Revolução democrática

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Por TARSO GENRO*

Premissas para um país liberto do fascismo e com instituições que compatibilizem liberdade e reais possibilidades de igualdade

As complicadas relações entre “tática e ética”[1] no interior dos movimentos de esquerda originários da Revolução Francesa permanecem “quentes” até hoje e latentes, no atual cenário político nacional. O conjunto da esquerda no Brasil, ao integrar-se plenamente na legalidade, despiu-se da velha visão que entendia a adesão à democracia “burguesa” apenas como momento tático para, a seguir, apropriar-se do Estado através de caminhos fora da ordem. Esta posição funde – dentro de uma ética de esquerda – tática e estratégia, que se fundem num novo projeto democrático e republicano, para um país liberto do fascismo e com instituições que compatibilizem liberdade e reais possibilidades de igualdade.

Ao considerar a democracia como “valor universal” – a partir da sua integração na legalidade e na ordem” – a esquerda transitou para a linha de Carlos Nelson Coutinho e Enrico Berlinguer,[2] para referir apenas dois grandes nomes da política socialista. Ambos eram de formação comunista e testemunharam, nas suas respectivas épocas, as grandes mudanças na política e na economia global, mesmo que ainda não tivessem a oportunidade de presenciar as mudanças tecnológicas mais recentes, que permitem, por exemplo, combinar de maneira radical a democracia direta e a representação política.

Como contrapartida histórica, ficou bem claro tanto na América Latina como nos EUA que a direita tradicional e o conservadorismo radical – antes pregoeiros do liberalismo político – movimentaram-se em sentido contrário. Eles passaram, majoritariamente, a considerar a sua própria democracia liberal como uma simples mediação tática, para ser descartada como um “carpim” furado de baixo custo, quando sentissem seus privilégios de classe parcialmente ameaçados, ainda que por tímidas reformas democráticas de natureza social.

Nas grandes lutas sociais e políticas do nosso tempo, particularmente nas lutas de libertação nacional, como – por exemplo – na Revolução Argelina, Guerra do Vietnã, Revolução Cubana, nas guerrilhas e nas ações terroristas – bem como nos Golpes Militares na América Latina, as questões éticas sobre a violência – revolucionária e estatal – permanecem, principalmente quando a violência incide sobre seres humanos que não participam conscientemente dos conflitos políticos de poder. É um assunto realmente importante para pensar república e democracia no futuro imediato.

A violência tomada como ação que causa danos físicos e mentais ao grupo inimigo ou ao adversário, na luta política, na verdade apenas prosseguiu com a ética terrorista da Santa Inquisição no fim da Idade Média, mas as suas consequências em toda a História moderna – com ou sem o exame dos seus pressupostos – emergiram de forma global com os temas da “paz social” e da “paz entre Estados”, nos últimos dois séculos modernos.

Paz perpétua, a obra genial de Kant com a sua a ideia de uma Humanidade de estados iguais e sem conflitos – do socialismo utópico ao de Marx – e as tentativas de “coexistência pacífica” dos EUA e da URSS, na época soviética, foram soterradas no Século passado. O século atual começa perdido na revivescência do fascismo, nas formas mais extremas dos danos ambientais, na infantilização e feminização da mão de obra barata e igualmente na disseminação da fome, como uma “necessidade” estratégica para a aplicação da transição para a utopia insana do ultraliberalismo sem Estado.

Agora estes temas foram reforçados nas guerras híbridas, nos golpes e violências sectárias, nos terrorismos em rede, na dominação militar de territórios (em busca das últimas fontes de energia fóssil), temas que se revitalizam no caos dominado pelo capitalismo financeiro global. As migrações pela fome, a extinção dos fins públicos do Estado e a identificação da liberdade – não como elementos de uma vida comunitária integrada, mas com adesão aos valores do mercado – é o que unifica a estranha aliança econômica da direita ultraliberal com o fascismo tardio.

György Lukács defendeu no artigo “Bolchevismo como problema moral” que por meio do “mal” relativo (a violência), poder-se-ia chegar a um “bem” maior (à Revolução Social). Mas, depois do período stalinista e da invasão da Hungria pelo Exército Vermelho, passou a falar em “democracia efetiva”. E também a combater as ditaduras burocráticas do Leste, bem como as democracias manipulatórias do ocidente capitalista, onde Nixon, segundo ele, poderia fazer o mesmo que Hitler sem desmontar a ordem democrática formal dos EUA.

Estes sinais inversos, que revelam que para as classes dominantes a democracia hoje passa a ser apenas tolerada, enquanto ela lhes serve para a continuidade da acumulação sem limites e – para a esquerda – ela passa a ter valor universal, é uma questão concreta e atual: independentemente de que estas opções tenham sido mal, ou bem escolhidas, pelas partes confronto elas vão perdurar por um longo ciclo.

Quais os partidos, considerados pelo menos formalmente de esquerda, os grupos políticos formais ou informais, as classes ou frações de classe, as personalidades e movimentos orgânicos que podem participar de uma luta unitária contra o fascismo, ainda não estão dados e eles não correspondem, necessariamente, a suas relações com a base econômica da sociedade. O que lhes moverá nesta anomalia histórica não serão tão somente suas necessidades econômicas (nem as longas narrativas do passado), mas a capacidade de sedução das propostas que disputam a sua consciência no presente.

Esta consciência, hoje, é motivada mais por símbolos, frases curtas e enunciados fenomênicos sobre como sair desta vida – ao mesmo tempo sombria e fulgurante no cotidiano do mercado – e menos por utopias que ficaram distantes da vida real. A extrema direita e a direita reacionária já confessaram que a sua ideia central é a violência e o golpe, a tortura e a morte, a eugenia social, o sexismo e o racismo. Coloquemos a unidade pela democracia em torno da repulsa e da construção e nos organizemos para os próximos combates (até quando?) dentro da ordem.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

Notas


[1] Ver o ensaio homônimo de Györg Lukács, de 1919.

[2] Carlos Nelson Coutinho. A democracia como valor universal. Rio de Janeiro, Salamandra, 1984; Enrico Berlinguer. Democracia – valor universal. Rio de Janeiro, Contraponto, 2009.

 

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