Remover as raízes do fascismo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ WERNECK VIANNA*

Trata-se de devolver o país aos rumos de que fomos desviados por um governo criminal

A reconquista da democracia, processo aberto com a vitória da ampla frente política em torno da candidatura Lula-Alkmin, afirma-se a cada dia em que pese a sedição de setores da categoria dos caminhoneiros que ocuparam as estradas em rebelião ao resultado das urnas, vociferando em favor de uma intervenção militar. A essa altura, já se faz patente o caráter metodicamente concertado desse movimento sedicioso, que as hostes bolsonaristas tinham como sua bala de prata a fim de promover o tumulto e o caos com que justificariam o golpe nas instituições que urdiam.

Por falta de apoio político e sustentação militar, a conspiração resultou em mais uma tentativa frustrada no histórico golpista de Jair Bolsonaro, obrigado, mais uma vez, a desfazer a sedição que inspirou, solicitando aos caminhoneiros de sua grei o abandono das estradas e o retorno às suas rotinas, vários deles ao alcance dos rigores da lei. A derrota dessa descabelada incursão antidemocrática tem o condão de alertar para os riscos que a nossa democracia terá pela frente em sua imposição – as sementes perversas do autoritarismo adubadas em quatro anos pela pregação fascitizante encontraram terreno para frutificarem, como se viu no processo eleitoral e agora nessa rebelião.

O horizonte que se revela para o governo Lula-Alkmin, diante dessa cultura antidemocrática que germinou entre nós, reclama por ações ainda mais inventivas e audaciosas do que as mobilizadas na vitoriosa disputa eleitoral. Nesse objetivo, o raio de ação da frente política a dar sustentação ao governo deve sondar, sem qualquer limitação, todas as possibilidades de expandir seu âmbito no sentido de incorporar todo aquele que recuse o fascismo como ideologia política. Nesse sentido, o agrupamento político conhecido como o Centrão e demais forças representativas do conservadorismo brasileiro, inclusive as que na disputa eleitoral se alinharam à candidatura Jair Bolsonaro, devem ser objeto de interpelações em pautas específicas por parte do governo democrático.

O fascismo conta com raízes históricas em nosso país, ora presente em partidos e movimentos sociais como nos anos 1930 com o integralismo que atraiu amplos setores das camadas médias, intelectuais e militares, ora como ideologia encapuzada do Estado, tal como na constituição de 1937 que baniu os partidos políticos e jurou de morte os ideais liberais subscrevendo os argumentos de Carl Schmitt, ideólogo do nazismo de Hitler, inspiração do então ministro da Justiça Francisco Campos, autor daquele famigerado texto.

Essa constituição liberticida foi revogada com a deposição de Vargas, porém muitas das suas disposições ganharam sobrevida na Carta de 1946, em particular sua legislação sindical que não só crimilizava as greves como punha sob tutela do Estado a vida associativa dos trabalhadores, em franca importação da Carta del Lavoro do fascismo italiano. A constituição democrática de 1988, embora tenha expurgado disposições autoritárias dessa legislação, manteve vínculos que ainda preservam os sindicatos na órbita do Estado, comprometendo sua plena autonomia.

Sobretudo, as raízes mais fundas do nosso autoritarismo derivam do processo de modernização que aqui teve curso a partir de 1930 operada, desde Getúlio Vargas, no sentido de compatibilizar as velhas elites agrárias com as emergentes originárias da industrialização. Exemplar gritante disso o fato de se manter os trabalhadores do mundo agrário à margem do sistema de proteção criado pela legislação trabalhista. Tal como na Itália e na Alemanha, que passaram por regimes políticos fascistas depois de processos de modernização conservadora em meados do século XIX, os diferentes surtos brasileiros de modernização, como nos anos 1930 e nos anos 1960, importaram no fortalecimento dos nexos entre as elites empresariais e as do empresariado industrial, de que é fruto o moderno agronegócio. A modernização impediu nossa passagem ao moderno.

No caso brasileiro, tal processo de conservação do poder das elites agrárias se manifestou igualmente no processo do abolicionismo, em que pese a pregação de suas principais lideranças, como André Rebouças e Joaquim Nabuco, em favor de uma distribuição de terras aos emancipados da escravidão. A abolição passou ao largo da questão fundiária com o que se frustrou o primeiro movimento de formação de uma opinião pública efetivamente nacional.

Remover raízes tão fundas leva tempo e exige coragem, sabedoria e prudência, virtudes presentes nos articuladores, Lula à frente, que souberam nos levar à vitória sobre as hostes fascistas na sucessão presidencial. O mesmo caminho deve guiar o nascente governo democrático, pautando cada passo no sentido de devolver ao país os rumos de que fomos desviados em busca do reencontro com os ideais civilizatórios de que um governo criminal tentou nos afastar.

*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Dênis de Moraes Afrânio Catani Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Annateresa Fabris Ricardo Antunes João Feres Júnior João Sette Whitaker Ferreira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Gabriel Cohn Paulo Fernandes Silveira Julian Rodrigues Benicio Viero Schmidt Luiz Roberto Alves Paulo Sérgio Pinheiro Manchetômetro Bernardo Ricupero Luis Felipe Miguel Marcus Ianoni André Márcio Neves Soares Érico Andrade Jean Pierre Chauvin Luciano Nascimento Daniel Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Rodrigo de Faria Flávio Aguiar Anselm Jappe José Dirceu Salem Nasser Antônio Sales Rios Neto Lincoln Secco José Machado Moita Neto Heraldo Campos Rafael R. Ioris Leonardo Avritzer Samuel Kilsztajn Luiz Bernardo Pericás Daniel Afonso da Silva Andrew Korybko Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eliziário Andrade Boaventura de Sousa Santos Marilena Chauí Tarso Genro Mariarosaria Fabris Henry Burnett Luiz Carlos Bresser-Pereira Remy José Fontana Rubens Pinto Lyra Alexandre Aragão de Albuquerque Claudio Katz Valerio Arcary Fábio Konder Comparato Priscila Figueiredo João Lanari Bo Jorge Branco Celso Favaretto Leonardo Sacramento Slavoj Žižek Francisco Pereira de Farias Alysson Leandro Mascaro Luiz Werneck Vianna Alexandre de Lima Castro Tranjan Kátia Gerab Baggio Daniel Brazil Renato Dagnino Gilberto Maringoni Berenice Bento Antonino Infranca Walnice Nogueira Galvão Marcelo Módolo Paulo Nogueira Batista Jr Henri Acselrad Paulo Capel Narvai José Geraldo Couto José Luís Fiori Milton Pinheiro Osvaldo Coggiola Ronald León Núñez André Singer Bento Prado Jr. Ari Marcelo Solon Valerio Arcary Tadeu Valadares João Carlos Loebens Jean Marc Von Der Weid Marjorie C. Marona Lorenzo Vitral Liszt Vieira Vanderlei Tenório João Carlos Salles Tales Ab'Sáber Mário Maestri Luiz Eduardo Soares Leonardo Boff Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Airton Paschoa Eleonora Albano Vladimir Safatle Armando Boito Francisco de Oliveira Barros Júnior Celso Frederico Carlos Tautz Andrés del Río Vinício Carrilho Martinez Antonio Martins Luís Fernando Vitagliano Eugênio Trivinho Ronaldo Tadeu de Souza Francisco Fernandes Ladeira Eleutério F. S. Prado Matheus Silveira de Souza João Adolfo Hansen José Costa Júnior Flávio R. Kothe José Micaelson Lacerda Morais Gilberto Lopes Carla Teixeira Michel Goulart da Silva Sandra Bitencourt Lucas Fiaschetti Estevez Ronald Rocha Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Marques Chico Alencar Fernão Pessoa Ramos João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Fabbrini Jorge Luiz Souto Maior Bruno Machado Denilson Cordeiro José Raimundo Trindade Marcelo Guimarães Lima Michael Roberts Marcos Aurélio da Silva Fernando Nogueira da Costa Elias Jabbour Juarez Guimarães Marilia Pacheco Fiorillo Leda Maria Paulani Ricardo Musse Thomas Piketty Eugênio Bucci Chico Whitaker Otaviano Helene Atilio A. Boron Igor Felippe Santos Marcos Silva Michael Löwy Ladislau Dowbor Eduardo Borges Gerson Almeida Caio Bugiato Maria Rita Kehl Ricardo Abramovay Manuel Domingos Neto Sergio Amadeu da Silveira Luiz Renato Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES