Por JOÃO LANARI BO*
Comentário sobre o filme de Jasmila Zbanic
Quo vadis? A expressão é do latim, a língua morta que jaz no subterrâneo do nosso inconsciente linguístico: informa a wikipédia, arauto do saber digital, que a expressão vem de um relato do evangelho apócrifo conhecido como “Atos de Pedro”, no qual, ao fugir de uma provável crucificação em Roma, São Pedro encontra Jesus ressuscitado e pergunta: “Quo vadis?” E Jesus responde: “Romam vado iterum crucifigi” (“Vou a Roma para ser crucificado de novo”).
Pedro desistiu da fuga, voltou a Roma e foi crucificado de cabeça para baixo. “Quo vadis” ressoa também no mundo do cinema: baseado no livro homônimo publicado na Polônia em 1895, seis versões foram produzidas – entre elas a mais conhecida, de 1951, com Deborah Kerr e Robert Taylor, que ganhou o Oscar: cristãos sofrendo sob leões famintos e a piromania de Nero. “Quo vadis, Aida?”, o filme de Jasmila Zbanic, corajosa cineasta da Bósnia, atualiza a pergunta para o trágico passado próximo da enlouquecida guerra civil que atingiu os territórios da antiga Iugoslávia, na primeira metade dos anos 1990.
Atualizar no sentido mais radical possível: seu filme parece inspirar-se num daqueles relatos escabrosos do Antigo Testamento da Bíblia, em que cidades e populações foram dizimadas em nome da pureza étnica-religiosa. O massacre contemporâneo entrou para a história como genocídio de Srebrenica, o pior no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial: aconteceu entre 11 a 25 de julho de 1995, quando 8 mil e 373 bósnios muçulmanos, de adolescentes a idosos, foram executados ou desapareceram, por milicianos travestidos de forças militares compostas por cidadãos bósnios de origem sérvia, apoiados pela Sérvia.
Srebrenica é uma pequena cidade montanhosa com pontes romanas e arquitetura bizantina, no extremo leste da Bósnia: suas principais atividades econômicas são (ou eram) mineração de sal e turismo, através de balneários nas proximidades – um deles, o hotel Vilina Vlas, foi sede de comandos milicianos e cenário de pelo menos 200 estupros e assassinatos de mulheres muçulmanas, em 1992 (depois do conflito, voltou a funcionar).
Quo vadis, Aida? organiza sua narrativa a partir do que vê a intérprete Aida, a serviço das forças de paz da ONU em Srebrenica: a cidade foi declarada em abril de 1993 “área livre de qualquer ataque armado ou qualquer outro ato hostil”, sob a proteção de uma pequena e frágil unidade de militares holandeses, os chefes de Aida.
As tropas comandadas pelo general Ratko Mladic não se deixaram impressionar com essa normativa internacional e perpetraram o massacre, nas duas semanas de julho de 1995. O equilíbrio entre o particular ficcional da família de Aida e o coletivo da tragédia é um dos pontos fortes do filme: poucas vezes o letreiro inicial “baseado em fatos reais e personagens ficcionais” foi tão adequado.
O dilema moral de Aida – salvar seus próximos, marido e dois filhos, utilizando o crachá de funcionária internacional e apelando para exceções duvidosas, ou resignar-se diante do drama coletivo que se anunciava? – instala a referência bíblica no âmago da personagem. Em um mundo onde os limites de convivência humana foram ignorados ou ostensivamente abolidos, qual o sentido do dilema? Para onde vais, Aida?
Ratko Mladic é dos personagens mais sinistros dos anais da violência humana. Conseguiu ficar foragido por quinze anos depois que o conflito na Bósnia se encerrou por meio de acordo multilateral de paz em fins de 1995: Sérvia e Estados Unidos chegaram a oferecer cinco milhões de euros por informações que levassem à captura do general, afinal detido em 2011. Acabou condenado a prisão perpétua pelo Tribunal Penal Internacional de Haia. Em Quo vadis, Aida?, seu personagem performa uma das melhores interpretações do filme, ao lado do hesitante coronel holandês e, claro, de Aida.
Depois dessa era de catástrofes, a Bósnia e Herzegovina reformatou-se politicamente em uma federação com duas entidades politicamente autônomas, a Federação da Bósnia e Herzegovina e a República Sérvia (que não deve ser confundida com a Sérvia propriamente dita). Até hoje forças da ONU permanecem no país, geograficamente dividido, para garantir o cumprimento do acordo de 1995. Segundo estimativas, 45% da população são muçulmanos, 36% ortodoxos sérvios e 15% católicos: descontada a margem estatística de erro, essa é a fratura religiosa que assombra a Bósnia.
Em 2018, jornalista do The Guardian visitou a região e constatou o seguinte: “Os comentários do TripAdvisor sobre o hotel Vilina Vlas são mistos. Apenas alguns mencionam o cenário de estupros que ele já foi – e se você não fala francês ou alemão, nem vai perceber. O resto é uma mistura de reclamações mundanas sobre quartos sujos e homenagens entusiásticas à floresta e suas fontes termais naturais”.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]
Referência
Quo vadis, Aida?
Alemanha, Áustria, Bósnia-Herzegovina, 2020, 104 minutos.
Direção e Roteiro: Jasmila Zbanic.
Elenco: Jasna Đuričić, Izudin Bajrović, Boris Isaković, Johan Heldenbergh,
Raymond Thiry, Boris Ler.
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