizar a cultura africana no Brasil, é, antes de mais nada, entender onde essa cultura está

Nesse último dia 03 de novembro — mês da consciência negra — os alunos que participaram do primeiro dia da prova do Enem foram desafiados a redigir uma redação com o tema: “Herança Africana no Brasil”. No meu entender, o tema trouxe uma carga de dificuldade importante, já que fala sobre algo complexo, que parte de um processo histórico permeado por encontros e desencontros, e o que é pior, afirma-se o risco de obscurecer uma questão que se apresenta mais imediata na nossa sociedade devido aos prejuízos causados por um passado que durou mais de trezentos anos. Isto é, outra herança, a herança escravista que tem sido apagada da história nos últimos anos e enfrenta problemas de esvaziamento quanto a causas defendidas por seus descendentes na contemporaneidade, marginalizados por esse processo. Não se trata de um desafio valorizar a cultura africana no Brasil, trata-se, antes de mais nada, entender onde essa cultura está.

Li alguns textos, de alguns professores, inclusive, sobre o tema da redação citando artistas como Emicida, que não é africano, e se referindo a manifestações culturais como o funk e rap — que também não são originalmente africanos — como uma espécie de resistência dessa cultura ainda renegada em nosso país.

Devemos entender cultura como o “resultado de múltiplos conceitos, às vezes contraditórios”, de acordo com o dicionário de conceitos históricos de autoria de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (Ed. Contexto, 2013, p. 85), os autores asseveram, ainda na mesma página do dicionário, que “o significado mais simples desse termo afirma que a cultura abrange todas as realizações materiais e os aspectos culturais espirituais de um povo”, esse conceito é atribuído a Edward Taylor no século XIX.

Quanto a isso ainda podemos afirmar que “Essa definição foi contestada por Franz Boas, por encontrar nela características de hierarquização de culturas como se a cultura ocidental estivesse acima das outras. Franz Boas continua afirmando que toda cultura tem uma história própria, que se desenvolve de forma particular e não pode ser julgada a partir da história de outras culturas.” Esse pensamento influenciou obras como Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. Mas precisamos entender que a presença do africano no Brasil possui, antes de mais nada, uma historicidade, e é sobre essa historicidade que pretendo falar, pois o fato desse pais ter sido uma colônia europeia (Portugal, séculos XVI-XIX) e do negro ser uma parte importante da formação do nosso povo, como muitos autores destacam, por exemplo, entre outros, Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala), Darcy Ribeiro (Formação do povo brasileiro) Lilian Moritz Schwarcz (Espetáculo das raças), o historiador norte americano especializado em História do Brasil do início do século passado Thomas Skidmore (Preto no Branco) e tantos e tantos outros pensadores do problema do negro na sociedade brasileira, ainda assim vejo com muita dificuldade falar da uma herança cultural africana no Brasil, uma vez que essa cultura passou por um processo de desconstrução, hibridização e aculturação, tendo o mesmo acontecido aos povos originários do País.

Quanto a isso, cabe perguntarmos se o mesmo não se dá com a cultura europeia, o que não me parece ser o caso, já que o idioma que falamos é o português e o Brasil é um país católico, com um crescimento cada vez maior de igrejas pentecostais e neopentecostais que se formaram como subproduto do protestantismo, que têm base europeia.

Logo ao chegar em solo americano, em consonância com o historiador Charles Boxer em sua obra Idade de ouro do Brasil, onde o autor se debruça sobre o período do setecentos da colonização brasileira, é feita uma referência, ainda no primeiro capítulo do livro, quanto ao fato de terem os Africanos, que seriam agora escravos, o seu nome modificado através do rebatismo, onde recebiam nomes católicos, apenas para ilustrar a violência sofrida desde o momento em que esses homens e mulheres atravessavam o Atlântico nos navios que são chamados pelo autor de tumbeiros — devido aos altos índices de mortalidade dos indivíduos que eram trazidos para o continente na forma de escravizados. O nome é a nossa identidade, assim como nossa língua é o traço mais marcante da nossa cultura, o rebatizar os escravos era também sinônimo da coisificação pelo qual passaram essas pessoas que foram exploradas de várias maneiras pelos europeus que se julgavam seus senhores.

As senzalas abrigavam enorme diversidade cultural entre seus membros, tanto que por vezes era impossível que uns se comunicassem com os outros por questões de diferença de idioma, o que parece proposital, exatamente por garantir a possibilidade de desarticulação entre africanos que, eventualmente, tivessem como objetivo se levantar contra seus senhores. Vários são os episódios de senhores que acoitavam essas pessoas deixando-as a beira da morte, e muitos outros que se referem à violência sexual praticada contra as mulheres africanas que acabavam com isso gerando filhos bastardos que eram vistos, na época como mulatos, onde a cor da cútis, se mais clara, garantia à criança a possibilidade de uma vida melhor do que a vida da sua mãe escravizada. O “mulato” de pele escura tinha outra sorte. Bem trabalhou essa questão Aluízio de Azevedo em seu livro O mulato, onde um homem busca aceitação e o amor de uma moça branca no norte do país, e, embora tenha ele estudado e educado segundo os altos costumes europeus, além de ter posses, o simples fato de ser um “mulato” de pele escura o impedia de concretizar aquele amor que para ele fora proibido pelo simples fato da sua cútis ser escura.

É claro que não podemos esquecer que os negros no Brasil contribuíram muito para a formação da nossa cultura, como é o caso do samba — que nasce nas senzalas — e a capoeira. Samba esse que mais tarde seria apropriado pelas elites brancas no Carnaval ainda durante a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, que tinha como intuito domesticar, aquilo que para as nossas elites se apresentava como selvagem. Surgiram religiões de matrizes africanas como o Candomblé e a Umbanda, mas é preciso esclarecer que essas religiões são de matrizes africanas e de que elas não existem e nunca existiram na África, sendo, portanto, uma manifestação cultural afrobrasileira que só tem no Brasil o crédito por sua existência, muito, é claro, pelo processo de assimilacionismo e aculturação pelo qual passou a cultura africana no país. O fato de termos uma religião no Brasil como o Candomblé e outras manifestações culturais e artísticas como o samba, só mostra a resiliência do negro diante das adversidades encontradas em um território hostil as suas expressões culturais e como esses encontraram suas formas de resistência.

Hoje, de acordo com uma reportagem do portal BBC Brasil, o catolicismo e outras religiões de origem cristã são as que mais crescem na África enquanto o cristianismo despenca na Europa. A reportagem é de 8 de setembro de 2019, de onde destaco um trecho: “Outro estudo, publicado pelo Centro de Pesquisas Aplicadas dos EUA, apontou que entre 1980 e 2012 o número de católicos no mundo aumentou em 57% para 1,2 bilhão, mas o crescimento foi de apenas 6% na Europa, contra 283% na África. O estudo calcula que o continente abrigue quase 200 milhões de católicos (quase toda a população do Brasil)”. Além da igreja Católica, a presença da IURD em países como Angola também precisa ser apontado, já que a influência da igreja naquele país gerou enormes conflitos entre missionários angolanos e brasileiros, de acordo com o portal The Intercept Brasil em uma reportagem intitulada “Reviravolta em Angola: Edir Macedo retoma controle da Universal no País” de 3 de maio de 2024.

Tais questões só reforçam a ideia de que falar de herança cultural africana no Brasil é quase impossível, devido ao processo de desarticulação dessa cultura que foi por séculos apagada, não representando um desafio para a cultura desse continente nesse país, mas o próprio desafio no sentido de encontrar essa cultura de forma genuína, e esse problema se dá, na atualidade, no próprio continente africano vitimado pelos séculos de colonialismo e neocolonialismo sofrido por meio dos países imperialistas europeus no século XIX e no século XX. podemos falar de uma cultura afrobrasileira com certeza, mas quanto a uma cultura africana, pelo que expus acima, me parece difícil já que não a encontramos, aparentemente, em sua forma original em nenhum lugar do país.

Concluo afirmando pouco conhecermos sobre uma cultura que seja de fato africana em sua origem no Brasil e no mundo e que, portanto, não temos como discutir essa herança no Brasil. Aliás, falar sobre isso, obscurece uma outra herança no país, essa marcada pela violência e pelo crime contra toda uma diversidade de etnias — como é mais adequado afirmar — que foram os mais de trezentos anos de escravidão que fizeram parte desse país, onde suas consequências nefastas são observadas por todo lugar e onde, de forma sistemática, vários atores governamentais e organizações, procuraram ocultar essa que é parte do nosso passado recente. No Hino da República — quase um ano apenas depois da abolição — lemos em um de seus versos “Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país”. Tenho essas, como as marcas do esquecimento, próprias de um povo que muito deve à herança africana que foi apagada por vários dos nossos atores sociais em um longo e sistemático processo de esquecimento.

*Marcio dos Santos é professor de história da Rede Estadual de São Paulo (Seduc).

Referências


SILVA. Kalina Vanderlei e SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos Históricos. 3ed. São Paulo. Editora Contexto. 2013.

RIBEIRO. Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 1ed. São Paulo. Editora Companhia das Letras.

SCHWARCZ. Lila Moritz. Os espetáculos das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870 – 1930. São Paulo. Companhia das Letras 1993.

SKIDMORE. Thomas E. Preto no branco: Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 1ed. São Paulo. Companhia das letras 2012.

FREYRE. Gilberto. Casa grande e sensazala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. 51ed. Rev. São Paulo. Global 2006.

AZEVEDO. Aluízio. O mulato. 1857-1913. São Paulo. Ciranda Cultural. 2010.

VELLOSO. Mônica Pimenta. Os Intelectuais e a politica cultural do Estado Novo. Revista de Sociologia e Política n. 9, 1997.

BOXER. C.R. Idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial.

2ed. Companhia Editorial Nacional. São Paulo. 1969.

Sites:

https://ineac.uff.br/index.php/noticias/item/901-uff-e-a-intolerancia-as-religioes-de-matrizafricana-nenhum-estado-e-neutro#:~:text=Foto%3A%20O%20Candombl%C3%A9%20%C3%A9

%20uma,N%C3%A3o%20existe%20na%20%C3%81frica

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49598865

https://www.intercept.com.br/2024/05/03/reviravolta-em-angola-edir-macedo-retoma-

controle-da-universal-no-pais/https://www.letras.mus.br/hinos/hino-da-proclamacao-da-republica/


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