Por TARSO GENRO*
Fascistas e traidores da Carta de 1988 permanecem lado a lado, fortalecidos pelo medo e assombrados por um perigo sobre o qual nem todos são conscientes
Estado laico e religiões do dinheiro
Estamos começando a recuperação dos valores da democracia e da República ou estamos no limiar do acolhimento plebiscitário da sua traição? Já fui um otimista da primeira hipótese, hoje não mais. Não podemos deixar de lembrar neste momento de Jorge Luís Borges que dizia ser “o traidor um homem de lealdades sucessivas e opostas”. O fascista, todavia, é um fanático coerente. Fascistas e traidores da Carta de 1988 permanecem lado a lado, fortalecidos pelo medo e assombrados por um perigo sobre o qual nem todos são conscientes.
Para acabar, na prática, com a laicização do Estado prevista no artigo 5º, incisos VI, VII e VIII, e no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, o discurso fundamentalista religioso quer ser o discurso dominante na crítica ao Estado laico. Para isso precisa colocar em pauta sem alarde o fim da “liberdade de consciência” no Estado de Direito, já que esta só pode ser exercitada como consciência individual, nos limites determinados pela Constituição: se esta gera um direito público subjetivo que permite aos indivíduos sejam livres da opressão estatal sobre a consciência religiosa no Estado laico, o Estado não pode amparar ou representar uma religião dominante.
Se alguém puder “forçar” que a sua religião seja dominante no Estado, todas as pessoas podem fazer do Estado um “locus” especial de disputa, entre os fiéis de cada fé, e assim construírem um discurso totalitário: o de uma fé religiosa que suprime a liberdade e a legitimidade de outra fé religiosa. A confusão entre política e religião nunca foi tão grande como é hoje em nosso país. E esta “confusão”, no sentido da subsunção — de uma à outra — estimula a radicalização das disputas políticas irracionais, na crise do sistema liberal-democrático formal, posto que a subsunção da política à religião (ou vice-versa) tende a anular o discurso da razão democrática.
Se o Estado permitir esta subsunção ele permitirá a substituição do argumento pela fé, que pode, assim, dominar e destruir as categorias democráticas da política no Estado de direito, que é baseado em discursos minimamente racionais e argumentativos. As lições da história mostram que a religião é uma transcendência atemporal e que, ao contrário da política, não tem seu conteúdo centrado num presente histórico verificável.
Sendo laico, o Estado regula ambos os sistemas (o da política e da religião) mas o faz para reconhecer o “direito à religião” do âmbito da sua regulação, para deixá-la livre da tutela estatal e livre para não obedecer a fé dos governantes, que eventualmente pretendam determinar, aos religiosos, “deveres” de fé em relação ao Estado. Para coexistirem estas duas possibilidades de “práxis” na sociedade — a práxis política e a religiosa — o espaço social do Estado moderno deve ser dialógico, mas também deve ter poderes para, através de normas legítimas, não permitir a pressão da política contra a religião, e desta sobre a natureza civil da política.
As religiões do dinheiro buscam a subjugação da vida privada das pessoas, não para orientá-las a uma ideia transcendente, pois produzem ensinamentos que buscam principalmente fragilizá-las para extorquir, delas, parte das suas pequenas economias. Ao invés de lhes aproximarem das mensagens de generosidade e solidariedade contidas na maioria das religiões, inclusive nas evangélicas, as religiões do dinheiro aniquilam o espaço democrático na política.
Aqui cabe uma especial atenção para a utilização do sentimento religioso como parte de uma prática social que tem uma destinação nitidamente mercantil, cujo sentido se amplia para o “ser” político-partidário. Ao proibir que o aparato de poder de Estado e os seus recursos sejam monopolizados por uma religião, o Estado se torna neutro, em relação às religiões, mas, ao mesmo tempo, também ativo para defender a sua laicidade.
Para avaliar se as práticas religiosas estão sendo práticas puramente políticas, no sentido de partidarização eleitoral da expressão, é sempre necessário respeitar critérios objetivos, que não passam pelo exame da doutrina ou da fé, que quaisquer religiões propagam, mas pela verificação dos seus vínculos nitidamente comerciais, alguns destes ligados inclusive ao exercício ilegal da medicina.
