Quero estar acordado quando morrer

Sliman Mansour, A revolução foi o co meço, 2016

Por MILTON HATOUM*

Discurso no evento de inauguração do “Centro de Estudos Palestinos” da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Parabenizo todos os que se empenharam em criar o Centro de Estudos Palestinos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A existência deste centro é um acontecimento, e certamente vai estreitar as relações acadêmicas e culturais entre a USP e as universidades da Palestina.

Em 1982, quando o Estado ocupante bombardeou Beirute, o general israelense Rafael Eytan declarou que os palestinos eram “baratas drogadas numa garrafa”. No dia 9 de outubro de 2023, o ministro da Defesa de Israel disse que ia combater “animais humanos”. Com essas mesmas palavras os personagens brancos e racistas de um conto de James Baldwin nomeiam os afro-americanos; depois torturam e queimam até a morte o corpo de um homem negro, como vem ocorrendo com muitos palestinos de Gaza, incluindo crianças.

Como se sabe, James Baldwin, um norte-americano negro e homossexual, foi não apenas um grande escritor e ensaísta, mas também um incansável ativista antirracista e defensor da causa palestina.

Eu me lembrei desse conto enquanto lia o livro Quero estar acordado quando morrer, de Atef Abu Saif (Ed. Elefante). Atef, ex-ministro da Cultura da Palestina, é autor de vários romances, peças de teatro, reportagens e diários.

Os bons livros de ficção dão vida perene às imagens do passado. O jornalismo, quando visceralmente honesto e verdadeiro, dá vida perene às imagens e à catástrofe do tempo presente. O livro de Atef Abu Saif, publicado recentemente, é o testemunho de uma agressão monstruosa, covarde e extremamente cruel que ocorre há mais de um ano.

Como diz o título, Atef Abu Saif quer estar acordado quando morrer. Inúmeras vezes, em dias seguidos ou alternados, ele sentiu ou intuiu que ia morrer. Felizmente sobreviveu. Atef Abu Saif fala dessa sobrevivência, sempre precária, tantas vezes em suspenso, como se a vigília e o pesadelo fossem um estado permanente, ou uma linha tênue, quase invisível, que separa a vida da morte.

Durante quase 90 dias, o escritor foi testemunha do horror dos bombardeios por terra, ar e mar; viu corpos mutilados e desfigurados de amigos, parentes e de tantos outros palestinos que ele conhece, ou que conhecia, pois muitos foram assassinados. Atef Abu Saif narra brevemente a história dessas pessoas, invoca outros bombardeios contra Gaza ao longo deste século, e a primeira Intifada (1987-93), quando perdeu amigos de infância, foi ferido três vezes e preso por vários meses. Ele também nos lembra que esse pesadelo diuturno a que é submetido seu povo tem origem na Nakba, a catástrofe de 1948, quando 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas e terras, e centenas de vilarejos e aldeias foram destruídos.

Segundo o saudoso romancista libanês Elias Khoury, a Nakba não acabou. De fato, a catástrofe iniciada antes mesmo de 1948 atravessou a segunda metade do século passado e culminou nesse genocídio executado pelo Estado ocupante, mas que só se tornou possível com a ajuda direta, maciça e incondicional do governo dos Estados Unidos e, em grau menor, de alguns países árabes e europeus.

Atef escreveu em seu diário: “Todos os dias olho para o futuro como um cego contemplando a noite”.

Edward Said assinalou que todas as ações do poder ocupante visam ao extermínio dos palestinos. Em seguida, acrescentou: “Mas os palestinos não vão desaparecer”. Penso que Atef Abu Saif e todos nós concordamos com o autor de Orientalismo.

Os palestinos não vão desistir de viver, nem de lutar pela liberdade; não vão desistir de escrever, imaginar, sonhar. O Estado ocupante e racista vem matando poetas, artistas, atores, atrizes, músicos, jornalistas, fotógrafos e cineastas. Mas essa barbárie não é recente.

Em 8 de julho de 1972, agentes israelenses mataram em Beirute o escritor palestino Ghassan Kanafani, cuja novela notável Umm Saad é citada no livro de Atef Abu Saif. Em 6 de dezembro de 2023, assassinaram o professor e poeta Refat Alareer, autor do poema Se eu tiver de morrer, traduzido em 30 idiomas e lido nas redes sociais por mais 30 de milhões de pessoas.

As bombas calaram o poeta, mas não o poema, cujo título premonitório refere-se à morte do autor, mas os versos aludem liricamente à vida, à infância, à liberdade. Refat Alareer vive e viverá nesse poema, que se tornou um dos símbolos mais potentes da resistência: um canto universal escrito em árabe por um jovem professor de literatura de língua inglesa de uma das 19 universidades de Gaza que foram destruídas, juntamente com livrarias, escolas, museus, teatros e centros culturais.

Mahmud Darwich, outro grande poeta palestino, escreveu no livro Memória para o esquecimento: “os fatos devem falar”. Atef Abu Saif deu voz aos fatos, que a maior parte da grande imprensa oculta, manipula ou distorce.

