Por que chegamos aonde chegamos?

Imagem: Michael Descharles
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Por LEONARDO BOFF*

O colapso planetário nasce da decepção que virou depressão: as grandes narrativas morreram, e só o reencontro com nossa capacidade criativa pode reescrever o futuro

Crises de civilizações sempre ocorreram na história. Basta ler a obra volumosa de 12 tomos de Arnold Toynbee A Study of History na qual detalha como surgem, entram em crise e acabam as civilizações. Maneja duas categorias básicas: desafio (challange) e resposta (response). Quando o desafio é de pouca monta a civilização responde a ela e cresce. Quando o desafio é maior que sua capacidade de resposta, a civilização entra em crise e, eventualmente, desaparece. Essa é uma exposição simplificada de uma obra complexa e extremamente erudita. Talvez seu limite maior consista em não ter considerado a luta de classes que, queiramos ou não, sempre ocorrem em sociedades complexas. Até recente data, as crises eram sempre regionais, não tomavam a totalidade do planeta.

A singularidade da crise de nosso tempo reside no fato de ser planetária e de afetar o conjunto das civilizações. Faltam-nos categorias adequadas que tenham o condão de nos oferecer uma resposta abrangente: como chegamos a esta crise planetária que carrega em seu bojo o princípio de nossa própria destruição, não do planeta como um todo, mas da vida em todas as suas formas. Não é impossível e, para alguns, é provável que nossa espécie pode desaparecer, pois criou todos os meios para fazê-lo. O fim do mundo não seria obra de Deus, mas da própria ação humana. E há loucos suficientes entre os decisionmakers que podem pôr em risco a vida e eventualmente declarar uma guerra entre adversários “com uma destruição mútua assegurada”. E junto iria a humanidade, salvo, quem sabe, alguns das cem tribos indígenas na Amazônia que nunca tiveram contacto com nossa civilização que brinca com a morte.

A pergunta radical que nos desafia é esta: por que no mundo todo estourou uma onda terrível de ódio, de raiva, de violência a ponto de, se realizada, incendiar terminalmente todo o planeta? São muitas as razões aduzidas a partir de vários pontos de vista. De minha parte diria, como hipótese, abstraindo causas estruturais, presentes na modernidade e por mim já analisadas, que tal atmosfera inimiga da vida e da convivência entre os humanos deriva de uma profunda decepção que degenerou numa não menos profunda depressão.

A decepção residiria no fracasso de todas as promessas que as grandes narrativas fizeram à humanidade nos últimos séculos. O iluminismo prometia o acesso ao conhecimento a toda a humanidade. O capitalismo projetou o ideal de todos ficarem ricos. O socialismo se propôs acabar com todas as desigualdades e o sistema de classes. O industrialismo moderno, em suas várias formas, até com a automação e a IA geral afiançava a completa liberdade do ser humano do peso do trabalho e o acesso ilimitado de todos os saberes acumulados pela humanidade e de uma comunicação ilimitada e livre de todos com todos.

Tais promessas não se realizaram. Predominou uma lógica do poder de alguns cobiçosos de alinhar todos os avanços no sentido de seus interesses de acumulação privada, competitiva e nada solidária. Ao invés de um mundo mais apetecível e humanamente mais amigável, prevaleceu um mundo cruel e insensível face aos demais humanos e depredador da natureza. A decepção generalizada redundou numa grande depressão coletiva. Quem está satisfeito com esse tipo de mundo que criamos, abstraindo aqueles poucos que tudo controlam e dominam (também eles assombrados pelo medo)? A percepção prevalente é que assim como estão as coisas não podem continuar, pois poderiam nos levar a todos a uma vala comum.

Em situações críticas desta intensidade, normalmente, dois comportamentos irrompem: aqueles que fogem para um passado idealizado onde ordem, disciplina, religião e moralidade rígida resolveriam a crise. Outros, fogem para o futuro com utopias salvacionistas ou mudanças tão radicais que configurariam um mundo bem melhor e habitável, respeitando a natureza. Ambas me parecem utopias sem viabilidade histórica, pois não enfrentam o desafio na sua gravidade existencial nem buscam alternativas viáveis. Essa atitude termina aprofundado a decepção e a depressão.

Há alguma saída para esta enroscada? Ou chegou a nossa vez de encerrarmos o nosso ciclo dentro da evolução e vamos desparecer? É notório que todos os seres, depois de terem vivido milhões de anos sobre este planeta, chegaram ao seu clímax e, de repente, desaparecem. Também nós teríamos o mesmo destino? Deixo a questão em aberto pois não nos parece improvável nem impossível, pois já nos demos os meios de nos autodestruir.

Meu sentimento do mundo me diz que quando desfalecem as utopias, mesmo as mínimas de melhoria dentro do sistema imperante, só nos resta voltarmos sobre nós mesmos. Somos uma fonte inesgotável de virtualidades e uma capacidade ilimitada de relações e de criatividade. Não obstante sermos contraditórios, feitos de luz e de sombras, sapientes e dementes, podemos potenciar de tal forma nossa positividade e aí definir um novo rumo e uma nova esperança. Cabe-nos aprofundar esta alternativa, impossível de ser detalhada aqui, mas a qual voltaremos.

A Terra futura não será um paraíso terrenal mas uma Terra revitalizada, Terra da boa esperança como alguns já o formularam.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes). [https://amzn.to/4nWdtY8]


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