Atuando desta forma, no sistema de classes do capitalismo, as religiões que se comportam como instituições mercantis segregam para uma “segunda classe”, as demais religiões que aceitam a diversidade, a livre vida civil dos humanos, bem como desrespeitam as diferenças culturais de cada comunidade do gênero humano.
Não é gratuito que a visão do “caminho único”, na economia, seja apropriada como “coisa sua” pelas religiões do dinheiro, porque este caminho também é baseado numa dogmática fundamentalista intolerante, que defende a supressão do Estado como organizador da vida econômica e das relações entre o capital e o trabalho. Cabe lembrar também que os partidos de extrema direita tendentes ao fascismo, sejam pródigos em se apresentarem em nome de Deus, da pátria e da família, para escorar a sua identidade totalitária, que busca fundar sua autoridade no domínio dos corpos e das ideias.
Com o domínio do fundamentalismo religioso mercantil, transformado em “fé”, quaisquer eleições podem se tornar uma guerra, não porque a política necessariamente separe as pessoas em bandos armados, mas porque nas disputas imperam o irracional, como guerra provocada especialmente pelo fundamentalismo. Este fundamentalismo é o materialismo exercitado pela fé, mantida pela relação com o dinheiro. O discurso fundamentalista neoliberal encontra, por sua vez, um caminho comum com as religiões, para acumulação privada irregular, transformando os pastores da fé em “pastores” da acumulação de capital.
A vitória das opressões de classe, que vem por dentro da dominação do rentismo ultraliberal e das guerras mundiais “parciais”, é radicalmente avessa à razão, à liberdade de espírito e às liberdades políticas da democracia liberal representativa. Não há dissimulação que possa evitar que o Estado aja — dentro da democracia política “contratual” hoje em crise — contra a naturalização do fascismo e a sua passagem pelas religiões do dinheiro, para o culto do mercado, como consenso, e a distorção da fé, como arma da hegemonia.
Os mercadores da fé contra o evangelho de Cristo
Revirando arquivos de mais de meio século de magistério universitário, deparei-me com o “Anuário de 2004” da Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), onde lecionei por cinco anos. Revi, com emoção, as imagens e os textos de minha Exposição Ecológica e li o artigo “Música, Religião, pouca instituição”, do professor Oneide Bobsin, exímio pesquisador do tema religião e política. Li depois o artigo de Joachim H. Fischer intitulado “Luteranos, reformados, unidos, evangélicos: Quem são eles?”.
Explicitando o que são as Igrejas Evangélicas, ele comenta: Evangélicas “são igrejas de orientação evangelical” (…). O autor acrescenta a informação que mais diretamente se relaciona com o tema deste artigo: “A “bancada dos evangélicos” no Congresso Nacional é formada por membros de tais igrejas” que aqui não são citadas nominalmente porque elas não tem práticas idênticas, em cada região do país. Tal presença é do conhecimento de toda a sociedade brasileira, sendo amplamente documentada na imprensa, de que há, no Congresso brasileiro, uma “Frente Evangélica”, disputada e distribuída em vários partidos da direita.
Este artigo se propõe a refletir sobre o que significa esta presença, em termos do Evangelho de Cristo. O teólogo Oneide Bobsin, citado acima, numa entrevista declarou: “A participação dos evangélicos na política desprivatiza as igrejas”. Como exemplo de tal desprivatização podemos citar um relato jornalístico de como foi a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro. No jornal Zero Hora de 3 e 4 de novembro de 2018 (p. 10) está um destaque: “Assembleia de Deus Vitória em Cristo”.
Ao lado de Jair Bolsonaro, com a mão direita pateticamente estendida, o pastor Silas Malafaia indica os dizeres: “com apoio de evangélicos”, como os da “Assembleia de Deus”: Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia (foto). Jair Bolsonaro, então, chega ao Palácio do Planalto amparado em forte discurso religioso que o coloca diante da “missão de Deus” no comando a nação. Na quase meia página abaixo, segue um artigo de Itamar Melo, com o título em maiúsculo, em letras mais que garrafais: “O evangelho sobe a rampa”. No artigo, além de Silas Malafaia, são citados os pastores: Valdemar Figueiredo e Magno Malta, que abriu a sessão de posse de Bolsonaro com a oração: “A tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus. E o Senhor ungiu Jair Bolsonaro”.
Antes de iniciar o discurso, Jair Bolsonaro disse ao repórter da TV: “Com toda a certeza, esta é a missão de Deus”. Dois dias depois da posse, realizou sua primeira aparição pública, participando de um culto evangélico presidido pelo pastor Silas Malafaia. No artigo do Zero Hora lemos: “Na ocasião, Jair Bolsonaro referiu-se a si próprio como “escolhido do Senhor”. No meio de seu artigo, Itamar Melo destaca, com um subtítulo: “bancada da bíblia avança no Congresso”. No Congresso Nacional, portanto formou-se uma “Frente Evangélica”, disputada e distribuída em vários partidos da direita.
Quanto à questão teológico-bíblica cabe esclarecer que toda a pregação de Jesus, desde o famoso Sermão da Montanha (Mt., 5-7; Lc., 20,45), é o anúncio ou a proclamação do Reino de Deus, ou do Reino dos Céus. Na sua incomparável pedagogia, Jesus foi explicando pacientemente, aos poucos, aquela que era a mensagem central. A grande expectativa do Reino, era a promessa que perpassava toda a história do Povo de Deus, e por isso todas as mensagens dos profetas. A pregação de Jesus era muito clara, inconfundível: Reino de Deus, Reino dos Céus. Nada de terreno.
Na entrevista do teólogo Bobsin me impressionou uma frase: “Afinal, Jesus renegou a sua religião, a fim de ser fiel a Deus”. Ele sabia muito bem que as confusões eram muitas. Mesmo tendo escolhido, já, os seus discípulos mais próximos, que seriam depois os seus doze apóstolos, a confusão foi evidente, quando a mãe de Tiago e de João pediu a Jesus que reservasse, desde logo, para seus filhos, os primeiros lugares: um à direita e o outro a esquerda. Os outros ficaram com ciúme. A confusão foi durando. Mesmo quando Jesus foi preso, todos sumiram. Pedro o havia negado três vezes. Judas o havia entregado. E os outros, onde estavam? Só João o acompanhou até o Calvário. Talvez sentindo que alguém precisava acompanhar a mãe de Jesus, em sua dor profunda, diante da morte certa de seu filho Jesus crucificado.
Toda a trajetória de Jesus, desde o início, até sua morte no Calvário, foi acompanhada pela mesma tentação, que os profetas denunciavam. Tentação à qual se dobraram, até o fim, os apóstolos que ele escolhera. E toda a grande multidão que viera para a festa da Páscoa, sabendo que Jesus vinha a Jerusalém, tomou ramos de palmeira e saiu ao seu encontro clamando: “Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor e rei de Israel”.
A tentação de Jesus, após os 40 dias de jejum no deserto, relatada nos Evangelhos, foi uma alegoria, através da qual Ele assumia a tentação do povo de Israel, relatada já no Deuteronômio, e denunciada pelos profetas, através de toda a história, desde que Deus libertara o seu povo da escravidão do Egito. Como Israel, também Jesus foi acompanhado pela mesma tentação, tanto dos discípulos, quanto do povo que o seguia, achando que finalmente o Messias prometido iria instaurar o Reino de Israel. A frase de Oneide Bobsin, citada anteriormente é forte e desafiadora: “Afinal, Jesus renegou sua religião a fim de ser fiel a Deus”. A religião oficial ele também “renegou” quando presenciou o espetáculo escandaloso em que fora transformado o templo.