No posfácio de seu livro, Atef Abu Saif dirige-se ao leitor: “O que você tem nas mãos não foi planejado como um diário. Quando comecei, escrevia esses textos diariamente porque queria que as pessoas soubessem o que estava acontecendo. Queria que existisse um relato de eventos caso eu morresse. Senti a presença da morte tantas vezes… Conseguia senti-la pairando sobre mim, em meu ombro, e escrevi como uma maneira de resistir a ela, de desafiá-la – se não para derrotá-la, ao menos para não pensar nela. Como a guerra continua, só consigo pensar em sobrevivência. Não consigo lamentar. Não consigo me recuperar. Minha dor teve de ser adiada. Meu luto postergado. Agora não é hora de pensar nisso. Neste livro, porém, consigo ver todos que amei e perdi, e posso continuar conversando com eles. […] Ainda posso ainda posso acreditar que eles estão aqui comigo”.

Nós, neste auditório, estamos com você e com o povo palestino, Atef Abu Saif.

*Milton Hatoum é escritor. Autor, entre outros livros de Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
Frankenstein
30 Oct 2025 Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Guillermo del Toro, em exibição nos cinemas
2
Geraldo Vandré e Chico Buarque
28 Oct 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Do menestrel ceifado pela ditadura ao cronista das almas femininas, duas trajetórias que, em tons distintos, consagraram a canção como instrumento de resistência e de reinvenção da vida íntima
3
Riqueza é tempo livre
30 Oct 2025 Por THIAGO TURIBIO: A verdadeira riqueza, já tornada possível, reside no tempo livre para o desenvolvimento humano, e não na acumulação infinita de bens sob o jugo do trabalho mediado pelo valor
4
O Fédon de Platão
27 Oct 2025 Por PAULO MARTINS: Considerações sobre o diálogo de Platão, a partir de uma nova tradução recém-publicada
5
O papel social da leitura
28 Oct 2025 Por DÉBORA TAVARES: Mais que decifrar palavras, a leitura é um direito humano que organiza o caos interior e nos humaniza; sua negação, fruto de uma estrutura social desigual, é uma mutilação da personalidade e um obstáculo à emancipação
6
Duas faces do estado penal
01 Nov 2025 Por DOUGLAS MARTINS: A lógica que move essas operações é a do direito penal do inimigo. O inimigo é aquele a quem o Estado nega o estatuto de pessoa e de cidadão: ele não é punido — é eliminado. As operações não são atos de polícia, mas atos de guerra interna.
7
Palestina 36
01 Nov 2025 Por ALBERTO HANDFAS: O mandato britânico está na origem da opressão colonial de Israel na Palestina e do atual genocídio em Gaza. Novo filme palestino relembra o papel central do imperialismo no conflito
8
O valor é substância em Marx?
01 Nov 2025 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O valor na sociedade capitalista não é uma substância metafísica, mas uma medida real imposta por um processo social cego que transforma trabalhos concretos em trabalho abstrato, gerando uma objetividade espectral e coercitiva
9
Paris, Texas
27 Oct 2025 Por VINÍCIUS DE OLIVEIRA PRUSCH: Comentário sobre o filme de Wim Wenders
10
Sob o domínio do Comando Vermelho
31 Oct 2025 Por JOICE DE SOUZA SOARES: A letalidade que assola o Rio é menos uma guerra fracassada contra o crime e mais uma ferramenta política, onde corpos pobres são a moeda de troca para ambições de poder e narrativas de intervenção
11
A estratégia da barbárie: A chacina como contraofensiva da extrema-direita
30 Oct 2025 Por OSÉ MAURÍCIO DOMINGOS: Diante da perspectiva de derrota, a extrema-direita aciona seu projeto final: substituir a política pela barbárie, usando o cadáver do pobre como palanque para uma guerra pela alma do país
12
Chacina Policial no Rio: Fracasso Operacional, Sucesso Político?
31 Oct 2025 Por LISZT VIEIRA: Enquanto a letalidade seletiva poupa milícias e poupa líderes, ela sacrifica vidas periféricas no altar de uma reaparição política, transformando uma chacina em palanque
13
Sintomas mórbidos - o útero de Chronos
01 Nov 2025 Por OTÁVIO ALMEIDA FILHO: Sempre acho divertida a melancolia romântica daqueles que dizem que "adoram papel". Revelam o quanto ainda estão saudosistas dos papiros e das alergias provocadas pelos ácaros que proliferam nos papéis envelhecidos.
14
A gramática da guerra
01 Nov 2025 Por JALDES MENESES: Melhor seria invocar a adaptação/inversão de Foucault do “aforismo” de Clausewitz: magníficas, coligidas no livro Em Defesa da Sociedade: “A política é a guerra continuada por outros meios”
15
Racismo e política sustentam o massacre nas comunidades da Penha e do Alemão
30 Oct 2025 Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: A banalização do extermínio revela a farsa da disputa de narrativas, onde vidas negras são moeda de troca em um projeto político que transforma o racismo estrutural em estratégia eleitoral
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES