PT 40 anos – mais necessário do que nunca

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Flávio Aguiar*

Apesar de todas as dificuldades e da ofensiva concentrada da extrema-direita, orquestrada pelos Estados Unidos, a América Latina ainda é o espaço onde pode vicejar uma semeadura antineoliberal, e há um empenho de resistência neste sentido

Tenho lido constantemente comentários desanimadores sobre a conjuntura. São aqueles que repetem sistematicamente a ladainha: “a esquerda acabou”; “o PT perdeu o prazo de validade”; “a oposição não faz nada”; “é necessário refundar o PT”; “é necessário fundar outra esquerda”, etc. Uma variante deste tipo de comentário é o que nega, no fundo, que a trajetória petista tenha tido qualquer importância.

Outro dia assisti algumas mesas acadêmicas sobre a situação brasileira, no Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim. Um dos brasileiros palestrantes afirmou, entre outras coisas, que era melhor que de momento a direita permanecesse no governo, “porque a esquerda não está preparada para tanto”. Completou dizendo que a esquerda (o PT) “nunca teve visão geopolítica e estratégica sobre o que está acontecendo no mundo”.

A impressão que fica de tudo isto é a de que os 40 anos do PT passaram em branco pela história brasileira. Não houve protagonismo social, nem nacional, nem internacional. Celso Amorim (peço licença para citar o nome, como um exemplo) não foi, em certo momento, considerado o melhor chanceler do mundo. O Brasil não foi uma liderança na questão ambiental e no acordo de Paris, hoje renegado por Donald Trump e seus discípulos.

Não fiquemos apenas com o PT: a liderança brasileira em termos ambientais começou durante o governo de Fernando Henrique. O Itamaraty já foi, dentre as instituições de política internacional, uma das mais respeitadas do mundo, coisa que vem desde o tempo e da tradição de Rio Branco (até mesmo de antes), tradição esta hoje enxovalhada pelo fundamentalismo ideológico, pela mediocridade e pelo complexo de capacho que tomaram conta de nossa política externa.

Outra impressão que fica a partir destes comentários é a de que um partido político é como um coelho que se tira da cartola, algo que se funda num passe de mágica ou estalar de dedos. Ora, o que se vê, olhando-se a história pregressa, é que a criação e a trajetória dos partidos políticos das esquerdas brasileiras sempre estiveram conectadas a profundas movimentações tectônicas no mundo brasileiro do trabalho e também a amplas articulações internacionais.

Foi assim com os Partidos Comunistas, o Brasileiro e o do Brasil (e suas dissidências e complementos posteriores). Foi assim com o antigo PTB, por exemplo. Foram carreados pela criação, existência e movimentação de um proletariado urbano. Tão forte foi essa onda que em certo momento ela chegou a arrastar para a esquerda um político conservador como Getúlio Vargas, que terminou morrendo como um mártir do povo brasileiro. E isto também é apenas um exemplo.

No caso do PT, e também de suas dissidências posteriores, é impossível separá-lo de novas transformações na organização do mundo do trabalho brasileiro, durante e depois da ditadura de 1964. Também é impossível separá-lo da criação da CUT (e também de suas dissidências posteriores) e do MST. E hoje os ventos de renovação que atingem o Psol (também por exemplo) são inseparáveis de novas facetas do universo social, como o Movimento dos Sem Teto, e de modificações na paisagem estudantil brasileira, em grande parte devido a políticas inclusivas desenvolvidas pelos governos petistas nas esferas federal, estaduais e municipais.

Dentro deste quadro extremamente complexo o PT teve uma trajetória excepcional, tornando-se, nos seus 40 anos de existência, não só uma referência histórica nacional, como também internacional. E teve, desde sempre, no governo e fora dele, fortes conexões internacionais – e uma liderança sintonizada com isso.

Brizola e o seu PDT articularam-se, num certo momento, com a Internacional Socialista. O PSDB, na verdade, teve um engajamento constante com o Partido Democrata dos Estados Unidos. O PT e a liderança de Lula conseguiram manter uma ligação orgânica com a socialdemocracia europeia. Se hoje esta ligação está esgarçada, isto se deve menos a uma falta de visão geopolítica de lideranças petistas e do próprio Lula, e muito mais ao fato de que a maioria dos partidos do socialismo e da socialdemocracia europeia ou derreteu (Alemanha, França, Reino Unido) ou descambou para a direita (Escandinávia). Os Verdes, usualmente, estão rachados entre centro-esquerda e centro-direita. Portugal e Espanha são hoje raras e honrosas exceções no cenário do continente europeu, bem como a liderança socialdemocrata (pasmem!) do Papa Francisco!

É óbvio que em sua trajetória o PT teve falhas, lacunas e mesmo erros de monta. Dou alguns exemplos. A política de comunicação do partido e a dos governos Lula e Dilma, usualmente, tendeu ao desastre, também com raras exceções. Nem o partido nem os governos enfrentaram o desafio da democratização do universo das comunicações no Brasil. Esta acabou acontecendo parcialmente devido às inúmeras iniciativas da mídia alternativa, que nem sempre contaram com o merecido e devido apoio por parte do partido e dos governos (que deveriam, neste particular, seguir a orientação da UNESCO em favor da diversificação midiática).

Outro exemplo: ao longo destes 40 anos, o PT terminou enveredando por um caminho semelhante ao de seus congêneres socialdemocratas europeus: tornou-se um partido com inclinação “geriátrica”, fechado à renovação. Não conseguiu manter uma política consistente dirigida à juventude. E esta é uma lacuna grave, pois, como dizia o padre Antonio Vieira no século XVII, por motivos diferentes dos nossos de hoje, “a história mais importante é a história do futuro”.

Ao mesmo tempo, o PT cometeu, ao lado de suas políticas afirmativas (onde se inclui a do Orçamento Participativo), seu talvez maior acerto: ampliando extraordinariamente uma marca do último Vargas (o de 1951-1954), criou condições para que milhões de brasileiros tivessem acesso ao principal de todos os direitos sociais, que é o conceito de que todo e qualquer cidadão “tem direito a ter direitos”. Não é pouca coisa, num país tão desigual e de uma “elite” econômica tão vendida ao estrangeiro, tão anti-povo e tão voltada a ver direitos como privilégios de berço e classe como a nossa.

Vivemos um momento muito difícil no mundo inteiro. Na Europa prevalece a hegemonia – certo que capenga – dos planos de austeridade e de inspiração neoliberal. Nos Estados Unidos, ao lado da política evangelista, pentecostal e gorila de Donald Trump, Mike Pence e Mike Pompeo, o establishment democrata não promete nada muito melhor para nós. E resiste tenazmente a Bernie Sanders. A Ásia se debate entre a política preconceituosa e direitista de Narendra Modi, o autoritarismo chinês, e o conservadorismo entranhado no Japão.

Na Oceania a voz progressista de Jacinda Ardern é uma voz isolada. Na África reinam o autoritarismo e o pandemônio. O Oriente Médio é uma catástrofe permanente. A Rússia orquestra seu neoczarismo em estatal mundial. Apesar de todas as dificuldades e da ofensiva concentrada da extrema-direita, orquestrada pelos Estados Unidos, a América Latina ainda é o espaço onde pode vicejar uma semeadura antineoliberal, e há um empenho de resistência neste sentido, como aconteceu nas décadas que antecederam o golpe de 2016 no Brasil. Para tanto, a presença e liderança do PT permanecem fundamentais.

*Flávio Aguiar é jornalista, escritor, e professor aposentado de literatura brasileira na USP.

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Annateresa Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Eugênio Bucci Remy José Fontana Francisco Fernandes Ladeira Antonino Infranca Ronald León Núñez Julian Rodrigues Heraldo Campos Ricardo Abramovay Anselm Jappe Ricardo Antunes Daniel Afonso da Silva José Micaelson Lacerda Morais Eduardo Borges Chico Alencar Ladislau Dowbor Walnice Nogueira Galvão Luiz Bernardo Pericás João Adolfo Hansen Afrânio Catani José Machado Moita Neto Otaviano Helene Luiz Renato Martins João Carlos Loebens Jorge Luiz Souto Maior Mariarosaria Fabris Antonio Martins Elias Jabbour José Costa Júnior Gilberto Lopes Antônio Sales Rios Neto Armando Boito Marcelo Módolo Sergio Amadeu da Silveira Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Freitas Barbosa Eleonora Albano Michael Roberts Fernando Nogueira da Costa Érico Andrade Jorge Branco Michael Löwy José Raimundo Trindade Samuel Kilsztajn Bernardo Ricupero Bruno Machado Matheus Silveira de Souza Tales Ab'Sáber Luiz Eduardo Soares Airton Paschoa Luiz Marques Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tarso Genro Roberto Noritomi Rafael R. Ioris Manchetômetro Valerio Arcary Igor Felippe Santos João Lanari Bo João Feres Júnior Francisco Pereira de Farias Ricardo Musse Flávio R. Kothe José Dirceu João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Guimarães Lima João Paulo Ayub Fonseca Luis Felipe Miguel Leonardo Avritzer Marilia Pacheco Fiorillo Claudio Katz Atilio A. Boron Jean Pierre Chauvin Maria Rita Kehl Rubens Pinto Lyra Bento Prado Jr. Manuel Domingos Neto Dênis de Moraes Vinício Carrilho Martinez Yuri Martins-Fontes Ronald Rocha José Luís Fiori Leonardo Boff Alexandre de Lima Castro Tranjan Luciano Nascimento Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alysson Leandro Mascaro Sandra Bitencourt Daniel Brazil Henry Burnett Gerson Almeida Paulo Fernandes Silveira Boaventura de Sousa Santos Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Nogueira Batista Jr Marcus Ianoni Salem Nasser Dennis Oliveira Eliziário Andrade Luiz Roberto Alves Francisco de Oliveira Barros Júnior Milton Pinheiro Mário Maestri Eugênio Trivinho Denilson Cordeiro Ricardo Fabbrini Valerio Arcary Liszt Vieira Rodrigo de Faria Lorenzo Vitral Everaldo de Oliveira Andrade Benicio Viero Schmidt Jean Marc Von Der Weid Carlos Tautz Flávio Aguiar Ari Marcelo Solon Eleutério F. S. Prado Fábio Konder Comparato Kátia Gerab Baggio Paulo Capel Narvai André Singer Celso Frederico Priscila Figueiredo Leda Maria Paulani Anderson Alves Esteves André Márcio Neves Soares Caio Bugiato Roberto Bueno Lincoln Secco Juarez Guimarães Celso Favaretto Marilena Chauí Carla Teixeira Luiz Werneck Vianna Berenice Bento Osvaldo Coggiola Renato Dagnino Marcos Aurélio da Silva Gilberto Maringoni Thomas Piketty Luís Fernando Vitagliano Andrew Korybko Leonardo Sacramento Paulo Martins Luiz Carlos Bresser-Pereira Marjorie C. Marona Gabriel Cohn Chico Whitaker Tadeu Valadares Slavoj Žižek Paulo Sérgio Pinheiro Marcos Silva Vladimir Safatle Daniel Costa Henri Acselrad João Carlos Salles Ronaldo Tadeu de Souza José Geraldo Couto Vanderlei Tenório

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada