Os habitantes originários do Brasil foram continuamente atacados e dizimados, desde o Descobrimento. As violações mais dramáticas dos direitos dos índios ocorreram, sem dúvida, no período da ditadura militar
Por Maria Rita Kehl
Nos
últimos anos da ditadura militar de 1964-85, os militantes urbanos pela volta
da democracia também se envolveram na campanha pela demarcação das terras
indígenas. Só muito mais tarde, durante o período em que participei da Comissão
Nacional da Verdade como responsável pelo grupo que investigou Graves Violações
de Direitos Humanos contra camponeses e indígenas, compreendi o pleno alcance
daquela reivindicação.
Se
os habitantes originários do Brasil foram continuamente atacados e dizimados,
desde o Descobrimento até pelo menos a Constituição de 1988 (quem não se lembra
da intervenção performática do grande Airton Krenak na Assembleia, que cobriu
lentamente o rosto com graxa preta na medida em que denunciava as atrocidades
cometidas contra os povos indígenas?), as violações mais dramáticas dos
direitos dos índios ocorreram no período das chamadas “grandes obras de desenvolvimento”(cruz credo!) da Amazônia.
Sob
o pretexto de que os povos originários que habitavam aquelas terras
representavam o atraso, o governo ditatorial promoveu/ autorizou a invasão de
territórios e a dizimação de populações indígenas. Na abertura da rodovia Transamazônica,
por exemplo, aviões militares jogaram no território dos Waimiri-Atroari um pó
semelhante ao agente laranjaempregado
contra Vietcongs pelo exército norte americano. “Caía aquele pó do céu… a
gente rolava no chão, parecia que o corpo estava queimando por dentro…”.
Em
Roraima, BR 174 foi aberta por dentro do território Yanomami para dar passagem
a garimpeiros e madeireiros. Os índios, sem imunidade, morriam de gripe,
sarampo, catapora. “Marcados”, série de fotos de Cláudia Andujar feitas naquele
período, revela adultos e crianças sobreviventes, frágeis e famintos, portando
no pescoço plaquinhas com um número que indicava a vacinação empreendida pelo
governo, quase tarde demais. A semelhança com fotos de sobreviventes de campos
de concentração é assustadora.
As
regiões sul e sudeste são as terras dos resilientes Guarani. Estes, desde o
Império, quando Pedro Segundo concedeu suas terras para a companhia Mate
Laranjeira, se acostumaram a ser expulsos e voltar. Eram enxotados para o
Paraguai. Voltavam. Como? “A pé… pelo rio…pelo mato…”. Morreram, muitos. Como
os Yanomami, morriam mais de gripe e sarampo (“doenças de branco”) do que de
tiro. Nos anos 1970 já se sabia que os índios não tinham resistência para
nossas doenças banais – mas o Estado não vacinava os agentes sertanistas nem
enviava vacinas para salvar os indígenas. Entrevistamos o alagoano Antonio
Cotrim, que se demitiu de emprego estável na FUNAI e concedeu uma entrevista à
revista Veja (na época, progressista)
onde explicava sua demissão: “Não quero ser coveiro de índios”.
Leio
hoje nos jornais que Babau, o carismático cacique Tupinambá da região de Pau
Brasil, no sul da Bahia, acaba de deixar – mais uma vez! – a prisão. Quem
estudou até o terceiro ano primário deve saber que os Tupinambá foram os
primeiros índios avistados pela esquadra de Cabral ao chegar em terras do Pau
Brasil. O cacique garboso do quadro da Primeira Missa é um Tupinambá.
Quando
fui, com o pesquisador Inimá Simões e o cineasta Vincent Carelli, do Vídeo
nas aldeias, entrevistar lideranças Pataxó e Tupinambá, conhecemos o
cacique Babau. Carismático, alegre, solar. Tinha acabado de voltar de mais um
episódio de prisão. Seu crime: defender o território de seu povo e de seus
ancestrais. Reproduzo um pequeno trecho das recomendações que encaminhou, em
nome de seu povo, à CNV.
“De 2000 para cá começamos a recuperar terras, mas
as “violações” voltaram para cima de nós com força total. Em 2008, 180 homens
da Polícia Federal com helicópteros cercaram a aldeia, o dia todo ficaram
atirando, jogando bombas de gás lacrimogêneo. Conseguimos denunciar para o
governo Lula. Os juízes da região concentraram os processos em mim. Fui preso
em 2010, passei por vários presídios, inclusive um de segurança máxima em
Mossoró (RN). Teve pressão do pessoal de Direitos Humanos em Brasília, da
imprensa, aí soltaram a gente. A terra Tupinambá é bonita, sagrada. Há três
anos um ministro (José Eduardo Cardoso) está com os papéis para demarcar nossa
terra, mas tem contestação dos fazendeiros. Eles já perderam, mas continuam
pressionando, e eles não assinam. São só 47.350 hectares para 10 mil índios”.
“Os Tupinambá vivem bem na mata porque sabem caçar,
pescar e cultivar. Somos hoje os únicos índios na região que produzimos farinha
de mandioca, mas nossa farinha, eles divulgam que é o pequeno agricultor que
produz. Fomos os primeiros a plantar cacau na mata, agora eles querem a mata
para produzir cacau. Os brancos compravam coisas para nós da cidade e nos
vendiam, mas nos roubavam. Os encantados (os mortos) orientaram para nós
estudar para não nos roubarem. Aí, esses comerciantes ficaram contra nós”.
“Nós somos um povo altamente orgulhoso. Nossos avos
criaram a gente para não depender de ninguém. Não aceitamos cesta básica da
Funai, queremos comer o que a gente planta. A fome foi instituída desde Getúlio
Vargas, quando nos cercaram e não nos deixaram sair”.
“Nós preservamos matas, bichos, águas não fazemos
grandes empreendimentos. A gente não precisa se matar para enriquecer; basta
ter onde viver e o que comer, ter nossa cultura, rezar, respeitar nossos
encantados”.
“Agora aqui tem onça, sussuarana, gato Açu, macaco,
peixes, cateto, veado, todos os peixes, águas melhoraram. Processamos município
São José Vitória para tratar esgoto e a gente exige que limpe o rio Uma, que
atravessa nosso território”.
“Quando tá com fome, o índio se rende. Aí aceita
cesta básica, a criança cresce vendo o pai sem trabalho e vendo comida dada de
esmola; quando falta a cesta básica não sabe trabalhar para comer, fica
passando fome. Tem que aprender a trabalhar vendo os pais trabalharem. Quando
corta esta tradição o índio fica pobre, mendigando, sem dignidade. Aqui tem
dignidade, sem alcoolismo, drogas. O
índio sem a cultura deles, sem espaço pra plantar e caçar, recebendo só ajuda
do governo – isso destrói o índio. Sem espaço não tem liberdade nem dignidade”.
Durante
a pesquisa do capítulo indígena tive acesso a um excelente depoimento do
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Não tive como anotá-lo, mas sei que
termina mais assim: “Muita gente pensa
que o índio deseja deixar a mata e viver na cidade. Engano. O índio na cidade
fica triste. Longe de sua
aldeia vai viver num barraco apertado; vai trocar sua vida livre e soberana por
sedentarismo, comida industrializada, vai tomar refrigerante, vai passar os
dias diante da televisão. Deprimido”.
Ou
também, como no filme Ex-pajé, de Luiz Bolognesi, vai aderir a uma seita
evangélica. Quem sabe, com esse triste desfecho, o presidente “cristão” (pobre
Jesus Cristo, quantas maldades feitas em seu nome…!) pense que afinal o índio
se civilizou.
Maria Rita Kehl, psicanalista, é autora, entre outros, de Tortura e sintoma social (Boitempo, 2019)
Nota
*Capacidade rápida de adaptação e recuperação (Dicionário Michaelis).
