a terra é redonda

Radicalidade neoliberal: golpes, autoritarismo e destruição da soberania nacional

Por José Raimundo Trindade*

“Eu me alugo para sonhar” (Gabriel Garcia Máquez)
“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?“ (Eduardo Galeano)

Vivemos em um momento temeroso e
arriscado na América Latina, porém nossos povos sempre viveram com suas “veias
abertas”. O Brasil é uma condição necessária na vida e realidade do continente,
o quanto caminhará para o despenhadeiro histórico da destruição social, como
outros povos antes já o fizeram, demarcará o destino do fantástico continente
de Garcia Márquez e Eduardo Galeano. Este texto volta a analisar os fatores de
fundo que implicam na atual transição autoritária e de imposição de um modelo
neoliberal de radical exclusão social, autoritarismo e de perda da soberania
nacional.

De um modo geral seis pontos característicos do neoliberalismo enquanto “ideologia da crise do sistema mundial”, são pontos macroestruturais fundamentais e que desde a segunda metade dos anos 1990 nos acompanham ciclicamente e seduzem a burguesia nativa brasileira e que no atual quadro conjuntural se revestem de maior radicalidade e autoritarismo:

A) A maior intervenção financeirizada do Estado, com elevação do esforço fiscal para fazer frente à permanente elevação da divida pública, dentro de uma lógica de produzir e expandir a divida pública para transferir rendas nacionais para o centro capitalista. A burguesia subserviente brasileira impôs a Emenda Constitucional 95/16, estabelecendo a mais rígida regra de controle fiscal da história do capitalismo como parte do sistema rentista que direciona o fluxo de riquezas produzidas nas sociedades coloniais para o centro imperial. Essa regra tem uma função geopolítica central: a destruição das condições de manutenção de qualquer sistema minimamente soberano e impondo a sociedade brasileira a sua completa subordinação ao poder de império estadunidense. Qualquer condição de resistência nacional passa pela imediata revogação dessa espúria condição neocolonial.

No caso brasileiro e de outros países
(periféricos e semi-periféricos) a dívida pública se vincula ao próprio
mecanismo de refinanciamento da mesma, o que se denomina de reciclagem de
capital fictício. Como historicamente podemos observar a política estabelecida
ainda no período ditatorial de 1964 se deu com base na colocação de títulos
públicos com correção monetária a posteriori (ORTNs e LTNs).

Vale notar, que o sistema de “recompra”
dos títulos se estabeleceu desde a década de 1970, configurando parte do modelo
brasileiro que praticamente eliminou o risco do sistema financeiro. Esse modelo
se projetou permanentemente desde então, tendo consequência notáveis: i) o
crescimento da dívida bruta mesmo em ambiente não deficitário; ii) tornou a
dívida uma condição de liquidez do sistema financeiro, tanto anulando qualquer
risco do sistema, como transferindo valor líquido da economia nacional para os
patronos do setor financeiro, principalmente externos, a principal forma de
subordinação da economia brasileira ao centro capitalista.

Assim temos ao
longo dos últimos anos dois fenômenos aparentemente contraditórios: A) Se impõe
uma brutal redução dos gastos primários (sociais) do Estado – o que se denomina
de Estado Mínimo é basicamente o Estado Mínimo Social -, imposto como regra
fiscal através da famigerada EC 95/16; ii) o neoliberalismo condicionou a
dívida pública somente aos componentes rentistas da mesma, ou seja, a dívida
financia novos títulos que transfere riqueza (na forma de juros e parte do
orçamento fiscal) para os controladores da dívida, não sendo destinada a divida
ao fundamento fiscal do financiamento de investimentos ou gastos em
infraestrutura social.

Assim, foi
estruturalmente estabelecido um mecanismo de rolagem através de carta de
recompra e da chamada zeragem automática de qualquer possível perda pelos
controladores da divida pública (dilers),
estabelecendo um sistema de divida estatal que de um lado pressiona
permanentemente a capacidade fiscal do Estado e, por outro, garante as
instituições financeiras rentabilidade sem riscos. Como nos informa os dados da
Secretaria do Tesouro Nacional entre 1997 e 2018 foi repassado ao sistema
financeiro o equivalente a R$ 5,1 trilhões dos 22 Orçamentos Anuais da União do
período (ver https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Ainda-o-superavit-primario/7/43255).
Da mesma forma os gastos financeiros do Estado brasileiro abocanha a maior
parcela do orçamento da União (em 2018 40,66% ou R$ 1,065 trilhão) (ver https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2019/02/grafico-2018.pdf).

