Por MARCO SCHNEIDER, WILLIAM FRANÇA & LUIZ CLÁUDIO LATGÉ*
A história, o desenvolvimento e as implicações da inteligência artificial, tanto em termos técnicos quanto sociais e econômicos
A inteligência artificial
Se a história da técnica pode até certo ponto ser adequadamente ilustrada com o auxílio da conhecida imagem de Marshall McLuhan (1969), conforme a qual os meios de comunicação e outras técnicas seriam extensões do corpo humano, as extensões se tornam extrações sob o regime do capital, mediante duas modalidades de alienação.
Em primeiro lugar, quando os produtores diretos são alienados de seus meios de produção – terras, oficinas e ferramentas, fazendo com que camponeses expulsos dos campos e artesãos, cujas oficinas não podem concorrer com manufaturas, tornem-se operários assalariados, no que Marx (1985) denomina de subsunção formal do trabalho ao capital.
Em segundo lugar, e esse é o ponto que nos interessa aqui em particular, quando são alienados dos seus saberes laborais, que serão subdivididos e encarnados em unidades de trabalho independentes e combinadas, para serem posteriormente incorporados à maquinaria da indústria, processo que constitui a subsunção real do trabalho ao capital (Marx, 1985).
A subsunção real do trabalho ao capital é uma das formas de conversão de trabalho vivo em trabalho morto. A outra é simplesmente a produção de mercadorias sob regime assalariado, já presente na subsunção formal (Marx, 2002).
O processo de alienação de saberes denominado subsunção real do trabalho ao capital tem início nos primórdios da indústria moderna e segue até os dias de hoje, a despeito da complexidade da nova divisão internacional do trabalho. Começa com a subsunção formal e depois real ao capital de trabalhos ditos manuais e segue com os do tipo intelectual (Antunes, 2006).
Inicialmente, e em alguma medida até hoje, a subsunção do trabalho intelectual se dá somente em termos formais, como em qualquer situação de trabalho intelectual sob regime assalariado – professores, jornalistas, roteiristas etc. Gradualmente, se dá também em termos reais, pelo menos desde a máquina calculadora – primeira modalidade de Inteligência artificial, arriscamos afirmar –, cujas novas formas vêm encantando e assombrando o mundo.
Temos assim que a Inteligência artificial, numa primeira aproximação, sob a perspectiva da crítica da economia política, é fruto de uma nova etapa da subsunção formal e real do trabalho intelectual ao capital.
Além disso, Inteligência artificial é um termo genérico que designa grosso modo a capacidade de máquinas emularem ou superarem ações humanas ditas inteligentes. Ações inteligentes envolvem compreensão, adaptação (adaptar-se à situação ou adaptar a situação a si), invenção, reprodução, transformação. São capacidades assimilativas, adaptativas e inventivas, dependentes de processos denominados, no caso da Inteligência artificial, de aprendizado de máquinas.
Esse aprendizado requer, além de programadores de algoritmos – cujo trabalho intelectual é subsumido ao capital em termos formais e reais –, imensas quantidades de dados, alienados de todos os usuários das plataformas digitais, mediante processos de vigilância, espionagem e captura por parte das big tech, que operam em regime oligopolista. Essas corporações riquíssimas são em sua maioria Americanas e se colocam sempre que podem acima da Lei do resto do mundo, e mesmo dos EUA, em alguns casos.
Assim, numa segunda apreciação, a Inteligência artificial é também resultado de uma nova modulação do velho imperialismo, lato sensu, pois gera lucros estratosféricos e fortalece o poder geopolítico respectivamente dessas empresas e do Estado Americano, às custas da população mundial, incluindo a Americana. Essas custas envolvem trabalho semi escravo em minas de ouro e nióbio no Brasil e na África, uberização do trabalho (Bezerra, 2024), desemprego e invasão da privacidade ao redor do mundo.
A Inteligência artificial, portanto, é o resultado composto do conhecimento alienado dos programadores de algoritmos e do big data, este produzido pela navegação de todas as pessoas conectadas nas plataformas digitais, no seu tempo livre ou de trabalho, trabalhando para as plataformas ou não.
O último caso inclui o trabalho dos responsáveis diretos pela produção de conhecimento e entretenimento – cientistas, jornalistas, roteiristas, artistas etc. –, conhecimento este cujo custo de produção (formação, apuração, pesquisa, criação) e circulação (publicação, radiodifusão, distribuição e exibição) é consideravelmente alto, fazendo com que sua alienação venha gerando disputas entre setores antigos e emergentes das classes dominantes ligadas à produção, reprodução e circulação de informação e comunicação, como empresas jornalísticas e plataformas.
Os meios de comunicação convencionais obedecem a uma lógica bem definida de produção, distribuição, comercialização e de negócios, que estabelece todo um processo, regras e códigos de valores. Assim se diferenciam, o jornal, o rádio, a TV e, agora as mídias digitais.
É possível analisar as mídias dentro de uma planilha hipotética, que pode ser concebida em sua forma mais simples, apesar da complexidade de cada atividade: produto, tecnologia, geografia, sistema de produção, modelo de negócios, métricas e preços.
No caso dos jornais impressos, o produto é o jornal diário, um apanhado de páginas repletas de fotografias e notícias. As notícias devem ser atraentes para o leitor, o que permitirá que o jornal venda exemplares e anúncios. Para ser fabricado, depende de uma tecnologia, uma impressora. A produção exige a contratação de repórteres, fotógrafos e editores, e um tempo de produção. Os jornais já tiveram edição matutina e vespertina. Culturalmente, se estabeleceu como referência uma edição diária.
O produto tem um alcance limitado, uma vez que é preciso transportar o jornal até o leitor. Isso define a sua geografia. E também o conceito de notícia, daquilo que acontece mais ou menos perto e pode ter impacto na vida do cidadão.
O processo de produção também define o tamanho do jornal. Quantas páginas pode ter? É preciso profissionais para produzir as notícias isso tem um custo. A equação, então, passa a ser quantas notícias posso produzir, quantas páginas posso entregar, para o jornal chegar ao leitor no horário e a um custo aceitável. A lógica do negócio então precisa equilibrar o tempo de produção, o custo de produção, a quantidade de exemplares e o preço de vendas para que a empresa possa sobreviver e ter lucro.
