Por MARCO BUTI*
A maior antropofagia é a capitalista, quantificada, pragmática, eficiente, sem se importar com consequências, sem ritual nem poética
“I think art criticizes art., I don’t know if it’s in terms of new and old. It seems to me old art offers just as good a criticism of new art as new art offers to old” (Jasper Johns, 1973)
1.
Faz parte da formação convencional em Artes Visuais o estudoda hierarquia dos gêneros pictóricos no Ocidente. Acima de todos, a pintura histórica, a partir de narrativas religiosas, mitológicas e históricas jamais presenciadas por quem as realiza visualmente. Depois, a pintura de gênero ou pequeno gênero, cenas da vida cotidiana.

Em seguida, o retrato. O predomínio é da figura humana, divina, extraordinária, exemplar ou comum. Em seguida a paisagem, e por último a natureza morta, gêneros “burros”, mais puramente visuais, que seriam menos providos dos conceitos intelectuais tão valorizados por homens brancos com acesso à educação de alto nível, desejosos de perpetuar sua posição, sua imagem e seus feitos, mas nem sempre capazes ou dispostos a ver inteligência e arte no próprio fazer, e não apenas no assunto nobre e edificante.
Faz parte da formação convencional em Artes Visuais o estudo de GiorgioVasari, fundador da primeira Academia de Belas Artes, e formulador do conceito das três artes maiores: pintura, escultura e arquitetura, fundamentadas no desenho. O teórico e artista também elaborou a divisão das atividades subordinadas à pintura e à escultura.
Pintura: miniatura, vitral, marchetaria, graffiti nas casas, niello, estampas em cobre, esmaltes, damasquinado, pintura de vasos, tapeçaria. Escultura: baixo relevo, argila, cera, estuque, madeira, marfim, fundição, cinzelado, encavo e relevo em pedras preciosas e aço.
Não será difícil notar, em nosso próprio conhecimento, a ignorância parcial ou total de grandes extensões das linguagens artísticas possíveis e realizadas, mencionadas por Vasari. Grande parte da história da arte ocidental é omitida pela visão bifocal – principalmente pintura e escultura, ligadas a nomes próprios e autoria única – deixando fora de foco, secundária, marginal, uma produção que contém obras não menos brilhantes, reveláveis pelo estudo menos dependente.
Não será difícil notar que as artes maiores eram as mais aptas a impressionar pelas cores e dimensões, e, no caso de escultura e arquitetura, também pela presença no espaço público pré-imprensa. Mais aptas, portanto, à espetacularização e propaganda dos poderes.
Não será difícil notar que o padrão se mantém na atualidade, embora oficializando a oposição. Mas o desenvolvimento contínuo da multiplicação de imagem e texto superaria a todas de longe, como podemos constatar hoje sem muito esforço.
No entanto, muitas são simultaneamente grandes obras de arte, únicas ou multiplicadas. É insuficiente fixar apenas na capacidade de propaganda, reivindicação, denúncia, confissão, sem vislumbrar as dimensões múltiplas, além do comunicável, que a arte poderia alcançar.
2.
A segunda edição de Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori (1568), foi ampliada, incluindo nomes mais recentes, e retratos xilográficos de cada artista, além do frontispício, impresso em tipografia e xilogravura. Ambas estavam já bem desenvolvidas no século XVI. A reprodutibilidade de imagens e textos – índice evidente de modernidade – estava disponível e atuante.
Quatro artistas mulheres são registradas: Properzia de’ Rossi (escultora e entalhadora de pedras preciosas), Plautilla Nelli, Lucrezia Quistelli, Sofonisba Anguissola(pintoras). E um gravador: Marcantonio Raimondi, em cuja vida se concentram todos os comentários sobre a gráfica, que Vasari demonstra conhecer bem.
O próprio Vasari desenhou os retratos dos artistas, muitos já falecidos. A gravação das matrizes de madeira foi realizada por “Maestro Christofano”, autor incerto, pouco mais que anônimo. Já está delineada a posição do gravador na Academia: desprovido da inspiração divina através do disegno, segundo as teorias em vigor, é hierarquicamente inferior aos praticantes das artes maiores.
Numa época em que a gravura de estampa era a única possibilidade de multiplicar imagens, o gravador era visto principalmente nesse papel julgado pouco brilhante, apesar do reconhecimento de Dürer como grande artista, por suas gravuras independentes, nas próprias Vite de Vasari.
A exclusão do gravador é bem estudada, mas pouco conhecida, ao limitar o estudo das artes visuais pelos padrões convencionais. Concebido principalmente como copista da imagem de outro, inicialmente excluído da Academia de Belas Artes, foi finalmente admitido em posição inferior, sem ter direito à mesma formação, sem concorrer aos prêmios de maior prestígio, sem poder ministrar aulas de desenho, do qual estaria desprovido, dependente da imagem de terceiros.
Conforme a opção – afetiva, interessada, descuidada, inevitável – por uma ou outra modalidade, se operava a exclusão nos gêneros de menor prestígio, fama e remuneração, ainda mais se a escolha aproximasse do artesanato, atividade manual pouco digna para as Belas Artes. Mesmo com o as dificuldades de formação e o provável esquecimento futuro, era mais possível o reconhecimento para uma pintora do que para um gravador, ourives, esmaltador, tapeceiro. O mínimo número de gravadoras conhecidas, leva a suspeitar que dentro do mesmo gênero artístico secundário, a exclusão também atingia mais as mulheres, apesar da falta de estudos, também significativa.
3.
Durante alguns séculos, no Ocidente, a Academia de Belas Artes, sem deixar de acolher grandes artistas, tornou clara e institucionalizada a manutenção de formas e privilégios através do ensino, concursos e premiações, gerando as melhores encomendas – e fama pessoal. No entanto, trata-se muito mais de manter atitudes e hierarquias, e menos uma forma imutável. Esta pode ser camaleônica, atendendo aos interesses concretos do momento, apesar da aparente estabilidade secular, exportada para as colônias.
Longe da imagem conservadora, alvo evidente, contra a qual artistas obrigatoriamente se insurgem, a Academia se atualiza constantemente. Consciente de sua perda de prestígio e poder como organização explícita, vai acompanhando as novas estratégias empresariais. Numa época de pós-verdade, nega sua própria existência.
Mas sabe que o melhor meio de manter sua situação de poder é através do ensino, direcionando o aprendizado para as manifestações convenientes, excluindo as demais. Flexivelmente, a formação artística é terceirizada: como em clínicas, acompanhamentos e residências, oferecidos por galerias e organizações culturais independentes, onde predomina a ortodoxia contemporânea.
Em residências, prevendo a realização de um trabalho artístico, o próprio ateliê oferecido pode determinar as possibilidades. Na seleção, a tendência é para jovens desejosos de se adequar aos parâmetros já delineados, buscando a inserção no circuito. Enquadramento nas artes maiores do agora, nome próprio em destaque, discursos, trejeitos e trajes adequados, coletivos como suposta exceção nova e contestadora.
Em porcentagem pouco pesquisável, mas elevada, circulam tanto artistas visando expor e vender arte, quanto crítica, teoria, história e curadoria tentando vender serviços para o bom funcionamento do sistema. Tudo alimentado, parcialmente, de forma subalterna, pela arte feita por qualquer um, sem se separar da vida.
Mas prestígio muito maior se encontra nos cursos de Artes Universitários, beneficiando-se do prestígio da ciência. Principalmente nas Universidades Públicas, a finalidade só pode ser a formação independente, crítica e emancipada de jovens artistas. Mas o ideal seria ter ali um corpo docente totalmente alinhado às tendencias dominantes no circuito artístico, do ponto de vista da academia anônima.
Se a mentalidade tecno/burocrática predominante nessas instituições tende a facilitar o ingresso de professores com reconhecimento oficial supostamente mensurável, não consegue, no entanto, impedir de todo as presenças indesejáveis, gerando alguma diversidade, ainda que desorganizada.
4.
A história da arte convencional se estrutura preponderantemente a partir das formas artísticas de maior prestígio, comissionada por quem exerce algum poder e possui a educação necessária para apreciá-la literária e conceitualmente, padrão ainda inescapável do conhecimento que se pretende alto.
Continua assim uma inacessibilidade ainda maior que o preço sem sentido da distante obra única, e do ainda alto preço do ingresso, em sociedades desiguais: boa parte dos conceitos manejados habilmente por curadorias e artistas– por vezes chegando ao malabarismo – não estão ao alcance da educação mediana, onde a arte tende a ser pouco valorizada e mal abordada.
Torna-se necessária a mediação para um funcionamento razoável do sistema, como se houvesse sentido num contato com a arte que não se inflama na atração direta obra/espectador. Em lugar de emancipar pelo conhecimento autônomo, ao longo do tempo de estudo, gera-se o espanto ingênuo com a novidade oculta, no curto tempo da exposição, satisfazendo os números apreciados pelos patrocinadores.
A contestação convencional da história da arte segue o mesmo padrão, tendo como alvo preferencial as artes maiores – porém instaurando continuamente outras – ignorando as contestações radicais praticadas ao longo dos séculos, não por artistas singulares, mas por gêneros artísticos excluídos ou marginalizados pelo pensamento e interesses dominantes.
Como tornar a arte múltipla, circulante e presente a todo momento, ameaçando a exclusividade. As reavaliações a posteriori também costumam seguir as velhas hierarquias, devolvendo o reconhecimento a ex-excluídos, mas praticantes da pintura, escultura e artes maiores do momento.
Deveria ao menos levantar suspeitas, quando grandes organizações pouco respeitosas da vida humana em sua atividade primordial, passam a apoiar a inclusão no secundário patrocínio às artes. Ainda o velho vernissage com que o poder disfarça sua brutalidade. Será uma maneira de simular a igualdade no restrito mundo artístico, de forma apenas simbólica, enquanto se continua a manter imutável a velha estrutura social brasileira?
A maior antropofagia é a capitalista, quantificada, pragmática, eficiente, sem se importar com consequências, sem ritual nem poética. Não será problema algum igualar democraticamente a todos como consumidor e trabalhador precarizado.
Uma atividade que valoriza em excesso a fama individual, automaticamente cria a exclusão. Não só de artistas, mas de teóricos, galerias, museus, cidades, públicos, culturas, até reduzir tudo a uma seleta corte global, de difícil acesso, que se comporta como se fosse o mundo. As noções de arte e artista são múltiplas e mutantes, mas a arte oficial age para não alterar as reais relações de poder, apenas trocando as peças por outras, com os mesmos jogadores.
Mantendo o circuito fechado das cortes, e de academias, galerias, museus, inaugurações, jantares e leilões como lugar privilegiado da arte, com as contestações controláveis, já previstas num meio que primaria – em concordância quase absoluta – pela inclusão e multiplicidade.
“É preciso que as coisas mudem para continuar as mesmas.” A já antiga frase do personagem de Lampedusa parece destinada a não perder a atualidade.
Mas são questões do passado: agora, finalmente, a arte se abre para todes – que aceitarem as balizas de pensamento artístico, e puderem se amoldar aos critérios, falta de critérios, delírios e interesses da gestão artística contemporânea.
*Marco Buti é professor titular do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.
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