Por ARI MARCELO SOLON*
Heidegger mostra que a decisão judicial verdadeira não é cálculo, mas kairós: síntese do instante cristão (Kierkegaard), da prudência aristotélica (phrónesis) e da irrupção bíblica do tempo. Enquanto a IA reproduz normas, o juiz humano cria… no piscar de olhos onde o futuro irrompe
“(…)the Golem’s intelligence lag behind the human – that is to say, it lacks that spontaneity which alone makes Man what he is.”
(Gershom Sholem, The Golem of Prague & The Golem of Rehovoth).
Martin Heidegger possui três fontes para falar o que é a decisão do juiz.
A primeira é o tempo bíblico. Quem falou que temos que tomar a decisão num momento, nesse instante, e não no calendário? Paulo, na Carta aos Tessalonicenses. O tempo bíblico não é um tempo que se calcula. A decisão, portanto, não é cronológica, é kairós. É preciso estar existencialmente pronto, pois o “Messias virá como ladrão na calada da noite”.
A segunda fonte é a interpretação kierkegaardiana de Paulo. Sören Kierkegaard chama o instante de Augenblick, “piscar de olhos”. A filosofia não estaria equipada para dizer qual é o momento em que o juiz decide com justiça. A filosofia é o presente dos gregos. Platão, o maior filósofo de todos os tempos, não consegue entender o momento de suspensão da realidade.
Em uma nota de rodapé de O conceito de angústia, o filósofo dinarmarquês explica que para o grego a natureza é constante e ele não consegue transformar esse instante revolucionário: “Entretanto, a unidade deve ser, é o que está dito ali, e define- se então o ‘ser’ da seguinte maneira: participação numa essência ou numa essencialidade no tempo presente (το δε ειναι αλλο τι εστι η μεθεζις ουσιας μετα χρονου του παροντος §151E). Na exposição mais detalhada das contradições, mostra- se então que o presente (το νυν) vacila entre significar o presente, o eterno, o instante. Este Agora (το νυν) encontra- se entre “era” e “será”, e a unidade não pode, ao progredir do que passou para o que virá, pular por cima do Agora. Ela se imobiliza, portanto, dentro do Agora [inde i Nu’et], não se torna mais velha, mas é mais velha. Na filosofia mais recente, a abstração culmina no ser puro; mas o ser puro é a expressão mais abstrata da eternidade e é, como nada, justamente de novo o instante. Aqui se mostra mais uma vez quão importante é o “instante”, pois só com esta categoria se consegue dar à eternidade o seu significado [sin Betydning, sua importância], na medida em que a eternidade e o instante se tornam os opostos mais extremos, enquanto que, de resto, a bruxaria dialética faz a eternidade e o instante significarem o mesmo. Só a partir do cristianismo dá para compreender sensualidade, temporalidade e o instante, exatamente porque apenas com o cristianismo a eternidade se torna essencial.”
Para além da palavra “eksaifnis”, da filosofia platônica, Sören Kierkegaard visa o milagre.
A terceira fonte é a filosofia grande: Aristóteles. No Livro VI de Ética a Nicômaco, que não é a parte jurídica, está o momento da decisão judicial. E ali está o fundamento filosófico que explica a incapacidade da Inteligência Artificial de decidir autenticamente.
O livro trata das virtudes dianoéticas, quer dizer, das virtudes práticas: poiesis e práxis.
De fato, por meio da produção da poeisis, criamos o direito. Ontologicamente, se faz o processo segundo a norma jurídica, subsumida logicamente da lei e da constituição. Poiesis é, por exemplo, fazer uma constituição.
No entanto, o capítulo da decisão judicial autêntica não é sobre a poiesis. É sobre a phronesis, prudência. Ontologicamente, ela não está submetida a nenhum cálculo, mas na liberdade que abandona o passado e mira o futuro. A decisão judicial autêntica cria o novo. O robô, que se sustenta na fabricação jurídica, é incapaz de piscar os olhos, de ter o momento de visão ou a experiência do insight.
A revelação do momento transformativo, que não é a eternidade grega, são milagres sucessivos: o tempo significativo onde momentos significantes podem reconfigurar o sentido da vida.
A genialidade de Martin Heidegger consistiu em combinar aquilo que para Sören Kierkegaard era incompatível: a filosofia clássica e o sentido de Kairós.
*Ari Marcelo Solon é professor na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma). [https://amzn.to/3Plq3jT]
Referências
HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. Petrópolis, Vozes, 2015.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 2015.
KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológicodemonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Petrópolis, Vozes, 2017. p. 140-142.
SCHOLEM, G. The Golem of Prague & The Golem of Rehovoth. Commentary, Nova York, janeiro de 1966. Disponível em: https://www.commentary.org/articles/gershom-scholem/the-golem-of-prague-the-golem-of-rehovoth/.
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