Todas as variáveis são quantificadas: público, exemplares, preço de capa, valor do anúncio. O jornal terá dois cadernos, vinte páginas, contará com 30 repórteres e fotógrafos, terá cinco carros de reportagem e uma tiragem de 50 mil exemplares. É um exercício de contabilidade. O jornal estabelece, então, que custará R$ 5 e que vai vender uma página de anúncio por R$ 10 mil. Uma planilha que será revista ao longo do tempo em função da oscilação dos fatores. O papel fica mais caro, sobe o custo da mão de obra, as vendas caem, qualquer alteração impõe ajustes. Mas não muda a lógica de negócios. Oferecer informação, para criar uma audiência e vender assinaturas e audiência.
A TV tem outras singularidades, mas obedece à mesma lógica de negócio. Enquanto a tecnologia do jornal era a impressora, a TV precisa de antenas, ilhas de edição, equipamentos de transmissão e receptores. Da mesma forma que o jornal, esta tecnologia e seus custos de produção vão ser importantes para a definição do negócio. Mas a lógica é a mesma: construir audiência, a partir da produção de conteúdo audiovisual, notícias, esporte, entretenimento, que será consumido por uma determinada audiência, na área de influência do sinal eletrônico, a sua geografia.
Assim, a TV aberta vende anúncios. TV Globo, Bandeirantes, Record, todas da mesma forma, em sua escala de negócios. O custo de produção, como nos jornais, se ajustará à capacidade de comercialização. É preciso investir em tecnologia, pessoal, câmeras etc. Mas este custo precisa caber no orçamento do comercial. A TV cria sua própria linguagem, métricas de audiência e tabelas de comercialização. Se os jornais vendem centímetros, a TV vende segundos, para o público que é capaz de atingir em determinada área geográfica.
O modelo pode ser aplicado a qualquer mídia, mas começa a ser quebrado com as mídias digitais. A tecnologia derruba várias limitações das mídias tradicionais. Populariza a produção e circulação de imagem, som e texto, a soma de todas as outras mídias. É interativa. E desmonta qualquer geografia, podendo ser acessada em virtualmente qualquer lugar do mundo. Impõe, desta forma, uma escala inalcançável para outras mídias – embora cada uma delas possa se valer das novas tecnologias para atualizar seus produtos e entregas.
Até aqui, estamos tratando da tecnologia – e é assim que as plataformas gostam de se apresentar, como empresas de tecnologia, não mídias. No entanto, da mesma forma que as conectado nas redes. Aqui começam as diferenças, porque a essência do negócio não está em despertar o interesse do público mediante a circulação de conteúdo profisisonal, cuja produção ou aquisição tem um custo, mas mediante a circulação permanente de informação não paga, que mantenha o consumidor conectado. Depois de algumas tentativas erráticas, nos primórdios da internet e durante os dez anos que se seguiram até a popularização dos Smartphones, as plataformas digitais estabeleceram o seu modelo de negócios: conectar o público, oferecendo um fluxo incessante de informações.
Conexão universal e fluxo permanente de informações é o que vai viabilizar o novo negócio. Com o conhecimento extraído de bilhões de conectados, passa a ser possível oferecer publicidade programática, cujo grau de precisão é superior à publicidade nas mídias convencionais.[i]
O custo, então, se desloca, desta forma, da produção de informação para os sistemas de vigilância e processamento de dados, os algoritimos e ferramentas de busca e de (re)conhecimento do consumidor. Como o custo de produção de informação constante seria proibitivo e as plataformas demandam um fluxo infinito de produção, não podem remunerar esta produção como faziam os jornais ou a TV, pagando profissionais e direitos de transmissão. Como pagar um fluxo de conteúdo infinito?
Num exercício elementar de matemática, a questão se evidencia. Pagar um centavo por postagem já seria proibitivo. Um centavo multiplicado por infinito, geraria uma despesa impagável de infinitos reais. Tampouco seria viável reduzir o conteúdo ao valor pagável, porque isto interromperia o fluxo necessário para manter a conexão. Desta forma, o valor da informação nas plataformas é muito próximo do que as plataformas gastam para exibi-lo, muito perto de nada. Tik tok, Whatsapp, Facebook, Instagram, todos competem com o The New York Times e a Nature, com o mesmo valor de um clique.
É verdade que todos os conteúdos trafegam pelas plataformas, inclusive o conteúdo qualificado de jornais e outras mídias, que custam caríssimo, e por mais que tentem, não serão remuneradas por isso. Eventualmente as plataformas poderão ceder a algum tipo de acordo. Mas já demonstraram que se a cobrança for significativa, preferem tirar do ar o noticiário. De resto, a planilha hipotética que apresentamos ainda se aplica: as plataformas construíram a sua logica de negócios, suas métricas, suas tabelas de comercialização e disputam mercado, com as mídias tradicionais, com enorme vantagem.
O impacto dessa mudança é maior que a mudança no mercado das mídias. Ela estabelece um novo regime de informação (BEZERRA, 2023), ao confundir emissor e receptor, especialistas e amadores, desvalorizando a qualidade da informação, sob a aparência de uma democratização da comunicação. Na verdade, as plataformas digitais favorecem narrativas e definem todo um caldo de cultura que modela o nosso tempo. Entre os valores, aparece com destaque a liberdade de expressão. Um direito fundamental do cidadão e um valor defendido historicamente pela imprensa.
Parece ser a mesma causa, mas não é: o que se defende é a possibilidade de igualar informações consistentes com opinião, mesmo que baseadas em dados falsos e intencionalmente manipuladas para gerar clicks. A narrativa é de que todo cidadão tem direito de se expressar, mesmo que seja para conspirar contra governos democráticos, destruir reputações, vender produtos falsos para doentes. A narrativa vai estabelecer afinidades eletivas, que já se mostraram bem definidas, com o crescimento de grupos extremistas, sobretudo de extrema-direita, como vimos nos Estados Unidos, Hungria, no Brasil e agora também na Argentina.
Estas afinidades farão com que as plataformas se alinhem, preferencialmente, a estes grupos, para gerar engajamento (audiência) e proteção. O melhor exemplo pode ser tomado no Brasil com a ação das plataformas na eleição de uma bancada da desinformação, que se elegeu propagando notícias falsas. A articulação se tornou evidente quando o governo tentou debater no Congresso a regulamentação das plataformas e mídias digitais e o Gloogle, entre outras, distribuiu conteúdo apresentando o projeto como Lei da Censura. Com o apoio da bancada da desinformação.
