Por FÁBIO FONSECA DE CASTRO*
No Pará está em curso um projeto para esvaziar os territórios e as identidades de populações tradicionais do estado
Um fato político maior, de dimensões ontológicas, está ocorrendo em Belém. Hoje, 30 de janeiro de 2025, entramos no 15° dia de ocupação da sede da Secretaria de Educação do Governo do Pará por lideranças indígenas. Um protesto acompanhado por dezenas de mobilizações, articuladas por povos indígenas e tradicionais espalhadas por todo o estado.
O movimento exige que o governador do Pará, Hélder Barbalho, revogue a Lei 10.820/2024, de 19 de dezembro, uma lei aprovada repentinamente, em cumplicidade com a Assembleia Legislativa estadual, sem qualquer debate público. Dispondo sobre o Estatuto do Magistério Público do Pará, a lei revoga dispositivos que estabeleciam uma política de educação em regiões do interior, onde não há ensino regular, substituindo aulas presenciais por aulas transmitidas por televisões e telas.
Em termos práticos, a lei extingue o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei) – responsável pelo ensino médio presencial nas comunidades indígenas do estado – e o Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) – dedicado à oferta de ensino nas demais comunidades tradicionais –, substituindo-os por um modelo de ensino à distância, realizado através de um recém criado Centro de Mídias da Educação Paraense (Cemep). Um ataque aos direitos à educação, à identidade e à cidadania dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais.
O fato significa, provavelmente, que começou, em Belém, a COP 30 – um evento que tende a ser marcado por protestos e pela vontade, senão mesmo pela potência de enunciação de incontáveis movimentos sociais amazônicos que lutam por direitos e cidadania. Como se sabe, Belém vai receber, em novembro deste ano, a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, organizada pela ONU e que irá reunir, além de chefes de Estado, cientistas e lideranças políticas de todo o planeta – mais de 50 mil pessoas vinda para o evento.
O quadro do protesto indígena se reforça com o início de uma greve no sistema estadual de educação, pois a mesma lei anula a progressão automática do quadro docente, condicionando-a a disponibilidades orçamentárias e a dispositivos meritocráticos definidos pelo próprio governo e sem participação das categorias dos trabalhadores da educação. Ali, ainda, reduz a gratificação de professores da educação especial e retira os sindicatos ligados à educação da Comissão Permanente de Avaliação da Educação no estado.
No caso da educação indígena, especificamente, o que está por trás do desmonte do Somei é muito mais do que o fim da educação indígena presencial. É, fundamentalmente, o projeto de esvaziar os territórios e as identidades de populações tradicionais no Pará. A desestruturação do sistema educacional levará, indefectivelmente, a uma migração de jovens indígenas, quilombolas e ribeirinhos, bem como de todas as populações tradicionais do Estado, para as cidades médias e grandes do Estado, o que tem por resultado um enfraquecimento das territorialidades e, consequentemente, a expansão do agronegócio e da mineração, inclusive da mineração clandestina.
Por mais que a educação indígena, no Pará, seja historicamente precarizada, a extinção do Somei e do Some representa uma afronta sem precedente: a substituição de uma educação dialética, com professor em sala, por um aparelho de televisão.
COP 30 em disputa
A ocupação da Secretaria de Educação se insere num contexto curioso. De um lado, a extrema inabilidade política do governador do Pará, que, em seu segundo mandato e em pleno ano da COP 30, iniciou um processo de ultraliberalização do estado e cortes drásticos nas políticas sociais. De outro, a pretensão de Hélder B., o governador, a ganhar proeminência política nacional, na esteira da COP30.
A destruição das políticas educacionais voltadas para os povos indígenas e tradicionais da Amazônia paraense se soma a decretos e leis que destroem o já não muito robusto sistema estadual de políticas sociais, ações que incluem, dentre outras, a extinção das secretarias de estado destinadas à agricultura familiar (e sua fusão com a secretaria voltada para o agronegócio), da Mulher, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos, do Esporte e Lazer e da fiscalização da navegação fluvial – algo fundamental na Amazônia. Ou seja, políticas comprometidas e bem próximas a tudo o que foi visto com Jair Bolsonaro no Governo Federal.
No mesmo contexto de ultraliberalização, em dezembro do ano passado, Hélder B. recuou, após imensa mobilização popular, de um projeto (inconstitucional) de fundir as emissoras estaduais públicas de rádio e televisão com o órgão de divulgação das ações de governo e de extinguir a Fundação Cultural do Pará.
E a tudo isso, soma-se uma improvável e impensável proibição dos docentes da rede pública estadual e de reprovarem alunos – norma verbal que fez a educação no Pará, saltar da 26ª para a 6ª posição no ranking nacional do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), entre 2021 e 2023.
Esse desmonte vinha sendo feito paralelamente à tentativa de Hélder B. tornar-se presidente da COP 30. Até essa guinada neoliberal suas chances eram efetivas – afinal, além de governar o estado que sediará o evento, seu partido, o MDB, constitui um forte apoio do governo Lula. Cabe notar, a esse propósito, que o Pará possui 9 dos seus 45 deputados federais do MDB, mais um ministro de estado, Jáder Barbalho Filho, irmão de Hélder B. e um senador, Jáder Barbalho, pai de ambos.
Tal como o clã Bolsonaro, a família B, do Pará, possui relações profundas com as instituições e o poder político no estado. Além dos referidos, Hélder B. é filho da deputada federal Elcione Barbalho, primo de outro deputado federal, primo do recém-eleito prefeito de Belém, irmão de uma vereadora de Belém, esposo da Conselheira do Tribunal de Contas do Estado (indicada por ele mesmo), primo de outros três conselheiros do mesmo Tribunal, parente de seis conselheiros do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará, sobrinho de dois assessores do Ministério Público de Contas dos Municípios do Pará, primo de um auditor-fiscal que também ocupa o cargo secretário-adjunto do Tesouro Estadual e isso além de uma rede de relações extensa, fatigante de referir aqui.
As contradições de seu governo, porém, fizeram com que Hélder B. perdesse a disputa. Lula nomeou, dias atrás, como se sabe, o embaixador André Correa do Lago para o cobiçado posto.
Dimensão ontológica do protesto indígena
Além de perder espaço político, com suas medidas neoliberais, o governador do Pará poderá perder, também no contexto da COP 30, espaço simbólico. A “dimensão ontológica” dos protestos indígenas, que referimos acima, diz respeito à coragem e a intensidade do movimento indígena – e dos movimentos sociais amazônicos, em geral – de reivindicarem seu espaço justo, no debate sobre a Amazônia. Trata-se de uma luta anticolonial que floresce, juntamente, em meio ao apagão de inteligência do governo de Hélder B. – ou, dever-se-ia dizer, em meio ao desvelar da identidade colonial e colonialista profunda desse governo, que, em si, representa boa parte do ethos das elites amazônicas.
O protesto indígena evidencia a superficialidade e a frivolidade com que a COP 30 está sendo organizada pelo governo paraense.
Na prática, estamos vendo o começo da COP 30, evento que tende a ser tornar a COP dos protestos e da voz dos povos amazônicos. Tanto melhor, porque o projeto do Governo do Pará para o evento não chega a propor debates reais, ou realistas, sobre as questões climáticas e ambientais, contentando-se com uma maquiagem superficial das áreas nobres da cidade de Belém, as áreas que receberão o evento.
De fato, todas as atenções do governo de Hélder Barbalho estão voltadas, falsamente, para as questões pretensamente estruturais, como debates intermináveis a respeito, por exemplo, da cessão de prédios públicos para hotéis e da dragagem de áreas fluviais que poderão, eventualmente, receber transatlânticos e, assim, minorar os problemas de hospedagem da cidade. O que está em pauta, na inteligência do governo estadual, é a referida maquiagem de Belém para o evento – enquanto todas as políticas de defesa das populações tradicionais do estado, as responsáveis, em primeira instância, pela preservação da floresta, vão sendo destruídas.
