Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA*
Prefácio do autor
Não há a intenção de garantir, ainda que fique o autor tentado a fazê-lo, a produção de um texto que possa ser enquadrado na categoria que Muniz Sodré cunhou como literatura culta. Por outro lado, não pretende escrever literatura de massa,[i] até porque esta pertence à prosa, e o que o leitor tem em mãos é um livro de poemas. Também não existe a intenção de produzir uma fancaria literária (termo usado por Machado de Assis).
O autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas define o fanqueiro literário nos termos seguintes: “O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência” [ASSIS, 1859-1863-1946, p. 14].
Contudo, os procedimentos estéticos de um gênero estão presentes no outro: “Há também o best-seller de boa qualidade técnico-literária, que não reduplica diretamente nenhuma outra grande obra ou o real-histórico” (SODRÉ, 1988, p. 59). Poderia a poesia, que, ao lado da prosa, forma um dos binômios mais básicos dos gêneros literários, ser enquadrada na literatura de massa? Poderia haver uma poética de mercado hipermoderna e neomarginal que, dentro da indústria livreira (e dentro da indústria cultural) fosse capaz de se popularizar tanto quanto o best-seller por meio da exploração de temas da indústria informativo-cultural e da representação de conflitos institucionais?
De certa forma, em determinada escala, não estaria a indústria fonográfica fazendo isso? Se sim, isso seria motivo para demérito? E o poema em prosa? Segundo a professora Olga Kempinska (2012, p. 170), foi criado por Aloysius Bertrand. No poema em prosa, não há propriamente uma narrativa, mas nele se “encena a manifestação de uma subjetividade” (idem, ibidem, p. 170).
Talvez esse tipo de discussão nem tenha razão de ser (ou talvez não tenha muita): fala-se em crise dos gêneros literários. Na verdade, em tempos de desliteraturização (perda de prestígio da literatura) e oba-oba de tecnologias de informação imediata — tão celebradas pela Pedagogia moderna em departamentos universitários e escolas da educação básica em obediência cega às ordens do Banco Mundial —, fica difícil iniciar qualquer discussão sobre literatura ou sobre o que ela é ou o que não é; por isso pode nem valer a pena identificar o gênero (da mesma forma, pode não valer a pena falar em cânone ou cânones).
Não tenho a intenção de apenas escrever de modo poético; contudo, tenho ojeriza ao pragmatismo dos gêneros não literários,[ii] que são incapazes de gerar estranhamento, isto é: de gerar um olhar novo para o objeto ou conteúdo, e incapazes de gerar a singularização de objetos e conceitos, porquanto tais gêneros reforcem o banal, o imediato. “A automatização”, escreve V. Chklovski (1978, p. 44), “engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo à guerra”.
Há quem diga que as motivações políticas, assim como qualquer outra motivação, por serem extrínsecas (externas) ao texto literário (e também ao não-literário), são um mero pretexto ou desculpa para usar procedimentos estéticos e técnicas narrativas (cf. EAGLETON, 2006, p. 5). Essa era a teoria dos formalistas russos, porém o inverso também acontece: a literatura acaba sendo um pretexto e também um suporte ou veículo para convicções políticas, didáticas e sociais que nela são registradas para que se afronte o status quo. É que o autor é movido por um impulso interior de pura raiva, de puro ressentimento.
Tal posicionamento faz do escrito um panfleto? Talvez, mas por que isso seria ruim? Obviamente não se trata de promover “o fascismo, o racismo, e todos esses tristes, idiotas e trágicos ismos” (VERÍSSIMO, 1996, p. 29): pelo contrário: trata-se de oferecer, dentro do jogo polifônico, novas visões sociais de mundo.
Toda ideologia, dividida que é em várias ideologias em forma de atravessamentos ideológicos ou redes de sentidos que se reconstituem no inconsciente, “não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante [CHAUÍ, 1997, p. 3].
Qualquer ideologia é uma visão social de mundo, todavia, nem toda visão social de mundo é ideológica; portanto, não vendi a pena ao diabo. Os imbecis que lutam em igrejinhas de fundo de quintal contra a liberdade sexual e a subgente que vê pedofilia em tudo obviamente vão dizer que tenho ideologia, mas não sabem o que fazem nem o que dizem: dizem apenas o que sabem e, assim, revelam a ignorância maciça de que talvez só a intervenção divina possa livrar a pobre gente, a quem devo “lançar as nossas piores injúrias, os gritos e as blasfêmias que ardem dentro de nós” (CARDOSO, 1969, p. 227).
