Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Ana Rüsche
1.
A discussão acerca do Antropoceno já completa mais de duas décadas, e o termo ainda não é conhecido pela maioria das pessoas. Nomear uma era é diferente de nomear uma nova espécie, requer um consenso científico que ainda estamos longe de alcançar. No entanto, cada vez mais se torna urgente compreender o significado profundo do conceito, cada vez mais ligado às transformações climáticas que estamos vivendo. Dar nome ás coisas é um processo essencial da humanidade.
Ana Rüsche, no livro Quimeras do Agora, destrincha minuciosamente a questão. O volume, que traz o subtítulo de Literatura, ecologia e imaginação política no Antropoceno, a autora mapeia o surgimento da palavra-conceito, e a partir da definição mais aceita discute seu significado simbólico na ciência e na literatura de ficção.
Antropoceno seria a era em que a ação humana (antropos) provocou alterações mensuráveis no planeta, seja no solo, na atmosfera ou nos oceanos, interferindo na vida de outras espécies. Ou da própria, uma vez que há uma tendência a considerar o início da era a chegada nas Américas, trazendo doenças e armas que exterminaram mais de 50 milhões de habitantes nativos e provocaram um desequilíbrio ambiental.
Há autores que propõem outras referências nominais (Plantationceno, Capitaloceno, Quintário), e a autora explana isso de forma didática na primeira parte do livro. Fruto de uma pesquisa acadêmica de pós-doutorado, seu objetivo é mostrar como a literatura antecipou essa discussão, através de utopias e distopias, representando a interferência humana na natureza e o surgimento de quimeras e monstros que fogem ao controle da espécie supostamente “dominante”.
Ana Rüsche parte de pensadores clássicos, como Platão e Thomas More, dedica atenção a Mary Shelley (Frankestein), chega a contemporâneos como Lovelock, Ailton Krenak, Naomi Klein, Fredric Jameson e Donna Haraway, e convoca uma série de autores da chamada ficção científica.
A chamada literatura de antecipação muitas vezes colocou a questão do desequilíbrio ambiental, da destruição de outras espécies, da poluição descontrolada e da superpopulação humana, e a autora trata isso como sintoma, prenúncio, zeitgeist, com numerosos exemplos do ciberpunk, solarpunk e outras correntes estéticas do gênero.
2.
A literatura brasileira merece atenção, com destaque para o sombrio Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, lançado (e censurado) em plena ditadura. Da utópica Pasárgada de Manuel Bandeira, passando pelo naturalismo científico de Euclides da Cunha, a noção de um país que já foi chamado poeticamente de “paraíso perdido” ganha a perversa denotação de paraíso perdido, mesmo.
Podemos encontrar ecos sintomáticos do desequilíbrio ambiental provocado pelo homem na conhecida obra de J. J. Veiga, A Hora dos ruminantes, publicada em 1966, e até mesmo na curiosa antecipação de Monteiro Lobato em A Reforma da Natureza, de 1939.
Obviamente a autora não pode ter lido toda a ficção contemporânea escrita no Brasil, mas certamente podemos estabelecer conexões com obras recentes como O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Verunschk, que parte da expedição científica de Spix e Martius pelo Brasil em 1817/1820, ou do livro de contos Nós, cegos, de Sandra Godinho, onde o fio narrativo é conduzido por uma árvore na Amazônia, em chave mais fabulista.
O premiado O Poema Imperfeito, de Fernando Fernandez, professor da UFRJ, também pode ser considerada uma obra que gira em torno destes temas, e que virou até filme, apesar de não ser ficção. O subtítulo, Crônicas de Biologia, Conservação da Natureza e seus Heróis, é autoexplicativo. O autor também escreveu Os Mastodontes de Barriga Cheia, e suas crônicas podem ser lidas como pequenos ensaios.
Fernando Fernandez defende a hipótese de que os grandes vertebrados do final do Quaternário (mamutes, preguiças gigantes, tigres-de-dente-de-sabre, gliptodontes, entre outros) não se extinguiram por mudanças climáticas, mas pela ação humana, o que poderia ser um novo marco para o nosso Antropoceno.
O cientista americano, filho de imigrantes, Jared Diamond, no seu livro Colapso, coloca outra assustadora possibilidade: a de que vários impérios e civilizações da Antiguidade não desapareceram por causa de guerras ou conflitos internos, mas por não saberem enfrentar seus problemas ambientais. Uma ideia que altera profundamente o conceito que temos da História, para dizer o mínimo.
Enquanto a ciência discute a questão, a literatura ficcional continua sendo um campo inesgotável de especulações e hipóteses. Como diz Ana Rüsche na abertura do trabalho, “Dar forma a ideias e retratar o mundo são o cerne do fazer literário. (…) Nomear é construir um mundo, um conceito, uma forma de compreender as coisas, mesmo que dependam da materialidade para de fato acontecerem.”
A partir disso, propõe questões que estimulam leituras e releituras, e tornam ainda mais urgente a necessidade da ficção como elemento para compreensão do mundo em que vivemos, antes que este seja destruído.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência

Ana Rüsche. Quimeras do agora: literatura, ecologia e imaginação política no Antropoceno. São Paulo, Editora Bandeirola, 2025, 150 págs. [https://amzn.to/4jA2alH]
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