O protesto dos povos indígenas tem uma dimensão ontológica porque vai ao centro de uma das grandes questões da colonialidade brasileira: o direito à participação na construção de políticas públicas que lhe dizem respeito. De fato, na construção da Lei 10.820/2024 não houve, em nenhum momento, a consulta prévia às comunidades, tal como exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
E isso seria necessário porque, na verdade, o que as comunidades indígenas precisam, e demandam, é muito mais do que a revogação da Lei 10.820/2024. É o direito a uma educação que os respeite como povos e na sua diversidade, e que respeite a diferença ontológica entre suas tradições e os modelos educacionais generalistas da colonialidade brasileira.
Além disso, no que tange à realidade da educação indígena, é preciso dizer que faltam professores qualificados e que falem as línguas dessas populações, que falta infraestrutura de educação em muitas localidades, que falta inclusão digital – um obstáculo real, inclusive, para que o governo paraense consiga implantar um sistema de ensino à distância. Por sinal, cabe referir que o IBGE coloca o Pará como o terceiro estado brasileiro com menos acesso à internet.
Consequências a caminho
O Ministério Público Federal (MPF) requisitou, dia 17 de janeiro, ao Ministério da Educação (MEC), um posicionamento sobre o modelo de aulas telepresenciais previsto pelo governo do Pará. Isso se produz num contexto em que, por meio de uma ação ajuizada em 2018, o MPF e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) defendem, coletivamente, que todos os povos e comunidades tradicionais do Pará devam ser consultado antes de qualquer tomada de decisão do Estado sobre esse tema.
A falta de diálogo do governo do Pará com as comunidades tradicionais já foi motivo de contestação pública, inclusive. Em junho de 2023 o secretário de Educação do estado, Rossieli Soares, foi confrontado pelos profissionais da educação em função de um projeto de lei proposto sob sua liderança, o PL n° 369/2023, que propunha o fim do dispositivo chamado Gestão Democrática na Rede Estadual de Ensino. Docentes, pais e alunos se mobilizaram e o governo recuou da proposta.
Rossieli Soares é figura bem conhecida em tudo o que se refere a desmonte de sistemas educacionais. Como Ministro da Educação, em 2018, ele liderou a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, criticada por especialistas e educadores de todo o país que lhe cobravam, justamente, a participação de qualquer diálogo sobre a questão. Mais tarde, como Secretário de Educação do Estado de São Paulo, em 2021, foi criticado por manter as escolas abertas durante o agravamento da pandemia de COVID-19.
Posteriormente, como Secretário de Educação no Amazonas, foi condenado por improbidade administrativa em ação movida pelo Ministério Público do Estado do Amazonas, por omissão em fornecer quatro documentos necessários a processo investigatório, na época em que ocupou o cargo. Em adição, ainda no Amazonas, foi processado por dispensa ilegal de licitação.
Essa trajetória associada a tentativas de desmonte o consagrou a receber o título de “Cidadão Paraense”, que lhe foi conferido pela Assembleia Legislativa do Estado do Pará, em dezembro último, em paralelo à promulgação da malfadada lei, em reconhecimento à “sua contribuição para a educação no Estado”.
Governador confrontado
Diálogos têm sido construídos, mas os indígenas exigem condições de igualdade e têm, muito claras, as suas proposições. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, precisou de 14 dias para, finalmente, se posicionar a respeito da questão. Veio a Belém e foi recebida pelas lideranças que ocupam a Secretaria de Educação. Articulou uma reunião com o governador Hélder B., a qual ocorreu na noite de 28/01.
Não se avançou muito nessa reunião, mas um fato ilocutório maior afetou, profundamente, o governador do Pará. Segundo a mídia local e as redes de comunicação popular dos movimentos indígenas, Hélder B. se exaltou quando as lideranças disseram que se ele não atender as reivindicações não vai haver COP. Os indígenas ameaçam paralisar Belém e o Pará, fechando ruas, estradas e aeroportos.
Sim, a COP 30 já começou. E o fato de que ela seja realizada em Belém, cidade síntese das questões amazônicas, não significa que ela vá acontecer para mostrar ao mundo as belezas ou a maquiagem da cidade feita para o evento e, sim, que ela deve, precisa acontecer em Belém, para mostrar ao mundo os conflitos amazônicos e as suas questões ontológicas profundas.
*Fábio Fonseca de Castro é professor de sociologia no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Como Fábio Horácio-Castro publicou o romance O réptil melancólico (Record).
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