Já aos acadêmicos de classe média que insistem em separar a literatura da ideologia, da historiografia e da política devo dizer que não me interessa o que pensam: tais almas penadas não percebem que sua atitude já é em si ideológica no sentido de que confirma o senso comum. É que conhecem tão só o conceito mais vulgar de ideologia, que desde Napoleão é usado para desqualificar e crucificar quem critica as ideologias. Tais pobres-diabos, apesar de terem erudição, não aprenderam que a ideologia silencia, por exemplo, que são vítimas da mais-valia e da exploração praticada por seus superiores, aos quais tais intelectuais servem como capitães do mato.
Também não aprenderam que a ideologia é silenciosa na medida em que não diz que é ideologia, porque, se se revelasse como tal, deixaria de cumprir sua função: a de garantir o status quo. Por isso ela se apresenta como “ciência” ou religião. Meus versos só farão ideologia na medida em que confirmarem os estúpidos valores burgueses, que em última análise são também os valores da estúpida classe média conservadora e dos pobretões malfadados de direita. Se fizerem isso, não terá sido por premeditação, mas sim por falha do autor, que, por mais que não queira, também é atravessado e interpelado pela ideologia (visão social de mundo dominante).
Tão poderosa é, que já se dá fumos de discurso revolucionário. Não é à toa que, hoje, adolescentes e jovens adultos defendem proibições, repressões e o apontar o dedo, como se todos devessem ser politicamente corretos ou o mundo devesse ser feito de anjos e santos. Numa era em que as redes sociais e as tecnologias de alienação são ferramentas de vigilância e controle em escala mundial, criou-se a cultura do cancelamento, tão do gosto de jovenzinhos que se sentem donos da verdade e cultuam a juventude como se fosse eterna.
Não lutam por liberdade: lutam por proibições e coerções ao mesmo tempo que carecem de ritos de passagem. Tais jovens são os ativistas de Iphone, presos a cangas. Reprimem a sexualidade tanto quanto os adolescentes de igreja, muitos dos quais preservam a virgindade sem que deixem de se masturbar. Não suporto essa hipocrisia. No que diz respeito à sexualidade, sou que nem Macunaíma, o herói da nossa gente, o herói sem nenhum caráter. Quero ganhar dinheiro e amar lindas mulheres, que eu admiro nas ruas, nas praias e vários outros locais públicos. Quero ser igual ao Mestre Kame, de Dragon Ball, e ao Mestre Jiraiya, o Sábio Tarado, de Naruto.
De um modo ou de outro, quero escrever literatura. “Literatura”, declara Terry Eagleton (2006, p. 14), “talvez signifique […] qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. Como os filósofos diriam, “literatura” e “mato” são termos antes funcionais do que ontológicos: falam do que fazemos, não do estado fixo das coisas. Eles nos falam do papel de um texto ou de um cardo num contexto social, suas relações com o ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente, a maneira pela qual se comporta, as finalidades que lhe podem ser dadas e as práticas humanas que se acumularam à sua volta. “Literatura” é, nesse sentido, uma definição puramente formal, vazia.
O teórico britânico faz uma advertência sobre a fragilidade do conceito segundo o qual a literatura é uma escrita imaginativa no sentido de ficção (2006, p. 13), já que é muito tênue a linha que separa a ficção da realidade. “A distinção entre fato e ficção […]”, declara o autor de Teoria da Literatura, “não nos parece ser muito útil” (2006, p. 2). E um dos exemplos disso é o fato de que “até mesmo as notícias de jornal dificilmente poderiam ser consideradas fatuais” (idem, ibidem, p. 2).
Tome-se como prova cabal e emblemática da afirmação britânica o infame caso brasileiro da Escola Base. É emblemático pelo seguinte conjunto de motivos: comprova que a linguagem e a comunicação do dia a dia, permeadas que são pela imprensa, não são neutras nem objetivas, de modo que a função referencial (informativa) da linguagem dos textos jornalísticos, de que fala Roman Jakobson, nem sempre é a que mais se destaca: a que mais se destaca é a função conativa (apelativa) da linguagem, que consiste em criar dois efeitos: o de convencimento e o de mudança de comportamento do público leitor ou ouvinte.