A aparente
contradição aqui presente é que a lógica deficitária do Estado que, pelo
discurso dominante, se relaciona ao tamanho dos gastos públicos, porém a
realidade é que a parcela orçamentária destinada aos gastos primários (sociais)
é crescentemente diminuída e a parcela dos gastos destinados às despesas
financeiras permanece crescente. É somente aparentemente contraditório por
conta de que a paulatina redução das políticas sociais dentro do orçamento
fiscal é condição para uma massa crescente de valores transferidos do orçamento
fiscal para os gastos financeiros (divida pública).

B) O segundo elemento de ideia força do
neoliberalismo é o discurso do “territorialismo” e a noção de que políticas de
desenvolvimento devam ser somente pontuais e locais, como negação a políticas
nacionais e de afirmação de capacidades soberanas de desenvolvimento. Aspecto
que reforça a disputa interna a cada nação pelo fluxo de investimento, minando,
muitas vezes, a capacidade fiscal local em favorecimento aos capitais empresariais
e desorganizando às relações federativas. No atual ciclo neoliberal de condição
autoritária, observa-se a perda da própria soberania geopolítica, estabelecido
com a concessão de parte do território nacional para os agentes econômicos
externos e outros Estados, como no caso da cessão da Base de Alcântara para o
império estadunidense.

C) Imposição pela OMC (Organização
Mundial do Comércio) de normas tarifárias e para-tarifárias que sufragam os
“princípios da concorrência, abertura comercial e flexibilidade cambial”
desiguais e fortemente assimétricos, diminuindo a capacidade de negociação dos
países periféricos e reforçando os circuitos comerciais norte-norte. A
diminuição de barreiras tarifárias associadas a acordos multilaterais
realizados no âmbito da OMC e à proliferação de acordos regionais favoreceu a
globalização de processos produtivos, reforçando formas de subcontratação e a
crescente externalização produtiva em diversos setores.

D) Elevação dos desequilíbrios
financeiros e comerciais. A financeirização se processa tanto pelo reforço do
caráter rentista da estrutura econômica, compreendendo a expansão da massa de
capital fictício no sistema de crédito, como pela flexibilidade cambial e
liberalização da conta de capital com consequente instabilidade das transações
correntes e balanço de pagamentos das economias periféricas e, nos últimos anos
das próprias economias centrais.

E) Desmonte das políticas sociais,
flexibilização dos mercados de trabalho e destruição da seguridade social,
componentes necessários à expansão sem freios do Exército Industrial de Reserva
e ao estabelecimento da ideologia liberal-conservadora (“cada um por si, Deus
por todos”). No Brasil já temos 41 milhões de pessoas que são desempregas e
subempregadas constituindo parte desta enorme massa de pessoas não servíveis ao
capitalismo.

F) No novo ciclo neoliberal (2016 / ?) a
lógica destrutiva do sistema nacional de produção industrial se acirra,
combinando-se um modelo mais regressivo da economia  e aprofundando a base primário exportadora, de
tal modo que hoje todos os principais produtos exportados pelo país são
produtos básicos, tais como o minério de ferro, óleos e produtos de soja. Do
mesmo modo se destrói a base reprodutiva do capital com níveis tecnológicos
mais complexos, como fizeram com a venda e desmonte da indústria aeronáutica
(Embraer) e, ainda mais contundente, a privatização do sistema energético
nacional, tanto no processo de destruição da Petrobrás e desnacionalização do
Pré-sal, assim como a privatização da Eletrobrás.

Os golpes de estado ocorridos não
somente no Brasil, mas em toda a América Latina se baseia na perda das
múltiplas soberanias: da soberania tecnológica, da soberania financeira, da
soberania geopolítica, da soberania pela cidadania. Será a perda da soberania
nacional, enquanto condição de capacidade de exercício de poder nacional
autônomo, que envolve aqueles quatro tipos de soberanias, que está em jogo na
atual disputa entre a sociedade brasileira, que deve se organizar em torno de
um projeto de nação, e as forças conservadoras e fascistas que se organizam em
torno de um projeto de neocolonização brasileira e de completa subordinação aos
interesses do poder de império estadunidense. 

O passo seguinte é a nossa reação e a construção de um projeto de nação!

*José Raimundo Trindade é professor da Universidade Federal do Pará e do Programa de Pós-graduação em Economia

Radicalidade neoliberal: golpes, autoritarismo e destruição da soberania nacional – 30/11/2019 – 1/1
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