Não que a mídia tradicional estivesse ou esteja isenta de vieses e manipulações. Longe disso. Havia, e há, porém, quanto a ela, algum grau de regulação, um ethos profissional dos jornalistas, uma tradição mais ou menos verdadeira de compromisso com o interesse público e com a facticidade da notícia, uma reputação de credibilidade a zelar. Além disso, empresas jornalísticas e de radiodifusão têm endereço, CNPJ, responsáveis, e estão subordinadas a legislações nacionais. Assim, por mais viés ideológico e interesse comercial que possam ter, há freios e contrapesos, enquanto a mediação algorítmica das plataformas, além de opaca e aparentemente sem dono, têm como ethos único, por assim dizer, a margem de lucro da publicidade programática.
Sendo assim, podem as plataformas digitais ser consideradas ferramentas neutras, pura tecnologia de conexão e navegação livre, não dirigida? A forma como empregam e estimulam o emprego da Inteligência artificial, por exemplo em escândalos como da Cambridge Analytica, do Brexit, das eleições americana de 2016 e brasileira de 2018, entre tantos outros casos conhecidos, sugere que não.
Em termos puramente descritivos, a Inteligência artificial é uma área da Ciência da Computação. O termo foi utilizado pela primeira vez por John McCarthy, durante uma conferência no Dartmouth College, em 1956 (IBM).
Basicamente, embora emule a inteligência humana, a Inteligência artificial desempenha tarefas que humanos não conseguem cumprir com a mesma velocidade, aumentando a produtividade e otimizando processos (Bengio, 2023; He e Degtyarev, 2023). Desempenha também tarefas que os humanos são perfeitamente capazes de cumprir, com uma eficácia superior à Inteligência artificial – como no caso dos serviços de respostas automáticas por telefone ou WhatsApp –, mas a custos bem menores.
Conquanto pareça uma novidade, a Inteligência artificial começou a ser desenvolvida na primeira metade do século XX e hoje é empregada em diversos setores da sociedade, civis e militares. Medeia desde as relações interpessoais até as econômicas e políticas, incluindo a desinformação digital em rede (Schneider, 2022).
A Inteligência artificial não está limitada aos softwares de computador, mas se aplica igualmente aos hardwares. A chamada Internet das Coisas (IOT), os carros autônomos, a publicidade programática (microtargeting) e os sistemas biométricos (de impressão digital, de reconhecimento facial, de voz etc.) são alguns exemplos da atividade de Inteligência artificial, dentre uma miríade de outros possíveis.
Aprendizagem de máquina (machine learning), aprendizagem profunda (deep learning) e big data são termos-chave ao se falar em Inteligência artificial. Isso porque essa aprendizagem, que é o que, em última análise, permite à Inteligência artificial funcionar, somente é possível com um considerável volume de dados que municiam os algoritmos, outro elemento indissociável desse conjunto. Com base nos dados analisados e organizados por esses últimos (os algoritmos) é que a máquina aprende.
O termo “máquinas de aprendizagem” apareceu pela primeira vez no artigo “Máquinas de Computação e Inteligência”, de Alan M. Turing, em outubro de 1950. Orientado pela questão “Podem as máquinas pensar?”, Turing propôs um teste para verificar se um computador, quando em uma situação de disputa com um ser humano, teria desempenho satisfatório.
Turing (1950) concluiu que, a depender da capacidade de armazenamento, processamento e programação:
Partes das máquinas modernas que podem ser consideradas análogas às células nervosas funcionam cerca de mil vezes mais rápido que estas [células nervosas, leia-se “neurónios”]. Isto deverá proporcionar uma “margem de segurança” que poderá cobrir perdas de velocidade que possam surgir de diversas formas. (Turing, 1950, p. 455, comentário nosso).
Para uma melhor compreensão do processo de aprendizagem de máquinas é válida a introdução ao conceito igualmente importante de “redes neurais”. Turing (1950) menciona essas redes nas suas conclusões, mas é Hopfield (1982) que se concentra estritamente nesse tema, explicitando, pela perspectiva da engenharia química, a analogia entre os neurônios e os “sistemas físicos com capacidades computacionais”, os chips.
A Inteligência artificial, portanto, desde a sua concepção, imita a capacidade cognitiva humana. Ela desenvolveu-se exponencialmente na última década e se tornou uma pauta de expectativas e preocupações para populações e governos em todo o mundo, em função de seus benefícios e malefícios, conhecidos e imaginados. Dentre os malefícios conhecidos, temos a propagação de desinformação em eleições, às vezes com o uso de deep fakes, também empregadas para simular pornografia, misturando rostos, corpos e vozes; a uberização das relações de trabalho (Bezerra, 2024); a substituição de trabalho humano por Inteligência artificial, promovendo desemprego etc. Dentre os desconhecidos, especula-se sobre a Inteligência artificial sair de controle e voltar-se contra as pessoas, numa atualização do Frankenstein, do Gólem e outros medos reativos à mudanças tecnológicas radicais.
Não trataremos aqui do desconhecido. Nas Considerações finais, contudo, retomaremos a crítica a malefícios bem conhecidos da Inteligência artificial, no intuito de problematizar a própria noção no que esta possui de ideologicamente falacioso, sugerindo usos alternativos. Para fundamentar o argumento, iremos incorporar ao debate uma breve revisão da apropriação crítica efetuada por Marx da dialética hegeliana e do materialismo de Feuerbach, para discutirmos as próprias noções de inteligência, razão e astúcia.
A razão dialética
Algo inteligente há de ser racional. Mas o que significa exatamente ser racional? No senso comum, não agir de modo absurdo, incoerente, que gere malefícios (para quem?). É também calcular com precisão.
Inteligência envolve logos e metis (Capurro, 2020), usualmente traduzidos como razão e astúcia.
Logos diz essencialmente respeito à noção de verdade; metis, à de eficácia.
Algo é verdadeiro no sentido da equivalência máxima entre a compreensão e a coisa compreendida. Razão significa entre outras coisas a faculdade subjetiva de estabelecer essa equivalência, com a mediação dos sentidos, da linguagem ou de ambos. Mas essa coisa compreendida pode ser um objeto mais ou menos indiferente de contemplação ou o resultado de uma ação planejada. Pode ser incluive a meta de uma ação vital. No caso da ação planejada, sua verdade está na eficácia do seu resultado em relação à meta. Mas quem planejou? Como o resultado afeta quem não planejou? Para quem é razoável?