Tal mudança se deu na forma de violência e apedrejamento físico e moral da escola, cujo nome a imprensa jogou à lama com a regularidade do sol: explorou o caso que, no fim, revelou-se uma invenção — uma ficção que as massas tomaram como verdade. Curiosamente, a ficção (quer seja literária, quer não seja) mostra o que é possível, e não o que é real, mesmo que se sirva de alegorias, as quais durante muito tempo foram o alvo da ojeriza dos acadêmicos.
Muitas correntes de esquerda, que deveriam defender a Social Democracia, o Estado do Bem-Estar Social e limitar-se às questões econômicas e aos outros assuntos infraestruturais, revelam um ódio idêntico ao das pessoas que pré-julgaram a Escola Base e seus donos. Pergunto: Quantos professores e quantas professoras já não tiveram a vida destruída e a carreira arruinada em escândalos forjados por um senso comum cada vez mais psicologizante e avesso à leitura de livros de literatura (prosa de ficção e poemas)?
A patrulha da pretensa superioridade moral e dos bons costumes está aí, mascarada pela luta dos direitos de crianças e adolescentes e pela defesa da preciosa flor de sua inocência. Estes são postos num pedestal como vacas sagradas, mas vão para o abate de um modo ou de outro em nome de estatísticas, resultados em obscenas avaliações externas (como o Pisa) e verbas gigantescas, em tácita obediência à cartilha do Banco Mundial.
É desejo do autor que os leitores reais (muito diferentes do leitor ideal) não tentem reduzir os versos a esta ou àquela interpretação, limitadas que são aos vários atravessamentos ideológicos que condicionam os sentidos do texto, sentidos que sempre podem ser outros, ainda que não possam ser quaisquer uns, como diria Eni Orlandi.
Uma das mais importantes intenções deste livro — e eu faço questão de as deixar bem explícitas neste paratexto autoral, um poderoso condicionante dos horizontes de expectativas do leitor, do protocolo de leitura e da produção de sentidos — é dar um grito em defesa da liberdade sexual em tempos de puritanismo e criminalização de um instinto natural.
Vale citar Jorge de Sena (2006, p. 249): “Moralmente falando, sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para patriarca, e sempre foi a favor de a mais completa liberdade ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hipersensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém”.
Para o eu poético de Camões, é melhor experimentar o gozo fálico do que condená-lo. Se grupos de ativistas o condenam sob o pretexto de “objetificação” do corpo feminino — azar o deles.
É óbvio que as vivências podem servir de inspiração, porém nenhum texto literário pode ser reduzido à vida do autor, mesmo quando “há […] casos em que a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160). Do contrário, como bem ensina Antônio Candido, seria possível o solipsismo. Antes de tudo, serve-se a minha poética dos arsenais de temas que lhe oferece a civilização global (CANDIDO, 2014, p. 27-49), esta que é uma aldeia graças ao ciberespaço.
Quando se fala de uma aldeia, fala-se do restante do mundo; da mesma forma, quando se fala do restante do mundo, fala-se de uma aldeia. Do geral se vai ao particular e vice-versa. (Obviamente não se exclui a mímesis nem a verossimilhança, mas toda literatura é poiesis, que obviamente não é um espelho fiel da realidade, em consonância com os arrazoados de Antonio Candido (2014, p. 27-49). Pessoalmente, não creio que seja fiel, mas ainda não deixa de ser um espelho: a superestrutura da sociedade sempre reflete a infraestrutura. Esta, é claro, pode ser modificada por aquela.)
Por falar em particular e geral, deixo aqui algumas instruções aos críticos apaixonados pelo impressionismo de revistas domingueiras: “Se, por exemplo, uma teoria estabelece uma fórmula literária (que, como toda fórmula, é a sistematização de regras gerais extraídas de evidências pertencentes a diversos textos ficcionais, ou seja: a diversas obras particulares, específicas) segundo a qual histórias góticas contêm passagens secretas, portas que rangem, fantasmas e alçapões, tem-se a lei de um gênero”.
“É legítimo observar, no interior de um texto”, declara Tzvetan Todorov (2017, p. 151), “a relação que se estabelece entre a cor do rosto de um fantasma, a forma do alçapão pelo qual desaparece, o odor singular que deixa este desaparecimento”. Esse trabalho de avaliação julga um caso particular (uma obra) para confrontar os elementos com o que postula a teoria, de modo que se verifique o que há de diferente e o que há de conhecido no texto.
Dessa forma, repito, vai-se do particular ao geral (isto é: da obra específica ao gênero literário a que ela pertence) e vice-versa. Destarte, examina-se “um livro que toma seu valor de outros livros, que é original se não se parece com os outros, que é compreendido porque é o reflexo dos outros” (BLANCHOT, 2011, p. 316).
Ademais, vale lembrar: “O autor que escreve especialmente para um público, na realidade, não escreve: é esse público que escreve, e, por essa razão, esse público não pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas — ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los a eles mesmos: é que os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma voz real, profunda, que incomoda como a verdade” [BLANCHOT, 2011, p. 317].
Isso, porém, não anula que o público é quem consagra a obra, até porque é ele que com ela se identifica. Ocorre que ele não é o único a legitimá-la. Pode-se dizer que a posição que ocupo ou deixo de ocupar no que Pierre Bourdieu chama de campo intelectual (formado por editoras, críticos, leitores) é nula até o momento em que isto escrevo, e acho que continuará sendo nula mesmo que seja publicado este livro. Com efeito: Pontuando a dependência do intelectual[iii] em relação à imagem e ao julgamento que dele faz o público, Pierre Bourdieu afirma que ele pode rejeitar a personagem que ao intelectual atribuem, mas não pode ignorá-la; a verdade do projeto criador é dada pela recepção social, “porque o reconhecimento dessa verdade está contida num projeto que é sempre projeto de ser reconhecido” (1968, p. 114).
Contudo, há obras que tendem a criar o seu público, ao passo que existem as que por ele são criadas. Para Bordieu, “‘autores de sucesso’ são […] os objetos mais […] acessíveis aos métodos tradicionais da Sociologia, já que se pode supor que as pressões sociais […] dominam em seu projeto intelectual” (1968, p. 115). Segundo afirma o supracitado intelectual francês (1968, p. 105-45), todo sentido público da obra é, como julgamento objetivamente instituído, obrigatoriamente coletivo, e se dá nas relações entre o editor e o crítico, o autor e o público, o autor e outros autores.
Assim, a relação do autor com qualquer obra é sempre uma relação mediatizada por outra: a relação mantida pelo sentido público dela. Na interdependência das partes integrantes do campo intelectual (que, para mim, é o mesmo que sistema literário, conforme o dizer de Antonio Cândido), algumas têm peso funcional maior e atuam de maneira desigual para dar ao campo sua estrutura particular, como no caso de agentes particulares (escritores) e sistemas de agentes (como o sistema de ensino).
Nas interações entre essas partes, “existe quase sempre […] uma pluralidade de forças sociais, às vezes concorrentes, às vezes coordenadas, que […] estão aptas para impor suas normas culturais a uma extensão do campo […]” (BOURDIEU, 1968, p. 127). Além disso, a estrutura do campo intelectual mantém relação de interdependência com a estrutura das obras hierarquizadas segundo seu grau de legitimidade. Sabe-se que existem gêneros mais “nobres” do que outros.
Falar em gênero é falar em teoria (ou em poética, para usar um termo mais antigo do que a teoria). A teoria é uma explicação que reúne as regras de um gênero a partir da observação de obras particulares. O gênero, como diz o nome, é a generalização, é o geral, que nasce a partir da identificação das semelhanças que obras específicas mantêm entrem si, até mesmo por causa da intertextualidade. Quando as obras particulares são examinadas separadamente e se descobre que, apesar das diferenças, elas empregam basicamente a mesma fórmula, postula-se que elas pertencem a um gênero.
Sendo assim, tudo quanto se diz de um gênero é teoria, enquanto tudo que se diz de uma obra particular é crítica (crítica não é necessariamente falar mal). Do particular vai-se ao geral (esse é o trabalho da teoria, da poética), e do geral vai-se ao particular (esse é o trabalho da crítica). Eu, por exemplo, sou humano, então podemos, com base numa generalização acertada, dizer que preciso beber água, mas o modo particular como faço isso pode destoar do modo como fazem outras pessoas tanto quanto pode se assemelhar. (A propósito: às vezes, por preguiça, que a burguesia só odeia quando não é ela que a manifesta, eu, que moro sozinho, bebo água do gargalo para não ter de lavar copo.)
(Lidar com gêneros literários é um pouco difícil. Já se fala em não-romance. É que o romance é um gênero originalmente burguês, e os valores, que mais são desvalores, da classe burguesa estão em crise, e por isso mesmo já se fala em crise dos gêneros. Contudo, ainda acho válido o uso da noção de gênero literário como ponto de referência. Afinal, todos os seres humanos usam taxonomias, isto é: todos usam classificações. Outra coisa difícil é a própria crítica. Todos têm o direito de ventilar opiniões sobre textos reconhecidos como literários. Acontece que, se a crítica científica quer ser tão fundamental para a sociedade quanto a medicina é para os não médicos, a crítica especializada precisa ser melhor divulgada sem deixar de ser fundamentada e mais cirúrgica do que a crítica impressionista dos jornais, ainda que ambos os tipos de crítica — a acadêmica e a não-acadêmica — possam coexistir.)
Por que fazer crítica? Porque é preciso que se descubra o que há de diferente em obras particulares, pois, dependendo das mudanças praticadas pelos autores, um gênero sofre mutação. Ocorre que, às vezes, uma obra destoa do gênero em que é enquadrada.
Um exemplo é o romance O Castelo de Otranto (1764), de Horace Wapole (1717-1797). Continua pertencendo ao gênero romance, mas é um romance gótico. É marco fundador do romance gótico: inaugurou esse gênero de romance, e isso se comprova com base no fato de que foi imitado, conforme aponta Ariovaldo José Vidal em sua Apresentação à tradução brasileira de The Castle of Otranto. A descoberta do que ele tinha de diferente é trabalho que a crítica faz.
Outro exemplo é o romance policial. Desde o século XIX, toda narrativa detetivesca emprega a seguinte fórmula: um crime é identificado, mas suas causas são desconhecidas. Um detetive, cuja personalidade é formada por características muito suas, como uma mania ou um passatempo (cf. REIMÃO, 1983, p. 79), reconstitui os passos do criminoso pelo uso da razão. No desfecho, descobre-se que a hipótese mais improvável é a verdadeira. Não há o elemento sobrenatural nem magia.
Contudo, há uma obra particular que emprega essa fórmula, mas insere a magia: a série romanesca Harry Potter (1997-2007), de J. K. Rowling (1965). Outra regra (isto é: outra teoria postulada a partir de evidências, que, por definição, são empíricas) é a de que a narrativa policial se passa na pólis, ou seja: na cidade. Se admitirmos que isso é verdade, Pântano de Sangue (1987), aventura escrita por Pedro Bandeira (1942), destoa dessa regra, pois a maior parte da investigação criminal é realizada no Pantanal, no Mato Grosso do Sul, um ambiente mais natural.
Não se faz crítica literária sem teoria; da mesma forma, não se fazem teorias sem críticas ou sem um conjunto de críticas em torno de uma ou mais obras. Tais conjuntos são as fortunas críticas, que nunca, jamais, jamais mesmo, devem competir com a literatura nem tomar o seu lugar. Apenas expressam diferentes interpretações e, assim, confirmam que o sentido na verdade são os sentidos e que não são unívocos. As diferentes correntes críticas (o Estruturalismo, o Marxismo, a Escola de Frankfurt ou a Teoria Crítica, a Nova Crítica com as leituras distanciada e aproximada, a Estética da Recepção e suas sete teses, a Teoria do Efeito), com seus métodos e metodologias, são teorias literárias.
Quem diz que, para analisar um texto literário, não precisa de teoria já está enunciando uma teoria segundo a qual é prescindível (dispensável) a teoria (e isso, é claro, é um paradoxo). Tais correntes (às quais podemos unir as correntes dos Estudos Tradutológicos, como aquela a que estava filiada a saudosa Lia Wyler) ficam abaixo de uma disciplina maior, uma disciplina cuja função é a de reunir todas as teorias e fazer a crítica à crítica literária (a metacrítica). Sim, estou me referindo à Teoria da Literatura.
Espero que, mesmo com a liberdade inerente ao impressionismo crítico (que a meu ver é o método de praticamente todo ensaio, gênero reflexivo e subjetivo), críticos dos departamentos de Letras usem as três vias de projeção, de Tzvetan Todorov, e também as metodologias de todo estudo literário acadêmico, que, pelo visto, não mais presidem à elaboração de resenhas feitas por doutores, a saber: diacronia, sincronia, dedução, indução, escolha de temas, etc.
Para François Jost (1994, p. 334-347), tanto num estudo de literatura nacional como num estudo comparatista empregam-se métodos parecidos, que agora torno a enunciar: diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores. De acordo com o supracitado estudioso (1994, p. 334-347), o termo “literatura comparada” indica que a literatura deve ser comparada, mas não indica os termos de sua comparação, embora haja duas definições do termo: uma popular e outra acadêmica.
Esta engloba obras que usam códigos de estética idênticos por terem se servido do mesmo idioma e por seus autores compartilharem a mesma formação cultural, ao passo que aquela é tautológica: a literatura portuguesa, por exemplo, é a literatura de Portugal. Não se trata de literatos de países diferentes, mas apenas de tempos diferentes, e cujas preocupações e língua usada são as mesmas. Segundo Jost, do ponto de vista técnico estamos muito mais no domínio da Weltiliteratur (literatura-mundo) do que no da literatura comparada, que pressupõe a existência de conceitos críticos modernos.
O autor chega a afirmar que seria melhor o uso do termo literatura global (que talvez se coadune com a ideia de inconsciente coletivo), pois suas diferenças específicas residem na sua natureza abrangente. Tanto num estudo de literatura nacional como num estudo comparatista empregam-se métodos parecidos, que agora se repetem pela terceira vez: diacronia e sincronia, analogias, dedução, indução, escolha de temas, motivações e influências entre autores.
Ninguém deveria ensinar o padre a rezar missa, mas, como diria Machado de Assis, é preciso explicar tudo. É por esses caminhos que se verá o que o texto tem de diferente dos outros do mesmo gênero e o que ele tem de semelhante e inovador, embora não haja nada novo sob o sol, ou até mesmo se ele criou um novo gênero. Estudos psicanalíticos sempre são bem-vindos, contanto que não reduzam o texto a esta ou àquela corrente de Psicologia; isto seria o mesmo que ignorar a estética.
Os revisores, que trabalham na informalidade em troca de migalhas, deverão seguir preceitos da Ecdótica, e com isso não quero dizer que a função da revisão seja a da Ecdótica, porque é óbvio que não é. Se houvesse mais investimentos na Crítica Textual, não haveria necessidade de dizer isto.
Caso alguém decida publicar meus versos em outro país, o tradutor terá autonomia, coisa que, no Brasil, devido à mentalidade tacanha de certos indivíduos, ainda é uma “heresia”.
Não tenho, como indivíduo criado no Sudeste que sou, a menor intenção de usar regionalismos. Meu medo é o de gerar uma grosseira incompatibilidade de registros (formal e informal). O máximo que posso fazer é, “na medida exata em que há uma Literatura Brasileira” (FILHO, 1972, p. 285), usar “uma Língua Literária Brasileira” (idem, ibidem, p. 285).
Isso, é claro, só vale se o que aqui se oferece ao leitor é mesmo literatura ou Literatura: se o que se lhes oferece é má literatura, fancaria literária ou paraliteratura, então a discussão linguística nem tem razão de ser, muito embora se discutam as diferenças entre a norma culta-padrão (idealizada e, em muitos casos, não alcançada por falantes nem por redatores cultos, profissionais da palavra que são) e a norma culta (sendo esta real na sincronia, que é o estado histórico mais recente do idioma).
Obviamente a arte não pode se prender a escrúpulos nem a pudores que a censurem antes mesmo de o artista a manifestar no papel ou na tela do computador; sendo assim, não faz sentido evitar gírias nem palavras de calão. Os tipos de registro (o formal e o informal) são como o sagrado e o profano: um depende do outro para que se firmem ambos.
O prosaico e o poético estão muito perto um do outro: com efeito: se digo, por exemplo, que em Teresópolis faz um frio de congelar o rabo, estou usando uma hipérbole; se, porém, digo que faz um frio de congelar a alma, estou usando uma hipérbole também. Qual delas é mais bonita? Noutras palavras: qual é mais poética?
A homonímia e o duplo sentido, é claro, são recursos que o literato pode explorar tanto quanto as aliterações e as assonâncias, como um poeta de rua que, em 2018, num trem, disse que queria trabalhar na boca… queria ser dentista. Cria-se uma expectativa que se rompe no fim dos versos. (Note-se a palavra pena em “Mar português”, de Fernando Pessoa.) A crítica tem o dever ético de estar atenta a esses fenômenos fônicos e semânticos.
Caímos no terreno da estilística e, portanto, no terreno dos procedimentos estéticos, de que fala o já supracitado Chklovski. Movido por um impulso interior (para usar a expressão de Antonio Cândido), o poeta não fica preso a restrições e experimenta o que conseguiu aprender com as escolas literárias. O que haveria de concretista ou neoconcretista no poema “Super Mário”? (presente na seção Versos Heroicos). Que haveria de marginal ou neomarginal nos poemas “Esbórnia” e “A virgem deflorada na pedra da cachoeira (ou da praia, ou do cemitério)”? O uso de rimas raras realmente valoriza os sonetos? (nos quais nem sempre se usam versos decassílabos). Que inovação ou preservação o leitor pode notar na interação com os sonetos? Como ficam a tradição e a ruptura no jogo intertextual? Que há de moderno ou modernoso nos poemas que não seguem modelos fixos e denotam profunda irreverência? Os versos geram estranhamento ou apenas confirmam lugares-comuns? São ruins os lugares-comuns? Tudo aqui é uma experiência com os procedimentos — daí o título Poemas experimentais.
A virgem deflorada na pedra da cachoeira (ou da praia, ou do cemitério)
Para Damares.
Tremeluzente, treme enquanto deita;
Abre-se, os cabelos esvoaçando;
E, assim como a brisa a água beija,
Língua e dedos de homem ’stão tocando.
Levada pela doce languidez,
E lavada pelos seus corrimentos,
A donzela sobre a pedra se fez
Mulher gemendo com o sangramento.
Qual vampiro sedento, tiro o pano;
Afastado o maculado tecido,
O sangue bebo sob o olhar da lua,
A testemunha-mãe do doce dano
Inerente à defloração, um rito
Que o voyeur viu bem visto lá da rua.
*Márcio Alessandro de Oliveira é mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor da rede estadual do Espírito Santo.
Referência

Márcio Alessandro de Oliveira. Poemas experimentais. Vitória, Leitura fina, 2023. [https://amzn.to/4jsuw19]
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Notas
[i] Há algo profundamente errado nos departamentos de Letras. Discutem os gêneros textuais (que são ilimitados), as esferas discursivas (que são esferas de atividades humanas), as identidades de gênero (tão do gosto de ativistas) e, é claro, discutem os cânones literários, embora NUNCA, JAMAIS, tenham instituído a disciplina Teoria da Literatura de Massa nos cursos de Letras. De que adianta tanta discussão, se nem sequer temos bibliotecas públicas decentes e suficientes? De que adianta discutir os cânones, se quem termina a faculdade de Biblioteconomia corre o risco de passar fome? De que nos serve o horizonte, se o que temos é o beco?
