Por FLÁVIO R. KOTHE*
Se o Qualis mede qualidade por métricas que ignoram a originalidade do pensamento, então estamos diante de um sistema que canoniza a mediocridade. Enquanto Spinoza, Marx e Nietzsche são lembrados por terem sido rejeitados por seus pares, a academia brasileira celebra artigos que obedecem a fórmulas vazias
1.
A lógica da arte não se resolve com a lógica analítica formal que, durante séculos, tem tratado de domesticar e circunscrever o pensável. Não se estuda lógica na escola brasileira como um problema, mas se é obrigado a decorar as categorias da análise sintática – sujeito, predicado, oração adversativa, coordenada etc. – como se com elas se resolvesse o que se passa na linguagem. Aprende-se aí o correto e o errado, sabe-se que não se pode fazer uma oração sem verbo e que no fim dela se tem de colocar um ponto. Escrever uma só palavra é errado. Todavia…
Se, para ser aprovado, é preciso cumprir as regras, acaba-se achando que redigir corretamente é escrever bem. A universidade não admite que se faça ciência com o linguajar da rua e sem as normas da ABNT. E sem o nível A do Qualis…
Confunde-se o correto segundo parâmetros com o verdadeiro, acha-se que a quantidade exprime a qualidade, que o formalismo do conselho editorial garante a verdade dos conteúdos. Os pareceristas aproveitam seu anonimato para não aprovarem o que vá além dos seus limitados horizontes, finge-se que o duplo cego seja um modo imparcial de ver melhor e não uma dupla cegueira.
É como se houvesse uma hierarquia de anjos, arcanjos, querubins e serafins, a entoar cânticos de louvor à ciência e impor a vontade de um anônimo Senhor. Não é assim que se pensa, que se avança o filosofar, que se produz ciência, se cria grande arte.
Quem não está no parâmetro desse stablishment fica fora das vagas docentes, das bolsas de pesquisa, dos convites a congressos. Fica mais por fora do que umbigo de vedete, como dizia meu falecido pai. Isso não é novo na história do pensamento. Spinoza foi expulso da comunidade judaica, Marx foi expulso da Alemanha, Nietzsche não tinha acesso a nenhuma universidade alemã e foi recusado no departamento de filosofia da universidade suíça em que dava aulas de filologia. Os melhores professores brasileiros foram expulsos da universidade.
Acha-se que se define qualidade por quantidade, sem entender a lógica subjacente de 2 + 2 = 4, A = A. Nem os professores nem os alunos estudaram obras básicas como a Física de Aristóteles, a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da Lógica de Hegel, Ser e tempo ou a Origem da obra de arte de Heidegger. Acham que sabem tudo, e não sabem o básico. Não aprenderam a pensar, porque não tiveram professores que pensassem, pois a ditadura tratou de eliminar quem pensava. A universidade tratou de excluir a divergência pensante. Achou que o seu deserto estava povoado. Nenhum colaborador da ditadura foi responsabilizado.
2.
Na arquitetura, celebram-se as figuras geométricas ditas puras – o triângulo, o círculo, o retângulo – e se acha que se está fazendo arte quando se fazem variações em torno delas. Ao construir templos, o triângulo pretende representar a Santíssima Trindade, sem se perguntar se ela existe, se é lógico 1 = 3 e 3 = 1.
Isso é dogma, um mistério, não se questiona. Caso se pergunte como René Descartes tratou de explicar isso, dificilmente alguém terá estudado o texto preciso (Paixões da alma).
O círculo pretende representar a perfeição divina, pois todos os pontos da periferia estão à mesma distância do centro. Assim sendo, serve de modelo para o comportamento humano: agir do mesmo modo, sempre de acordo com leis. Ora, nem sempre se deve agir do mesmo modo: a resposta deve ser adequada às novas circunstâncias. Além de não se questionar se Deus existe ou não, acha-se que a rigidez é correta por si, excluindo-se a negociação.
Achar que o universo tem o formato de uma parábola pode levar a construir o ICC da UnB, o Minhocão, na forma de um fragmento de parábola, como se o prédio fosse uma miniatura do universo. Não se conhecem as beiras dos espaços infinitos: toda figura geométrica é finita, delimitada. Não há um todo que se fecha sobre si como quer a noção de “universo”.
Quando templos são os prédios mais bonitos na cidade, eles induzem à crença de que representam “verdades”, ou seja, dogmas da religião. Postos no centro da urbs, fazem todos girarem ao seu redor, como se fossem o centro, os valores mais altos. Se tudo é feito por Deus, e Deus é perfeito como o círculo, é preciso aceitar o status quo como expressão da vontade divina, o que legitima os privilégios da classe dominante.
Como há muita miséria, prepotência e coisa errada mundo afora, fica difícil ver na realidade um mundo perfeito. Leibniz inventou a tese de que vivemos no melhor dos mundos possíveis, aquele que tem um mínimo de defeitos para colocar à prova o homem; Voltaire ironizou isso com uma heroína sofre muitos percalços, mas sobrevive porque está no melhor dos mundos possíveis. Esse problema foi varrido das salas e dos salões, não há mais um deus único que se queira responsabilizar por tudo o que existe.
Quem se atreva a duvidar de algo como as verdades da fé não é bem-vindo às altas hierarquias do Qualis. Não merece se acercar do trono e beijar mãos reais. Será visto como um cão furioso sem guia, sem uma corrente que o contenha. Se ousar supor que os pareceristas e editores estão contidos por invisível corrente, que os impede de irromper em espaços predefinidos, aí mesmo é que não terá chance para bolsa, publicação, posto, patrono.
Tudo o que interessa na universidade brasileira são números, pontos para obter classificação. Até as vagas docentes são “alocadas/aloucadas” por fórmulas numéricas de produtividade. Na lógica do Qualis, uma publicação qualquer vale 1 como valeria 1 um ensaio como A origem das Espécies, O capital, A teoria da relatividade, Ser e tempo. Em função dessa lógica ilógica se distribuem verbas, cargos, bolsas. Isso não é sério.
Essa lógica numeral não sabe sequer o que é qualidade, mas pretende ditar a excelência ou carência de linhas de pesquisas, de laboratórios, equipamentos, da quantidade de computadores que os órgãos de fomento fornecem para os pesquisadores.
*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc].
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