Racismo e política sustentam o massacre nas comunidades da Penha e do Alemão

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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

A banalização do extermínio revela a farsa da disputa de narrativas, onde vidas negras são moeda de troca em um projeto político que transforma o racismo estrutural em estratégia eleitoral

É assustador ver a vida seguindo em frente como se nada tivesse ocorrido no dia de ontem na cidade do Rio de Janeiro.

O que se passou nas comunidades da Penha e do Alemão, em 28 de outubro de 2025, é um desses fatos que vão marcar a violenta história do Brasil e não podemos, nós que somos contemporâneos ao ocorrido, passar por este momento sem nos sentirmos profundamente abalados, consternados, indignados e extremante tristes.

Afinal, trata-se, com números ainda provisórios, da morte de 119 pessoas[1], em um único dia, após uma ação policial destinada, como se anunciou (mais uma vez) ao cumprimento de mandados judiciais de prisão.

Chega a ser enfadonho dizer, porque os ouvidos são moucos a respeito, que os alvos do massacre são pessoas negras, renegadas à pobreza e à exclusão, com relação às quais o Estado, a democracia e a soberania só têm olhos pela lente da criminalização.

E, na verdade, nem é bem da ordem criminal que se trata, pois os preceitos legais de garantia dos cidadãos (que valem para os criminosos dos ditos “crimes de colarinho branco”) não se aplicam aos “bandidos do morro”, sendo que para os executar está permitido, inclusive, como efeito paralelo inevitável e, por isso, assumido, atingir moradores e moradoras das regiões “dominadas” pelas facções criminosas ou o crime organizado.

O que alimenta mais esse massacre, portanto, da origem ao efeito, é o racismo!

Enquanto não dissermos isso em bom tom, todo o processo histórico no qual ele se sustenta continuará se reproduzindo, gerando, unicamente, a expectativa de uma nova explicitação da tragédia que, concretamente, representa a realidade cotidiana de milhões de pessoas nas mesmas condições de miséria e exclusão Brasil afora.

A própria ausência, neste momento, de uma indignação nacional, de mobilizações para uma greve geral, de suspensão, ainda que momentânea e simbólica, do funcionamento das instituições, da expedição de um decreto de luto nacional e do hasteamento das bandeiras em meio-pau constituem a explicitação de que as vidas dessas pessoas não importam e isto só se explica pelo racismo que nos habita.

Há quem diga, expressando razoabilidade, que é preciso esperar para saber como foram as mortes. Outros se manifestam indignados porque as mortes foram violentas, com decapitações etc.

Mas estas manifestações não deixam de ser outras modalidades de expressão do racismo, pois não é a forma da matança que nos deve causar indignação e sim a sua ocorrência.

O desprezo à vida dessas pessoas é tão acentuado que a maior suspeita é a de que a verdadeira motivação da operação tenha sido político-eleitoral, como, aliás, já se constatou em diversas outras operações do mesmo gênero, incluindo, por exemplo, o Carandiru, em 1992[2], e o massacre do Jacarezinho em 2021, conforme destacado no texto que publiquei em maio de 2021:

“Nesta perspectiva da inserção do fato em um contexto mais amplo, o massacre havido no Jacarezinho ganha um fator de extrema perversidade, que é o se admitir a morte de pessoas (sobretudo, pobres, favelados, negros e negras) para conferir sobrevida a um projeto político de cunho autoritário, estabelecido a partir da disseminação de um novo caos (desviando o foco da crise humanitária) e do medo. Em nome da segurança e do ‘restabelecimento’ da ordem – em uma desordem propositalmente potencializada, favorecida pela fragilização das instituições democráticas – ter-se-ia aberto o caminho para a consagração do Estado policial (miliciano, totalitário e ditatorial) pleno, com supressão das liberdades, garantias e direitos fundamentais, deixando no ar a ameaça de que novas violências podem ocorrer a qualquer momento, atingindo a tudo e a todos.

A hipótese em questão até poderia parecer, aos olhos de muitos, um tanto quanto cerebrina, pois lhe faltavam os personagens que, valendo-se politicamente da narrativa, pudessem conferir sentido ao enredo. Eis que, então, para minar reticências, um personagem entra em cena e decreta: ‘…ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo’. E, juntando tudo e aparando arestas, arremata: ‘É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro!’

Já o outro se explicita quando, logo após o massacre, ‘recebe um levantamento’ que mediu a sua popularidade, conforme noticiado na coluna da jornalista Mônica Bergamo, publicada, em 10 de maio, no jornal Folha de S. Paulo. Segundo consta da pesquisa, ‘um dia antes da invasão da polícia à comunidade, apenas 12% das citações sobre o governador eram consideradas positivas. No dia do morticínio, o percentual saltou para 41%. Já as citações negativas caíram de 50% para 41%. E as neutras passaram de 38% para 18%’.

E os dois, um dia antes do massacre, se reuniram presencialmente, durante uma hora, na sede do governo do Rio de Janeiro, para tratar de ‘possíveis parcerias para obras públicas no Estado e a estratégia de combate à pandemia’.”[3]

Pois a história, como preconizado, se repete.

Desta feita, o cenário político que motiva a aquisição de popularidade do governante é constituído dos seguintes elementos que se interligam: a) a inelegibilidade de Bolsonaro; b) o aumento recorrente da aprovação do governo Lula; e c) a recente aproximação de Lula junto ao governo Trump.

A fúnebre e tenebrosa estratégia de auferir dividendos políticos com a execução sumária de mais de uma centena de pessoas se explicita ainda mais quando, logo após o massacre, o seu comandante maior, governador Cláudio Castro (PL-RJ), vai à mídia para culpar a esquerda e a “maldita” decisão do STF, proferida na ADPF 635, que limitou as operações policiais nas comunidades durante a pandemia, como as culpadas pelas mortes.

E a motivação espúria também se evidencia no momento em que, logo após o fato virar notícia nacional, os governadores de direita, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Romeu Zema (Novo-MG), Ronaldo Caiado (União Brasil-GO), Jorginho Mello (PL-SC) e Mauro Mendes (União Brasil-MT), se reúnem no Palácio da Guanabara, para traçar os próximos atos e estabelecer os mecanismos para difundir a narrativa em torno do “sucesso” da operação.

Neste contexto, não é irrelevante, igualmente, o fato de que cinco dias antes da operação, mais precisamente no dia 23 de outubro, o governador, ao sancionar a lei que reestrutura os cargos da Polícia Civil do Rio de Janeiro, vetou o artigo que recriava a chamada “gratificação faroeste”, válida no período de 1995 a 1999, que prevê um bônus de até 150% do salário para os agentes que participem de operações voltadas à “neutralização de criminosos”, sob alegação de que a gratificação poderia “resultar na criação de despesas, configurando afronta às regras estabelecidas pelo Regime de Recuperação Fiscal”.[4]

Do outro lado, em grande parcela da esquerda, e, sobretudo, no governo, o silêncio impera, como se estivessem também traçando os planos para um melhor tratamento político do massacre.

E, assim, o massacre vira mera disputa de narrativas e a tragédia cotidiana que atinge, há séculos, a população negra no Brasil segue sem qualquer enfrentamento concreto, até que, por nova motivação política, outro massacre se realize e voltemos a contar os mortos, apenas para ver se o recorde foi batido, ou não!

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores). [https://amzn.to/3LLdUnz]

Notas

[1]Neste link.

[2]Neste link.

[3]Neste link.

[4]Neste link.

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