[ii] O que eu vejo nos Estudos Linguísticos é, por mais que neguem os seus mais proeminentes e famosos divulgadores, um infame e obsceno apoio ao esvaziamento do currículo. Hoje, a BNCC, que é uma vergonha, é a institucionalização da desliteraturização do currículo. Não há mais a disciplina Literatura, uma barbárie que é o extremo oposto daquela de que cogitou Roland Barthes. Não sei se há reducionismo dos postulados de Antônio Marcuschi e Bakhtin, mas o fato é que o currículo se apega a uma nomenclatura de gêneros textuais e faz dela um fim, e não um meio. Assim, confirma a banalização dos gêneros prosaicos. Se Platão queria que da pólis fossem expulsos os poetas, os linguistas, muitos dos quais nunca lecionaram no chão da sala de aula dos ensinos fundamental e médio, razão por que não têm a empiria nem propriedade para falar dela (e aqui eu me remeto à dialética que se dá entre a experiência e a teoria tal como Kant a concebeu antes mesmo de Hegel), conseguem, talvez involuntariamente, reafirmar o esvaziamento do currículo em nome de uma falsa inclusão e reforçar a desliteraturização. Memes e anúncios de biroscas são mais importantes para a BNCC e para os linguistas do que os textos dos grandes autores, que eram gênios. Curiosamente, não me lembro de os professores da educação básica terem sido consultados para a elaboração da última BNCC, feita em 2016 com o parecer de quem acha que pode dizer o que se pode e o que não se pode ensinar nas aulas de Português e “Literatura” dos ensinos fundamental e médio, embora muitos cientistas, chegados que são ao oba-oba pedagógico, nunca tenham dado aulas na educação básica. Também não me lembro de ter lido pareceres de mestres e doutores em Estudos Literários: eu só me lembro do parecer de quem está nos Estudos Linguísticos, e não nos Estudos Literários. E por que eu deveria esperar o oposto ou algo diferente? Literatura não é mais uma disciplina: está embutida nas aulas de Português que nem uma peça de roupa enfiada de qualquer jeito numa gaveta. Obviamente vão dizer, talvez com base em Morin e outros pedagogistas, que isso evita a fragmentação do saber e promove a “interdisciplinaridade” ou a “transdisciplinaridade” e certas “competências”. Em suma: vão sempre usar baboseiras pedagógicas que racionalizem, num gesto inerente ao mecanismo de defesa, os delírios e as burrices da pedagogia moderna. A Pedagogia e os Estudos Linguísticos, presos a delírios e tolices, não se dão conta de nada disso, e ai de quem ousar criticar esse estado de coisas. Os Estudos Culturais, por sua vez, tentam absorver a Teoria da Literatura. É preciso fazer ecoar uma voz dissonante contra esse despautério. Pergunto: A quem interessa o silenciamento da Literatura? Resposta: Trata-se de uma determinação de Estado, que, em verdade, é uma determinação de mercado. Mas há muito mais: Na ânsia de promover uma suposta inclusão social, num exercício cínico e escolanovista de otimismo pedagógico, alteram o currículo propedêutico e todos os outros currículos (um deles é o currículo oculto), porém promovem tão só uma inclusão social às avessas, que aparentemente é feita em nome do direito à educação. Na verdade, é tudo feito em nome de verbas públicas, boa parte das quais vai para o bolso de editoras e empresas de equipamentos escolares, e de promoções nos quadros dos magistérios públicos, atitude análoga à de Eichmann, de que nos fala Hannah Arendt. Os ativistas que defendem a “inclusão” e a “pluralidade”, muitos dos quais nunca lecionaram nos ensinos fundamental e médio ou simplesmente nunca lecionaram em nível nenhum de ensino, pregam, sem base científica, que a educação é a base de tudo. Ora, a educação está na superestrutura, de que fala Marx. Ela não é a base da sociedade: a sociedade é que é a base da educação. Num país em que escorre esgoto a céu aberto, é impossível que a justiça social e a democracia comecem pela escola. Menos com menos dá menos.
[iii] Existem diferenças entre o intelectual orgânico, de que fala Gramsci, e o intelectual de ponta. O intelectual orgânico não é obrigatoriamente erudito nem tem título acadêmico. O padre, o pastor evangélico, o economista desonesto que defende os ataques neoliberais à previdência e ao serviço público estatutário e, mais recentemente, o youtuber são intelectuais orgânicos. Em suma: são formadores de opinião. Via de regra, estão a serviço das classes dominantes e contam com um poderoso aliado: a imprensa. Sempre dão pareceres “técnicos” aos jornais. Raríssimos são os intelectuais orgânicos que tentam desmascarar a ideologia. O professor de Literatura poderia ser um intelectual orgânico a serviço da verdade, mas, hoje, não tem mais prestígio nem cátedra: o neoliberalismo tira isso tudo dele, e, se reclamar, será visto como despótico e antidemocrático. Quem ele pensa que é para atribuir sentidos ao texto literário e ventilar suas opiniões e teses progressistas? (diz a própria academia).
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