De acordo com Herbert Marcuse, a Revolução Francesa introduziu na história o mote de uma ordem social regida pela razão. Os principais filósofos alemães do período, restando a Alemanha politíca e economicamente atrasada em relação a França e Inglaterra, aprofundaram essa questão, divididos, de um lado, entre a admiração pelos avanços da Revolução, as conquistas da ciência e da técnica, a crescente liberdade individual e, de outro, a recusa ao Terror, à miséria de multidões, ao esgarçamento dos laços sociais, ao que posteriormente seria chamado por Max Weber de “desencantamento do mundo”.
O idealismo alemão foi considerado a teoria da Revolução Francesa. Isto não significa que Kant, Fichte, Schelling e Hegel tenham elaborado uma interpretação teórica da Revolução Francesa, mas que, em grande parte, escreveram suas filosofias em resposta ao desafio vindo da França à reorganização do estado e da sociedade em bases racionais, de modo que as instituições sociais e políticas se ajustassem à liberdade e aos interêsses do indivíduo. Apesar de sua severa crítica ao Terror, os idealistas alemães saudaram unânimemente a Revolução, considerando-a o despontar de uma nova era e, sem exceção, associaram seus princípios filosóficos básicos aos ideais que ela promovera. (Marcuse, 1978, p. 17)
Mas o que seria uma base racional para o Estado e a sociedade? O mundo deveria tornar-se uma ordem de razão.
Os ideais da Revolução Francesa encontraram suporte nos processos do capitalismo industrial. O império de Napoleão liquidara com as tendências radicais da Revolução consolidando, ao mesmo tempo, suas conseqüências econômicas. Os filósofos franceses daquele período associaram a realização da razão à expansão da indústria. A crescente produção industrial parecia capaz de fornecer todos os meios necessários para satisfazer as necessidades do homem. Assim, ao tempo em que Hegel elaborava seu sistema, Saint-Simon, na França, exaltava a indústria como o único poder capaz de conduzir os homens a uma sociedade livre e racional. O processo econômico aparecia como o fundamento da razão. (Marcuse, 1978, p. 18)
Quão distantes estamos hoje desses horizontes aurorais, para usar um termo caro a Bloch. Hoje, teme-se que a inteligência artificial, tetraneta da máquina a vapor e do tear mecânico, domine ou destrua a humanidade. No mínimo, que se preste a péssimos usos do ponto de vista da democracia e dos direitos humanos. E ninguém mais tem fé na economia capitalista em termos do bem geral. Na melhor das hipóteses, alega-se que não há opção melhor. E a ideia de que o processo econômico seria o fundamento da razão soa bizarra, absurda, a não ser para os ricos ou ultra ricos.
Pouco depois de Napoleão liquidar “as tendências radicais da Revolução”, Augusto Comte se empenha em liquidar as tendências radicais do iluminismo francês, formulando uma noção de razão positivista, que deliberadamente cega o gume crítico da razão, isto é, sua propriedade de negar o que há de irracional em dado estado de coisas – limitando-se a negar o que já estava morto, o Ancien Régime. Se estabelece assim, com o triunfo da burguesia e a subordinação das classes populares em moldes capitalistas, uma nova racionalidade dominante (Marcuse, 1978, p.309-325), coroada pelo binômio idealista e conservador “ordem e progresso”, inscrito em nossa bandeira nacional e cuja vocação autoritária conhecemos tão bem no Brasil.
Confrontando a racionalidade do tipo positivista e sua base, temos a razão dialética: “Na visão de Hegel […] o homem atingirá certas concepções que revelam estar a razão em conflito com o estado de coisas existente. Ele chegará a perceber que a história é uma luta constante pela liberdade, que a individualidade do homem, para poder realizar-se, requer que êste possua alguma propriedade, e que todos os homens tenham igual direito a desenvolver as faculdades que lhe são próprias. Na verdade, porém, a servidão e a desigualdade prevalecem; muitos homens não possuem nenhuma liberdade e estão despojados da última migalha de propriedade. Em conseqüência, a realidade “não racional” deve ser modificada até se ajustar à razão”. (Marcuse, 1978, p. 19)
Há, porém, uma dificuldade: “[…] O que os homens pensam ser verdadeiro, certo e bom deve realizar-se na organização real da sua vida social e individual. Mas o pensamento varia de indivíduo para indivíduo, e a diversidade resultante das opiniões individuais não pode fornecer um princípio diretor para a organização comum da vida. A não ser que o homem possua conceitos e princípios de pensamento que designem normas e condições universalmente válidas, seu pensamento não poderá pretender governar a realidade. Em consonância com a tradição da filosofia ocidental, Hegel acredita na existência de tais conceitos e princípios objetivos, e à sua totalidade êle chama razão”. (Marcuse, 1978, p. 19-20)
Razão, então, é a totalidade dos conceitos e princípios objetivos de pensamento que denotam condições e normas de validade universal, as quais devem ser implementadas, pois: “Para Hegel […] a razão não pode governar a realidade, a não ser que a realidade se tenha tornado racional em si mesma. Esta racionalidade é possível pela irrupção do sujeito no próprio conteúdo da natureza e da história.” (Marcuse, 1978, p. 21)
Para o positivismo, o fim do Ancien Régime devia carregar consigo o fim do pensamento como negação da irracionalidade do existente. O progresso viria dentro da ordem. Já Hegel, por toda a vida, viveu a tensão entre a negação racional do existente irracional e uma recusa a idealismos fantasiosos.
Seja como for, como tornar a realidade racional se nossa época pretende abdicar de condições e normas universais – como o fim da exploração do homem (e da mulher) pelo homem –, sendo marcada, ao contrário, pela disputa dos mais variados particularismos, uns progressistas e libertários, outros reacionários e autoritários, ou ainda oportunistas, mas todos refratários à própria ideia de razão, acusada por uns de totalitária, por outros de blasfema?
É essa disputa que tem educado, por assim dizer, a Inteligência artificial, com o segundo grupo ganhando terreno.
Com exceção de situações nas quais interesses corporativos são ameaçados pela ciência, como no caso das indústrias poluidoras de combustíveis fósseis ou pesticidas, a razão do tipo positivista não tende a confrontar o status quo, seja do tipo liberal, seja autoritário. Isso permanece sendo tarefa da razão dialética, a qual desenvolveu-se, a partir de Marx, como crítica ao conhecimento contemplativo, crítica sintetizada em suas 11 Teses sobre Feuerbach.
É sabido que as famosas Teses são anotações pessoais de Marx, posteriormente publicadas por Engels. Trata-se de postulados breves e poderosos, que serviram de orientação ao próprio Marx na elaboração de seu sistema. Porém: “[…] frases curtas às vezes parecem poder ser abrangidas mais rapidamente do que de fato o são. E às vezes é próprio de frases famosas, muito contra a vontade delas, que elas não mais provocam a reflexão ou que são engolidas ainda muito cruas. […] o que exatamente se tem em mente com a tese 11? Como ela deve ser compreendida no sentido filosófico sempre preciso de Marx? Ela não deve ser entendida, ou melhor, mal-usada em nenhuma mistura com o pragmatismo”. (Bloch, 2005, p. 271)
Ernst Bloch esclarece que houve bastante debate sobre a ordenação das Teses. Segundo ele, o caráter assistemático de anotações pessoais indica que sua ordem é aleatória, podendo ser identificada uma estrutura subjacente passível de ordenação em termos de um grupo epistemológico, que discute contemplação e atividade (teses 5, 1 e 3); um grupo histórico-antropológico, que trata da auto-alienação e do verdadeiro materialismo (teses 4, 6, 7, 9 e 10); um grupo teoria-práxis, que discute a questão da comprovação e da validação do conhecimento (teses 2 e 8); sendo a 11ª o coroamento, a conclusão.
Não há aqui espaço para discorrermos detalhadamente sobre a exegese blochiana das Teses. Contudo, vamos discutir a questão do conhecimento contemplativo, assim como chamar a atenção para a crítica que Bloch dirige a más leituras das Teses, particularmente da 11ª, que conduzem a confusões teóricas, epistemológicas e políticas irracionalistas e potencialmente reacionárias. Pretendemos com isso não propriamente acrescentar algo novo aos estudos sobre Marx, mas advogar a pertinência ao debate contemporâneo em torno da Inteligência artificial da crítica de Ernst Bloch ao pragmatismo e ao praticismo.
Por praticistas Ernst Bloch refere-se a certa tendência voluntarista e anti-itelectualista, presente no seu tempo e no nosso: “No que diz respeito aos “praticistas” do movimento socialista, é óbvio que moralmente eles, com toda certeza, nada têm em comum com os pragmatistas; sua vontade é transparente, sua intenção, revolucionária, seu alvo, humanitário. Contudo, ao deixarem a cabeça de lado, logo, nada menos que toda a riqueza da teoria marxista, juntamente com a apropriação crítica do legado cultural feita por ela, acaba por surgir, por ocasião do “trial and error method”, do diletantismo, do “praticismo”, aquela cruel falsificação da tese 11, que lembre metologicamente o pragmatismo. […] Os “praticistas”, que no máximo dão crédito de curto prazo à teoria, […] introduzem na essência luminosa do marxismo a escuridão de sua própria ignorância privada e do ressentimento que tão facilmente se associa à ignorância. […] o esquematismo da falta de reflexão também vive da própria antifilosofia inativa. Desse modo, porém, pode-se reportar ainda menos à preciosa tese sobre Feuerbach; o mal-entendido transforma-se, então, em blasfêmia. Por essa razão, deve ser continuamente enfatizado que, em Marx, um pensamento não é verdadeiro por ser proveitoso, mas proveitoso por ser verdadeiro”. (Bloch, 2005, p. 273)
Ernst Bloch está aí atacando uma leitura equivocada da 11ª Tese, conforme a qual, segundo Marx, a filosofia já teria cumprido seu papel e só valia a ação revolucionária, como se esta pudesse prescindir da teoria revolucionária, como expresso na célebre sentença de Vladímir Lênin. Nos termos do próprio Bloch: “Por mais que o antipragmatismo dos maiores pensadores da práxis [… propicie portas abertas, estas podem reiteradamente ser fechadas por uma má interpretação interesseira da tese 11. Por uma interpretação que, de modo grotesco, crê poder detectar no triunfo máximo da filosofia – que ocorre na tese 11 – uma abdicação da filosofia, justamente um tipo de pragmatismo não burguês”. (Bloch, 2005, p. 273-4)
Ou seja, se a práxis requer metis, requer igualmente logos: “[…] se a destruição da razão faz afundar novamente no irracional bárbaro, o desconhecimento da razão faz afundar no irracional imbecil; sendo que este último não chega a derramar sangue, mas arruína o marxismo. Assim, a banalidade também é contra-revolucionária em relação ao próprio marxismo; pois este é a concretização (não a norte-americanização) das ideias mais avançadas da humanidade”. (Bloch, 2005, p. 274)
A 11ª Tese sobre Feuerbach não é uma recusa da filosofia. É tanto uma crítica ao elemento meramente contemplativo de quase toda a filosofia que a precedeu, quanto um convite a uma permanente atualização da filosofia e do pensamento crítico como um todo mediante a práxis, isto é, a retroalimentação de teoria e prática, numa perspectiva transformadora, tributária tanto da história das lutas humanas por justiça e liberdade quanto de sua melhor expressão teórica na filosofia: “[…] contra os filósofos precedentes é levantada a acusação, ou melhor: é identificado neles, como barreira de classe, o fato de terem apenas interpretado diferentemente o mundo, não o fato de terem filosofado. A interpretação, porém, é semelhante à contemplação e decorre dela; o conhecimento não-contemplativo, portanto, é distinguido agora como bandeira que verdadeiramente leva à vitória. Todavia, como bandeira do conhecimento, a mesma bandeira que Marx estampou – claro que com ação, não com a tranquilidade contemplativa – na sua obra principal de investigação erudita. Essa obra principal é pura instrução para o agir; no entanto, ela se chama O Capital, e não Guia para o sucesso ou ainda Propaganda em favor do ato; não é nenhuma receita do feito heroico […], mas situa-se […]na análise cuidadosa, na investigação filosófica das inter-relações dentro da mais complicada realidade, tomando o rumo da obrigatoriedade compreendida, do conhecimento das leis dialéticas do desenvolvimento da natureza e da sociedade como um todo. […] Sem dúvida, Marx proferiu palavras cortantes contra a filosofia, mas não o fez contra a filosofia contemplativa pura e simplesmente, sempre que se tratasse de uma filosofia relevante de períodos importantes. Ele o fez precisamente contra um determinado tipo de filosofia contemplativa, ou seja, a dos epígonos de Hegel do seu tempo, que era antes uma não-filosofia”. (Bloch, 2005, p. 274-5)
A noção de filosofia contemplativa a que Bloch se refere diz respeito, conforme o próprio Bloch, a praticamente toda a história da filosofia anterior a Marx, em um sentido mais geral, e à crítica de Marx a Feuerbach, mais especificamente.
Marx teria sido o primeiro pensador sério a situar a transformação, ou melhor, a articulação entre teoria e prática transformadoras, no centro do seu sistema. Mas a própria ideia de transformação não vale por si só. Nem toda transformação acarreta em melhoria. E o que deve orientar a transformação foi postulado pelo melhor da filosofia, reconhece Marx (2005) na Introdução à crítica da Filosofia do Direito de Hegel, onde tece o elogio às grandes conquistas da filosofia, particularmente da filosofia clássica alemã.
Marcuse, por sua vez, ao situar a filosofia clássica alemã em seu embate com o empirismo britânico, nos ajuda a entender melhor por quais caminhos Marx é herdeiro e crítico de ambas as correntes: “O idealismo alemão defendia a filosofia dos ataques do empirismo inglês, e a luta entre as duas escolas não significava simplesmente o choque entre duas filosofias diferentes, mas uma luta em que estava em jôgo a filosofia como tal”. (Marcuse, 1978, p. 28)
Tratava-se igualmente de um embate ético-político. É certo que o caráter materialista do empirismo importava para Marx. O problema era seu aspecto contemplativo: “Se a experiência e o hábito fôssem as únicas fontes do conhecimento e da fé, como poderia o homem agir contra o hábito, como poderia agir de acôrdo com idéias e princípios ainda não aceitos e estabelecidos? A verdade não poderia diferir da ordem estabelecida, nem a razão a poderia contrariar. Daí resultava não só o cepticismo como também o conformismo. O empirismo, por limitar a natureza humana ao conhecimento do “dado”, liquidava com, o desejo de o transcender […]” (MARCUSE, 1941, p. 31-2)
É bem conhecida a apropriação crítica feita por Marx da economia política britânica, além do socialismo francês. Nos detemos aqui em sua relação com o idealismo alemão, também bastante estudado, mas com um enfoque particular, mediado por estudo de Marcuse sobre Hegel e sua fortuna crítica, particularmente no pensamento de Marx, junto à exegese de Ernst Bloch das 11 Teses. O objetivo dessa abordagem, talvez caiba relembrar neste momento da exposição, é explorar elementos que nos permitam discutir a Inteligência artificial, enquanto noção e fenômeno, à luz do arcabouço teórico oriundo dessa tradição crítica.
Ocupa lugar de destaque a dialética hegeliana e sua atenção à contradição imanente à própria realidade histórica como motor de sua transformação. Mas cabe também destacar o imperativo categórico kantiano de que sujeitos não podem ser tratados como objetos, articulado à crítica da religião, de Feuerbach, como se lê no elogio de Marx ao radicalismo da “teoria alemã”, por esta concluir a crítica da religião “com a doutrina de que o homem é o ser supremo para o próprio homem”, conduzindo ao “imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem surge como um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível”. (Marx, 2005, p. 151)
A crítica da religião, de Ludwig Feuerbach, denuncia a inversão entre criador e criatura na relação entre o ser humano e a divindade, mas pernanece na esfera abstrata e contemplativa:
A “crítica antropológica da religião”, feita por Feuerbach, derivou a esfera transcendente em seu conjunto da fantasia desejante: os deuses são os desejos do coração transformados em seres reais. Concomitantemente surge, através dessa hipóstase do desejo, uma duplicação do mundo em um mundo imaginário e um real, sendo que o homem transfere a sua melhor essência do aquém para um além supra terreno. (Bloch, 2005, p. 259)
A mais famosa das Teses, a 11ª, é precisamente a que afirma terem os filósofos se limitado a contemplarem o mundo e teria chegado o momento de ir além, transformando-o. Isso seria ao mesmo o fim e a realização da filosofia, enquanto efetivação de suas maiores conquistas. E quais seriam estas? Concluir que o mundo deve tornar-se uma ordem da razão, que a essência da razão é a liberdade e que isso imperativamente deve ter validade universal, ou seja, valer para todos:
[…] o prosseguimento que Marx deu à antropologia de Feuerbach, como uma crítica da auto-alienação religiosa, é não apenas consequência, mas um desencantamento renovado do próprio Feuerbach ou da fetichização última, a antropológica. Assim, Marx conduz o homem ideal-genérico, via meros indivíduos, para o solo da humanidade real e da postura humanitária possível.
Para isso, fazia-se necessário lançar o olhar aos processos que realmente estão na base da alienação. Os homens duplicam o seu mundo não só por terem uma consciência dilacerada, desejante. Essa consciência, juntamente com o seu reflexo religioso, origina-se, antes, de uma divisão muito mais próxima, a saber, a divisão social. As próprias relações sociais estão dilaceradas e divididas, evidenciam um embaixo e um em-cima, mostram lutas entre essas duas classes e ideologias nebulosas do em-cima, dentre as quais a religiosa é apenas uma entre muitas. Para Marx, o trabalho que ainda restava fazer era justamente encontrar esse mais-próximo do fundamento mundano – ele próprio um imanente em relação ao imanente antropológico-abstrato de Feuerbach. (Bloch, 2005, p. 261-2)
O proletariado, enquanto classe universal, subordinada à irracionalidade da exploração, privado de propriedade e de liberdade para além da letra da lei – a liberdade formal –, seria o sujeito social responsável por transformar uma ordem social irracional – a despeito das conquistas da Revolução Francesa, pois ainda calcada na exploração do homem sobre o homem – em uma ordem racional, na qual a liberdade individual e a coletiva não estariam em contradição, mas seriam mutuamente condicionantes. Isso envolve, necessariamente, uma transformação no regime de propriedade, com o fim da propriedade privada dos meios de produção etc.
“[…] sem o partidarismo da posição revolucionária de classe existe apenas o idealismo retrógrado em lugar da práxis para diante. Sem o primado da cabeça até o fim restam apenas ainda os mistérios da dissolução em lugar da dissolução dos mistérios. Assim, na conclusão ética da filosofia do futuro feuerbachiana estão ausentes tanto a filosofia quanto o futuro; a teoria de Marx, em função da práxis, pôs ambos em funcionamento e a ética finalmente se fez carne”. (Bloch, 2005, p. 270)
Entretanto: “[…] o que definitivamente foi que o ponto de partida das Onze Teses, ou seja, a incipiente filosofia da revolução descobriu? Não se trata unicamente da nova incumbência do proletariado, por mais decisivamente que ele tenha se afastado da contemplação, que não tenha se permitido aceitar ou até eternizar as coisas como estão. Tampouco trata-se apenas do legado crítico-criativo recebido da filosofia alemã, da economia política inglesa, do socialismo francês, por mais necessários que esses três fermentos, principalmente a dialética de Hegel e o materialismo renovado de Feuerbach, tenham sido para a formação do marxismo. O que levou definitivamente ao ponto arquimédico e assim à teoria-práxis não apareceu até o momento em nenhuma filosofia […] Até o momento todo o saber referia-se essencialmente ao que passou, pois apenas este é contemplável. Assim, o novo ficou de fora da sua compreensão, o presente, onde o devir do novo tem a sua linha de frente, constitui um embaraço”. (278-9)
Tentamos acima sintetizar a passagem de uma racionalidade crítica, mas ainda contemplativa, para a noção de práxis, no intuito de contribuir para o debate em torno da crítica aos artifícios da astúcia que compõem a chamada Inteligência artificial e que a tornam essencialmente irracional, portanto não inteligente, do ponto de vista de suas vítimas, vítimas diretas de fraudes, trabalhadores explorados, usuários vigiados, multidões ludibriadas, direitos difusos atacados, democracias ameaçadas.
Considerações finais
A noção de inteligência precisa ser pensada em termos teleológicos, relacionados a meios e fins. Numa primeira aproximação, uma ação deve ser considerada inteligente se os meios empregados favorecem ou asseguram que se atinja o fim almejado. Isso é inquestionável, mas não resolve o problema do quão inteligentes merecem ser qualificados os fins.
Nada é ou pode ser puramente artificial, pois nada existe além da natureza, a não ser processos mediados pela ação humana a partir da natureza. Da pedra lascada e da fogueira aos algoritmos. Artificial é, assim, uma indicação de que houve interferência humana naquele resultado, ou melhor, significa algo que não teria sido sem essa interferência. Não se trata, portanto, de algo fora da natureza, mas de fruto da mediação humana.
No caso da Inteligência artificial, isso envolve engenheiros, programadores, produtores e consumidores, sem esquecer os proprietários e acionistas das plataformas, cujo telos D-M-D’ permanece a mediação decisiva em meio ao complexo de mediações intervenientes em ação.
“Só o homem tem o poder de auto-realização, o poder de ser um sujeito que se autodetermina em todos os processos do vir-a-ser, pois só êle tem entendimento do que sejam potencialidades, e conhecimento de “conceitos”. Sua própria existência é o processo de atualização de suas potencialidades, de adaptação da sua vida às idéias da razão. Encontramos aqui a mais importante categoria da razão, a saber, a liberdade. A razão pressupõe a liberdade, o poder de agir de acôrdo com o conhecimento da verdade, o poder de ajustar a realidade às potencialidades. […] A liberdade, em troca, pressupõe a razão, pois só o conhecimento compreensivo capacita o sujeito a conquistar e a exercer esse poder”. (Marcuse, 1978, p. 22)
Liberdade então é entendida como o poder de agir de acordo com o conhecimento racional da verdade e o poder de moldar a realidade de acordo com suas potencialidades. Logos e metis mesclam-se aqui, mediando a liberdade e sendo por ela mediadas.
Contudo, a liberdade dos acionistas e proprietários das plataformas de subsumirem de graça o trabalho e o lazer intelectual do mundo para enriquecer, indiferentes às consequênciasdo seu Frankenstein turbinado, é pura metis e pouco logos. Paralelamente, adeptos do terraplanismo ou de ilusões mais perigosas estariam efetivamente exercendo a sua liberdade de expressão ao propagarem absurdos nas redes digitais? Ou seriam conduzidos por oportunistas, no mais das vezes adeptos do irracionalismo, quando não francamente fascistas?
A liberdade é concebível sem verdade, desejo, coragem, medo, dor e prazer? A inteligência é concebível sem essas coisas, a não ser uma inteligência abstrata, puramente formal ou meramente instrumental?
Uma máquina, essencialmente e para sempre incapaz dessas coisas, por não ser orgânica, por não ser viva, não pode possuir uma inteligência e uma liberdade concretas, nem mesmo astúcia. Só pode atuar no complexo de mediações sociais de modo a atender as demandas mais influentes.
Certamente os processos maquínicos edulcorados como Inteligência artificial são fruto da ação humana sobre as potências e coisas naturais. Quem são esses humanos? Quando e onde atuam? De que maneiras? Com quais resultados? Para quem?
Quem: mineiros de ouro, columbita e tantalita; engenheiros; proprietários das minas; políticos que legislam relações de propriedade e trabalho em relação a atividade de mineração, processamento, circulação, compra, venda e aplicação dos resultados da mineração, que bem antes e ao mesmo tempo em que é de daods, é “[…] de minerais valiosos, como o coltan e o ouro, para a indústria dos eletrônicos. O coltan – uma mistura de dois minerais, a columbita (de onde se extrai o nióbio, que tem propriedades de supercondutor) e a tantalita (de onde se extrai o tântalo, utilizado na fabricação de pequenos condensadores) – é um minério metálico utilizado na maioria dos aparelhos eletrônicos, como smartphones, notebooks e demais computadores. […] Como a lei brasileira, até 2023, se baseava na declaração de boa-fé do vendedor para legitimar a comercialização do ouro brasileiro no mercado, é difícil precisar a porcentagem do ouro extraído ilegalmente de reservas indígenas (como as Yanomami) que está contida em cada smartphone”. (Bezerra, 2024, p. 49-50)
Quando: numa época de crise da hegemonia Americana, fortalecimento da China e ascenção da extrema direita ao redor do mundo. Onde: África, terras ianomâmis. De que maneiras: sob trabalho semiescravo e ou até bem remunerado, obtendo lucros astronômicos do sobretrabalho dos dois agentes anteriores, mineiros e programadores, distribuindo dividendos para o próximo grupo de prepostos nos estados burgueses, políticos lacaios do capital, e para os responsáveis pela circulação, que por sua vez envolve uma complexa divisão de trabalho e propriedade toda própria.
A Inteligência artificial, ou melhor, os artifícios da astúcia são distribuídos de modo desigual, assim como a cadeia de comando e execução das ações necessárias à sua existência, sem esquecer os resultados mais ou menos gratificantes ou catastróficos para os diversos agentes envolvidos, incluindo os usuários dos sistemas.
Entre os catastróficos, insuficientemente discutidos na esfera pública, acrescente-se uma infraestrutura sociotécnica composta por caríssimos e ecologicamente destruidores data centers, que consomem quantidades enormes de eletricidade e água. Quanta inteligência, quantos artifícios! Pode haver uma inteligência irracional? Pode haver uma razão estúpida, isto é, burra e brutal? A inteligência é irracional e a razão é estúpida do ponto de vista de suas vítimas: ninguém considera que ser iludido, ludibriado, explorado, estropiado, massacrado seja um resultado inteligente ou racional.
Inteligência artificial é uma nova modalidade de artifício dos espertos, dos astutos. Ou, dito em termos mais formais, a Inteligência artificial, como visto, é o resultado mais recente da tendência histórica de subsunção do trabalho ao capital, formal e real. Esse fenômeno, junto à tendência de crescimento do capital constante (trabalho morto) em relação ao capital variável (trabalho vivo) na composição orgânica do capital, gera concomitantemente aumento de produtividade, desemprego e queda na taxa de lucro, na medida em que diminui a presença atuante da única fonte de mais valor no processo produtivo, material ou simbólico: o capital variável, o trabalho vivo.
Essa tendência, porém, não é uma fatalidade de ordem mística ou cosmológica, como o apocalipse ou a explosão do sol, mas de um sistema sociohistórico que teve início, cresceu em meio a tantas crises, vive mais um momento de contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção vigentes, e há de ser superado por outro melhor. Ou não. Depende em parte de nós, que discutimos essas coisas.
O quadro apresentado traz desafios jurídicos, relacionados ao debate regulatório das plataformas e da própria Inteligência artificial, que tocam em temas sensíveis como a liberdade de expressão, que por sua vez confronta as noções de liberdade individual e coletiva, sobretudo diante das ondas crescentes de desinformação ou massificação da fraude.
Há desafios econômicos correlatos, que envolvem a desmonetização e eventual imputabilidade de agentes desinformadores em escala de risco a democracias e direitos difusos das minorias, diante da concentração de poder das plataformas, com seus exércitos de advogados e prepostos em congressos conservadores.
Há desafios narrativos, pois o que está em jogo é a própria verdade histórica, junto à credibilidade das instituições reconhecidas desde a modernidade como autoridades cognitivas: a imprensa, a ciência, o estado de direito, que obviamente não devem ser blindados da crítica, mas a crítica não é o mesmo que calúnia, difamação, sabotagem. É importante, portanto, enfrentar também o problema da verdade e da liberdade, sem perder de vista o conselho de Heller (2004) sobre não se confundir a necessária prudência na lida com a verdade, por falta de uma certeza absoluta, com uma rendição ao relativismo.
O enfrentamento desse conjunto de desafios requer a busca de sinergias das ações em curso, virtuosas, mas insulares, de acadêmicos, governos e ativistas; denúncia e pressão política por regulação das plataformas digitais que lucram com a desinformação em suas formas mais perniciosas: racismo, misoginia, LGBTQIA+fobia, negacionismo, revisionismo, tudo isso junto no feixe neofascista; promoção de competência crítica em informação e comunicação em larga escala; a constituição de soberanias digitais nacionais e populares, através do investimento em plataformas públicas.[ii]
*Marco Schneider é professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A dialética do gosto: informação, música e política (Circuito).
*William França é jornalista e doutorando em Ciência da Informação pelo Ibcit-UFRJ.
*Luiz Cláudio Latgé é jornalista e mestre em Mídia e Cotidiano pela UFF.
Versão ampliada de artigo publicado originalmente como capítulo de livro no Instituto de Filosofia de Cuba.
Referências
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BEZERRA, Arthur Coelho. Regime de informação e lutas de classes: reconstrução de um con-ceitoà luz da crítica da economia política. In: Ci. Inf. Rev., Maceió, v. 10, n. 1/3, p. 1-14, 2023. Disponível aqui.
BEZERRA, Arthur Coelho. Tecnologia e trabalho precarizado: crítica da economia política do capitalismo digital. In: O Social em Questão – Ano XXVII – nº 58 – Jan a Abr. /2024, p. 37-56. Disponível aqui.
BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Volume 1. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 2005.
BLOCH, Ernst. Commentary on Theses on Feuerbach. In: The Principle of Hope. Sem data. Disponível aqui.
CAPURRO, Rafael. Pseudangelia – Pseudangelos. On False Messages and Messengers in Ancient Greece. Contribution to the virtual Seminar with Prof. Maria Bottis (Professor of Information Ethics and Law) and colleagues at the Ionian University (Corfu, Greece), April 21, 2020. (pdf). Students questions and tentative answers (pdf). In: Informatio 25(1), 2020, pp. 106-131.http://www.capurro.de/pseudangelia_english.html.
HE, J. & DEGTYAREV, N. AI and atoms: How artificial intelligence is revolutionizing nuclear material. Bullet of the Atomic Scientists, 2023. Disponível aqui.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
HOPFIELD, J. J. Redes neurais e sistemas físicos com habilidades computacionais coletivas emergentes. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 79, n. 8, abril, 1982, p. 2554-2558. Disponíve aqui.
IBM. O que é Inteligência Artificial (IA)? Disponível aqui.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.
MARCUSE, Herbert. Reason and revolution. Hegel and the rise of social theory. London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1941.
MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. Rio de Janeiro: Paz e-Terra, 1978.
MARX, Karl. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Moraes, 1985. 169 p.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
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MARX, Karl. O Capital. Livro I, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Pp. 577- 929.
McLUHAN, Marshall. Os Meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969.
SCHNEIDER, Marco. A Era da Desinformação. Pós-verdade, fake-news e outras armadilhas. Rio de Janeiro: Garamond, 2022.
TURING, A. M. Computing Machinery and Intelligence. Mind, Volume LIX, Issue 236, October 1950, p. 433–460. Disponível em aqui.
Notas
[i] Há outros modelos de negócios de plataformas digitais, como Uber e Airbnb. Estamos aqui tratando dos modelos de empresas como Amazon, Google e Meta, que podem ser consideradas novas mídias.
[ii] Agradecemos à Faperj, ao CNPq e à Capes pelas bolsas de apoio à pesquisa.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
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