Repensar Marx e os marxismos

Ivor Abrahams, Caminhos II, 1975
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Por MAURÍCIO VIEIRA MARTINS*

Comentário sobre o livro recém-editado de Marcello Musto

O escritor japonês Kohei Saito vendeu cerca de meio milhão de cópias em seu país com o livro O capital no antropoceno, que analisa a partir de uma perspectiva marxista as causas que promovem a aguda deterioração ambiental do planeta. Já o periódico alemão conservador Der Spiegel, na sua última edição de 2022, traz na capa um Marx de visual contemporâneo (com mangas curtas e braços tatuados…) e estampa a pergunta: “Afinal, Marx estava certo?”. Estes são apenas alguns exemplos de uma retomada do interesse pela obra de Marx que vem ocorrendo no século XXI, a partir das evidências muito contundentes da gravidade das contradições da economia capitalista.

Também no Brasil a produção de livros marxistas encontra um espaço próprio, ao qual vem se somar a recente tradução para o português do livro Repensar Marx e o Marxismo: guia para novas leituras, de autoria do pesquisador italiano Marcello Musto, professor da York University no Canadá. Dois livros de Musto já haviam sido publicados no Brasil: Trabalhadores, uni-vos!: Antologia política da I Internacional, publicado também pela Boitempo e O velho Marx: Uma biografia de seus últimos anos (uma parceria da Boitempo com a Fundação Perseu Abramo).

O conjunto de temas abordado por Repensar Marx e o marxismo é amplo: dividido em dez capítulos, o livro abrange desde ensaios que se ocupam de alguns momentos determinados da biografia e do pensamento de Marx, como seus anos de juventude (capítulos 1 e 2), passando pelos estudos de economia política e jornalismo na década de 50 para o New-York Tribune (capítulo 4), chegando até o período de redação de O capital (capítulo 7).

Há também dois capítulos dedicados à elaboração e posterior repercussão dos Grundrisse e de sua Introdução, famosos rascunhos preparatórios de O capital (capítulos 5 e 6). Além disso, o leitor encontrará um debate sobre a pertinência da oposição entre o chamado jovem Marx e o Marx da maturidade (capítulo 3), debate que encontra desdobramentos na investigação sobre o conceito de alienação (capítulo 8), desde sua apropriação por Marx até as repercussões na sociologia e na filosofia contemporâneas.

Já o capítulo 9, “Evitar o capitalismo” discute a primeira recepção de Marx na Rússia, ainda durante sua vida. O livro se encerra no capítulo 10 com uma apresentação das novas descobertas da MEGA² –  Marx-Engels-Gesamtausgabe -, projeto editorial ainda em curso, responsável pela publicação da obra integral de Marx e Engels.

Dada a amplitude da investigação realizada por Marcello Musto, seria impossível comentar no presente texto cada capítulo do livro. Aqui, a opção será destacar alguns aspectos que me parecem particularmente fecundos,[i] neste livro que consegue atingir tanto o leitor que tenha um conhecimento apenas inicial de Marx, como aquele que já dispõe de um trajeto na obra do pensador.

No meu entender, o primeiro aspecto a ser destacado diz respeito a uma ampliação da visão sobre qual foi o campo temático pesquisado por Marx ao longo de sua vida. Com efeito, os novos volumes publicados pelo projeto MEGA² nos apresentam um autor que inclui em seus estudos não somente a crítica da economia política e o conflito entre as classes sociais (temas classicamente associados ao nome do pensador alemão), como também outras preocupações que ingressaram com força na agenda teórica e política de homens e mulheres dos séculos XX e XXI.

Dentre eles, merece destaque o interesse de Marx pela devastação ambiental levada a cabo pela produção capitalista. Nas palavras de Musto, “Marx se interessou cada vez mais pelo que hoje chamamos de ‘ecologia’, em particular pela erosão do solo e pelo desmatamento” (p. 310).[ii] Diferentemente de um elogio unilateral das forças produtivas – que supõe ingenuamente que o simples desenvolvimento tecnológico associado ao progresso da ciência seria capaz de produzir uma emancipação humana – encontramos em Marx uma preocupação com a devastação da natureza levada adiante pela racionalidade mercantil capitalista.

Leitor atento das descobertas das ciências naturais de sua época – como atesta seu interesse pela obra, dentre outros, do cientista e bioquímico Justus von Liebig –, ele escreve em 1868: “o cultivo que, quando progride de maneira primitiva, não conscientemente controlada (obviamente, isso não se consegue sendo burguês), deixa desertos atrás de si” (apud p. 311). Ao invés do culto unilateral do produtivismo, encontramos em Marx a radiografia da destruição ambiental que a lógica do lucro traz em si.

O acesso a uma gama mais ampla de textos de Marx nos mostra também um pensador muito crítico à dominação colonial levada a cabo pela Europa ao redor do mundo. De modo diverso de um Edward Said que em seu célebre livro Orientalismo afirmava que Marx, excessivamente preso à ótica de sua época, não teria conseguido enxergar a alteridade de outras culturas, Musto escreve que “Entre os interesses de Marx, um lugar nada secundário foi ocupado pelo estudo das sociedades não europeias e do papel destrutivo do colonialismo nas periferias do mundo” (p. 18).

Notemos que tal alerta é oportuno tendo em vista que também alguns dos chamados estudos decoloniais mais recentes categorizam Marx como um pensador eurocêntrico, a ser sumariamente despachado para uma espécie de museu dos equívocos cometidos no passado. Todavia, quando se leva em conta principalmente os escritos tardios de Marx sobre, por exemplo, a violenta predação exercida pela Inglaterra sobre a Índia, vemos uma fisionomia bem diferente do pensador, que veicula uma crítica contundente ao próprio modo de produção vigente em sua Europa nativa.

Nos Cadernos Etnológicos marxianos podemos ler: “a supressão da propriedade comum do solo não passou de um ato de vandalismo inglês, que não impulsionou o povo indiano para frente, mas o empurrou para trás” (apud p. 266). Longe de um elogio da cultura europeia, Marx radiografa, no calor da hora, a violência estrutural e constitutiva de seu modo de produção capitalista.

Dito isso, é preciso reconhecer que descoberta de novos rascunhos, manuscritos preparatórios e cartas de Marx e Engels – missivistas contumazes – complexifica de modo considerável o trabalho dos pesquisadores que se dedicam com seriedade à obra dos autores. Basta lembrar que a MEGA² prevê a publicação de 114 volumes (cada um com dois tomos), colocando à disposição do público um material até então inédito. Esta é aliás uma dificuldade adicional para os leitores de Marx e Engels, que se veem diante de uma obra monumental, que simplesmente não cabe nos estreitos escaninhos da atual divisão do trabalho acadêmica, donde a observação: “a obra de Marx é uma gigantesca cultura de teoria crítica, que transita entre inúmeras disciplinas do conhecimento humano, cuja síntese representa uma tarefa árdua para todo leitor rigoroso” (p. 11).

Tal tarefa que se apresenta aos pesquisadores marxistas por vezes faz pensar, acrescento, na saborosa referência do escritor argentino Jorge Luis Borges ao procedimento do Colégio de Cartógrafos de um Império fictício. Desconhecendo o princípio mais produtivo de uma cartografia – o de que o mapa deve ter uma escala significativamente diferente do objeto a ser mapeado – os cartógrafos produziram um gigantesco “Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto a ponto com ele”.[iii]

Mas Marcello Musto está bem longe deste perigo: ele consegue ter uma notável capacidade de síntese que lhe permite transitar por um número muito grande de temas biográficos e conceituais dentro da obra de Marx e de alguns de seus sucessores, mantendo sempre uma bússola que assegura o tônus da argumentação ao longo do livro.

Igualmente merecedor de atenção em Repensar Marx e os marxismos vem a ser a refutação da ideia, amplamente difundida entre os críticos de Marx, de um suposto dogmatismo do autor, como alguém que veicularia certezas definitivas sobre os temas que pesquisa. Também aqui a leitura da correspondência de Marx e dos materiais preparatórios de seus livros nos mostra um pensador que, quando confrontado com limites de seu trabalho, se retifica de modo consistente.

A este respeito, as sucessivas modificações que Marx imprimiu ao capítulo 1 de O capital são exemplares: ele se convence que a forma da exposição de fato não estava satisfatória. Em carta a Kugelmann de outubro de 1866, escreve abertamente: “mesmo as pessoas inteligentes não entenderam adequadamente a questão, em outras palavras, deve ter havido defeitos na primeira apresentação” (p. 204)

Mais do que isso, o próprio caráter processual do objeto de seus estudos – o modo de produção capitalista – lhe impunha a atualização permanente de suas teses. Basta lembrar o interesse com que Marx se dedica a estudar os mercados financeiros nos anos finais de sua vida, ciente das transformações que eles traziam para a acumulação capitalista: “Desde o outono de 1868 até a primavera de 1869, determinado a dar conta dos últimos desenvolvimentos do capitalismo, Marx compilou copiosos excertos de textos sobre os mercados financeiros e monetários…” (p. 209). Assim, ao invés de “vestir” a realidade com categorias previamente construídas (e aqui, a meu ver, o contraste com o tipo ideal de Weber é quase palpável), Marx se dedica a construir uma malha categorial que espelhe seu caráter processual e histórico.

Considerações adicionais sobre a disponibilidade de Marx em alterar aqueles tópicos de seu pensamento quando confrontado com questionamentos pertinentes podem ser encontradas no capítulo 9, intitulado “Evitar o capitalismo”. Nele, Marcello Musto detalha os esforços de Marx para combater uma imagem que começou a se formar já durante a sua vida, que afirmava que ele havia apresentado uma teoria universal do desenvolvimento das sociedades. O cotejamento com Nikolai Mikhailovsky e Vera Ivanovna Zasulitch sobre os possíveis desdobramentos da obshchina – comunidade rural presente numa imensa extensão territorial russa – evidencia um autor cauteloso ao lidar com questões que envolviam uma avaliação de sua própria teoria.

Os longos rascunhos que precederam, por exemplo, a resposta às indagações de Zasulich sobre as transformações da obshchina mostram Marx explorando as diferentes variáveis a serem levadas em conta – sempre ligadas ao contexto histórico de cada formação social -, ao invés de pretender fornecer uma resposta pronta à sua interlocutora. Nas palavras de Marcello Musto: “Por quase três semanas, Marx permaneceu imerso em suas cartas, ciente de que deveria fornecer uma resposta a um questionamento teórico de grande envergadura” (p. 264). Esta disponibilidade para uma atualização da teoria será reencontrada também na revisão da edição francesa de O capital, que envolve acréscimos e modificações em relação à edição alemã, a ponto de Marx atribuir à primeira “um valor científico independente do original” (apud p. 210).

Repensar Marx e os marxismos aborda também o debate em torno da periodização da obra do pensador. Conforme é sabido, ao longo do século XX ganhou prestígio uma partição da obra que opunha o jovem Marx – que afirmava uma peculiar forma de humanismo – ao velho Marx, crítico da economia política burguesa. Por esta via, a bibliografia do século criou uma espécie de personagem que atenderia pelo nome de jovem Marx e que encontraria sua produção mais emblemática nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Levando isso em conta, em mais de um capítulo de Repensar Marx e os marxismos são feitas referências a estes Manuscritos, apresentando seus méritos, mas também seus limites reais.

O texto de 1844 enfrenta de forma original questões que não eram tradicionalmente associadas ao marxismo, como aquelas referentes tanto à alienação objetiva como subjetiva dos trabalhadores, com toda a objetificação que o fenômeno acarreta nas relações humanas. A perspectiva emancipatória subjacente aos Manuscritos – publicados na íntegra apenas em 1932 – opunha-se à interpretação predominante de uma ortodoxia marxista, daí ser preciso enfatizar o “efeito disruptivo gerado por um texto inédito tão diferente dos cânones do marxismo dominante” (p. 94).

Levando em conta a existência de aquisições substantivas ocorridas na juventude de Marx, Marcello Musto afirma que elas não autorizam uma partição tão excludente da obra entre o jovem Marx e o Marx da maturidade. Aqui, algumas palavras duras são dirigidas a Louis Althusser, o autor que mais difundiu a noção de uma ruptura epistemológica que separaria radicalmente diferentes fases da obra de Marx. Ocorre que a pesquisa textual e filológica posterior não corrobora tal hipótese, sustentada por Louis Althusser mesmo em seus Elementos de autocrítica. Lembrando que a categoria da alienação (Entfremdung) percorre a quase totalidade da obra de Marx, Marcello Musto aponta para a impossibilidade de que o suposto corte epistemológico “tivesse acontecido no desenrolar de algumas poucas semanas e pudesse ter sido concebido como algo tão rígido” (p. 84).

Contudo, feito o registro da importância de algumas categorias desenvolvidas nos escritos de juventude de Marx, Marcello Musto não esconde suas próprias preferências: afirma que os longos anos de estudo de economia política e outras disciplinas levaram-no a alcançar patamares de investigação compreensivelmente mais elevados do que aqueles de sua juventude. Por esta razão, não é possível endossar a hipótese que seria como que a inversa da ruptura epistemológica: aquela que supõe existir uma identidade plena no interior do pensamento marxiano, “como se a obra de Marx fosse um único escrito, indistinto e atemporal” (p. 96).

Caso adotássemos esta via, ficaria interditada a apreensão do imenso esforço teórico realizado por Marx, esforço que lhe apresentou questões novas – referentes à estruturação econômica e política do modo de produção capitalista – para as quais simplesmente não dispunha de respostas em sua juventude.

Já no que diz respeito ao capítulo 8, “A concepção de alienação segundo Marx e nos marxismos do século XX”, parece-me que uma de suas implicações mais relevantes é colocar em xeque a perspectiva que supõe existir uma progressiva evolução das ciências sociais como um todo ao longo do tempo. Amplamente difundida em vários ambientes acadêmicos, tal perspectiva afirma que a ciência temporalmente mais recente é necessariamente melhor do que a anterior (daí para se erradicar dos currículos universitários os autores do século XIX será apenas um passo…). Mas, ora, durante a leitura da apropriação que, por exemplo, a sociologia estadunidense do século XX fez da categoria alienação, é impossível não pensar que tal sociologia ficou aquém da formulação original de Marx.

Pois o que era nos textos deste último uma abordagem que apontava para um fenômeno social com uma fisionomia bem definida (a alienação enraizada no modo de produção da vida de uma sociedade capitalista), acaba adquirindo os contornos de uma condição humana universal. Na pena de autores como Melvin Seeman ou Robert Blauner (escrevendo nas décadas de 50 e 60 do século XX) ocorre uma “espécie de hiperpsicologização da análise do conceito – que foi assumida na sociologia, bem como na psicologia, não mais como uma questão social, mas como uma patologia individual” (p. 231).

Se voltarmos agora a atenção para o debate político em torno do legado de Marx, o capítulo 10 de Repensar Marx e os marxismos traz vários elementos que atestam o visível contraste entre o projeto político e societário do autor e as experiências socialistas do século XX. Não seria este o momento para analisar um tema da magnitude das distorções do pensamento de Marx ocorridas nos manuais produzidos pela União Soviética, e mais ainda no cotidiano daquela sociedade. De todo modo, Marcello Musto chama a atenção para a distância existente entre este último e o projeto societário encontrável na obra de Marx.

Basta lembrar que: “Proponente da ideia de que a condição fundamental para o amadurecimento das habilidades humanas era a redução da jornada de trabalho, ele [Marx] foi assimilado ao credo produtivista do stakhanovismo. Convicto defensor da abolição do Estado, viu-se identificado como seu baluarte” (pp. 289-290). Alerta oportuno a ser feito, principalmente tendo em vista que o pensamento conservador continua a atribuir a Marx (falecido em 1883, não custa lembrar…) a configuração assumida pela União Soviética mais de décadas após o seu falecimento. Cabe a nós, homens e mulheres do século XXI, relançar a originalidade de um projeto que esteja à altura do sentido emancipatório de seus fundadores.

Por fim, uma menção especial ao capítulo 7, intitulado “A escrita de O capital: a crítica inacabada”. Alternando informações biográficas com decisões conceituais de Marx, nele encontramos nosso autor mergulhado na dificílima tarefa de concluir a redação do volume 1 de O capital. Marcello Musto persegue eficazmente seu objetivo de mostrar o erro que é considerar O capital como uma obra acabada, trazendo material que atesta o seu caráter in progress, a ser aprimorado mediante o cotejamento com a realidade.

No que diz respeito ao trabalho conceitual, merece destaque a importante carta a Engels, de 24 de agosto de 1867, onde Marx anuncia, orgulhoso, aqueles que lhe pareciam ser os dois melhores aspectos do volume I: “1. (isto é fundamental para toda a compreensão dos fatos) o duplo caráter do trabalho conforme se expressa em valor de uso ou valor de troca, que é trazido logo no primeiro capítulo; 2. O tratamento do mais-valor independentemente de suas formas particulares, como lucro, juros, renda da terra etc.” (apud p. 207). Incidentalmente, menciono que caberia talvez neste capítulo 7 um desdobramento, ainda que breve, do duplo caráter do trabalho a que Marx se refere. Isso nos levaria à categoria do trabalho abstrato, apontada por estudiosos contemporâneos (como Sohn-Rethel, W. Bonefeld, A. Jappe) como uma das contribuições mais originais da economia política marxiana.[iv]

Já no que tange as dificuldades pessoais de Marx enfrentadas para concluir a redação de O capital, Marcello Musto detalha com segurança suas diferentes facetas. Num aspecto mais biográfico, salta aos olhos a situação de extrema pobreza em que vivia o autor de O capital. Acossado por credores, colocando seus bens na loja de penhores, impossibilitado de fornecer à sua família condições adequadas de vida (“as crianças não [tinham] roupas ou sapatos para sair”, ele escreve em 1863, apud p. 191), Marx estava em tudo distante da realidade vivida, desnecessário dizer, por acadêmicos de países do dito primeiro mundo. A estas condições objetivas, soma-se também seu nível de autoexigência muito elevado, que raramente se dava satisfeito com o que escrevia (“também possuo o hábito de encontrar falhas em qualquer coisa que escrevi”, apud p. 185), modificando constantemente o material preparatório do que viria a ser O capital.

Adicionalmente, uma consciência aguda das transformações da economia capitalista o obrigava a incluir estudos suplementares, por exemplo, sobre o crescente papel dos mercados financeiros. Tudo isso resultava numa rotina de trabalho estafante: dedicando “dez horas por dia ao trabalho sobre economia” e muitas vezes sem dormir “antes das quatro da manhã”. As pressões externas e internas estouravam em seu próprio corpo. Marx passou a ser assolado com frequência por carbúnculos infecciosos que surgiam alternadamente em todas as partes do corpo, causando-lhe um indescritível sofrimento que é descrito em detalhes em suas cartas. Marx, o mestre da pesquisa das contradições, se vê atravessado em seu organismo por elas. Descreve-se “como um verdadeiro Lázaro […], golpeado por todos os lados ao mesmo tempo’” (apud p. 194).

Para o leitor contemporâneo que acompanhe o detalhamento do sofrimento contundente vivido por Marx e se pergunte sobre qual foi a eficácia, afinal, do trabalho estafante demandado pela redação de sua obra magna, acredito que o próprio pensador forneça a resposta. Referindo-se ao volume 1 de O capital, ele escreve em 1864 ao metalúrgico Carl Kings: “Espero que eu agora possa, finalmente, terminá-lo em alguns meses e dê à burguesia um golpe teórico do qual nunca se recuperará” (apud p. 281).

Não resta dúvida: o golpe foi dado.

*Maurício Vieira Martins é professor no Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF.

Referência


Marcello Musto. Repensar Marx e os marxismos: Guia para novas leituras. Tradução: Diego Silveira e outros. São Paulo, Boitempo, 2022, 320 págs (https://amzn.to/45Mtyqn).

Publicado originalmente no site marxismo21 [https://marxismo21.org/repensar-marx-e-os-marxismos/].

Notas


[i] Agradeço a João Leonardo Medeiros pela cuidadosa leitura e sugestões feitas a esta resenha.

[ii] Exceto quando houver indicação em contrário, as citações desta resenha são do livro de Marcello Musto. Quando sucedidas por apud, tratam-se de referências de Marx, citadas por Musto.

[iii] Jorge Luis Borges. “Del rigor en la ciencia”. In El hacedor. Obra Completa, Buenos Aires: Emecé Editores, 1974, p. 847 (https://amzn.to/3QEkfEg).

[iv] Por esta via, seria possível chegar também a um novo sentido do que seja abstração em Marx, afirmada não apenas como um produto do pensamento, mas como processo que transcorre no próprio real. “Essa abstração de trabalho humano geral existe…”. Marx, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 56.

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