Para todos os seus seguidores, incluindo os que escolhera como seus futuros apóstolos, segundo a religião oficial era a crença de que o messias prometido seria o Rei que libertaria finalmente o povo da dominação de outros impérios. Renegar a religião oficial era também renegar a tríplice tentação do deserto, tentação que o acompanhou até o julgamento de Pilatos. No mesmo dia que a multidão o aclamava “Rei de Israel”. Ele renegou com toda a autoridade a religião oficial, expulsando os vendedores do templo. Os quatro evangelistas relatam a corajosa e solene expulsão, justificada com o brado, momento radical em que Ele separa a religião à oração e a fé, de poder terreno: “A minha casa é casa de oração. Vós porém fizestes dela um covil de ladrões” (Mt. 21, 13).
Para entendermos objetivamente certos detalhes dos Evangelhos, é conveniente ou até necessário conhecermos determinados fatos históricos. Neste sentido, dei-me conta que a Wikipédia traz várias palestras ou entrevistas de caráter histórico. Algumas resgatando minuciosamente a história de Pôncio Pilatos, seu cargo como prefeito da Judéia, uma das muitas províncias do Império Romano. Um detalhe básico é sua responsabilidade na condenação de Jesus. Tanto a Judéia, quanto a Galileia, governada por Herodes Antipas, a Samaria, e outras províncias, eram espaços de frequentes e violentas revoltas de povos que tentavam libertar-se da cruel dominação romana.
Pôncio Pilatos tivera, durante os dez anos de seu governo, o desafio de enfrentar, em geral de forma cruel, diferentes revoltas dos judeus. Diante de um personagem que lhe é apresentado, pelas lideranças judaicas, para que seja julgado e condenado, Pilatos, ao interrogar Jesus, estava preocupado se ele seria mais um dos líderes revolucionários que lhe davam dor de cabeça. Esta preocupação de Pilatos explica a sua pergunta: “És tu o Rei dos Judeus?” (Mt., 27,11). Jesus responde: “Tu o dizes”. Diante das acusações repetidas, e do silêncio de Jesus, “… o governador ficou muito impressionado” (Mt., 27, 14). Ele estava, de fato, convencido de que não estava, diante deles, nenhum dos zelotes ou revolucionários que tivera de reprimir, pra garantir seu cargo.
O silêncio de Jesus é testemunhado tanto por Mateus, quanto por Marcos e Lucas. Só João escreverá que, diante da insistência de Pilatos, Jesus garante: “Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas meu reino não é daqui” (Jo, 18, 36). Assim mesmo Pilatos não estava tranquilo. A multidão gritava: “Se tu não o condenas não és amigo de César”. Sua preocupação não era se a condenação de Jesus era justa, mas de se livrar de qualquer ameaça que chegasse aos ouvidos de César. E por isso, depois de lavar covardemente as mãos, Pilatos o entregou à fúria cruel da multidão.
A tabuleta que Pilatos mandou fixar, ironicamente, no alto da cruz: “Jesus o Rei dos Judeus”, provocou a reclamação geral de que ele tirasse. A mesma multidão que o aclamara, na entrada de Jerusalém, gritava, diante de Pilatos: “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Durante três anos o haviam seguido, ouvindo com entusiasmo a sua pregação, achando que iria livrá-los da dominação romana, instaurando, enfim o Reino que Israel, aguardava havia 2000 anos.
Para os apóstolos, era o fim. Somente com a vinda do Espírito Santo, na Festa de Pentecostes, eles entenderam o verdadeiro sentido do seu anúncio, desde o Sermão da Montanha e através dos três anos de sua pregação. E a multidão que viera de vários países, para a festa, ouvindo-os falar em suas próprias línguas, entendeu qual o Reino que Jesus anunciara. E a Igreja do Reino de Deus, do Reino dos Céus se constitui naquele dia.
De acordo com o artigo de Itamar Melo no jornal Zero Hora, citado anteriormente: “A Bancada da Bíblia, avança no Congresso”, e com as citações quase teatrais da posse do Jair Bolsonaro, denuncia com total clareza que a afirmação de Cristo: “Meu Reino não é deste mundo”, não vale para as Igrejas evangélicas, pentecostais ou neopentecostais”, pois a estratégia destas é a luta pelo poder político, de acordo com a “teologia da prosperidade”, que poderá, com o tempo, transformar o Brasil, república democrática e laica, num país teocrático e perpassado pelo sectarismo, como é o Irã nos dia de hoje.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
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