Rousseau: da teoria à prática

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Por MARILENA DE SOUZA CHAUI*

Prefácio do livro recém-editado de Luiz Roberto Salinas Fortes

“O escrever sobre Política se situa também em um espaço intermediário entre um fazer e um calar-se. Ou ainda: um espaço que é limitado por duas figuras distintas do falar. Ou nos calamos porque fazemos – a palavra é, então, supérflua – ou nos calamos porque já não podemos fazer mais nada – a palavra é, então, inútil. Entre o território da ação eficaz e o da impossibilidade da ação, estende-se o domínio da escrita. Entre a figura do Príncipe ou do Legislador bem sucedido – Moisés, Licurgo – e a figura do político impotente, constitui-se o espaço do escritor político.” (L. R. Salinas Fortes, Rousseau: da teoria à prática).

Do tácito ao expresso: o lugar do escritor político

O leitor deste livro será impelido a uma aventura que o deixará sempre em suspenso, pois o autor não recua nem concede diante dos riscos da empresa que assumiu: polemizar com a forma canônica da leitura da obra de Rousseau como obra incoerente e, por isso mesmo, inconsequente. A cada passo, uma dificuldade insuspeitada posta em evidência encontra uma solução que, logo a seguir, transfigura-se em dificuldade nova e maior que é preciso compreender e resolver. Travando um verdadeiro combate com Rousseau e com seus mais ilustres comentadores, Salinas vai apontando o lugar de origem das questões que palmilham seu percurso: o pensamento da política.

Atacando de frente a suposta incoerência de Rousseau – incoerência entre os escritos e a vida do filósofo, incoerência entre os próprios escritos – Salinas começa examinando e descartando as váriassoluções que os intérpretes encontraram para tal dificuldade. Uma primeira solução consiste em desenhar a figura de um Rousseau-Proteu, nascida do dilaceramento do indivíduo vítima da civilização, levando-o aos recursos ambíguos da dissimulação e até mesmo à pura contradição consigo mesmo. E disto resultaria a impossibilidade para totalizar de maneira homogênea a obra do filósofo. Outra solução oferecida surge na figura de um Rousseau-Mutilado.

Agora procura-se recuperar a coerência da vida com a obra e desta consigo mesma, graças a um recorte seletivo de textos compatíveis entre si e que se agrupam por exclusão daqueles tidos como incompatíveis. A coerência é obtida graças a uma paciente separação do joio e do trigo. Enfim, (como não poderia deixar de ocorrer) a questão da incoerência é resolvida pela partilha equitativa daquilo que pertence ao Jovem Rousseau e daquilo que está sob a responsabilidade do Velho Rousseau. A cisão é operada pelo reconhecimento de que há no filósofo uma passagem da paixão radicalizadora à prudência reformista. Recusando as várias soluções apresentadas, Salinas afirma que não se trata de investigar o drama individual do homem dilacerado pela civilização, nem de selecionar partes compatíveis de sua obra, nem, muito menos, de pensar numa espécie de evolução do ardor revolucionário ao conformismo reformista.

Salinas opera, então, um deslocamento da questão para apreender a gênese da suposta incoerência de Rousseau. Partindo da distinção feita pelo filósofo entre o ser e o parecer, que marca o advento da cultura, Salinas indica como essa dissociação é reportada a uma cisão mais originária, de que a primeira seria um efeito. Trata-se da cisão entre agir e falar. E se esta é a cisão fundamental, qual seria o lugar privilegiado de sua manifestação? O discurso político.

“Não é, pois, o discurso político o lugar mais estratégico – ou, pelo menos, o mais didático – a partir do qual será possível começar a entender os paradoxos deste ‘homme à paradoxes’ e compreender a concepção da escrita que lhe é própria, assim como o uso multiforme que ele faz dela?”

Mas esta direção esconde novas dificuldades, pois a incoerência parece ressurgir quando se comparam textos como O contrato Social e as Considerações sobre o Governo da Polônia ou as Cartas da Montanha, pois agora a teoria (O Contrato Social) parece ser negada pelos discursos conjunturais. E o sentimento da dissimulação torna-se inevitável no leitor. A passagem do geral ao particular, da teoria à história, parece não cumprir-se e descamba para a contradição.

Resolver essa dificuldade – a passagem da teoria à prática – é a tarefa a que se entrega Salinas. E para levá-la a cabo o Capítulo I deverá encarregar-se da compreensão do estatuto do discurso teórico, compreensão que conduz o autor a uma análise minuciosa do Ensaio sobre a Origem das Línguas, onde a questão da linguagem como fratura sucessiva do gesto e da fala, da fala e da escrita, da escrita persuasiva e da escrita convencedora reencontra a fratura, posta na Introdução, entre falar e agir. Dessa maneira, a teoria da linguagem recupera seu solo originário, que é um solo político. Com efeito, o que significa buscar a ajuda do discurso? O próprio Rousseau levanta o paradoxo: como o crítico das ciências e das artes poderá ser um escritor? Como o crítico do livro pode cumprir sua tarefa crítica, escrevendo livros também? A crítica radical dos malefícios da cultura (e, portanto, da escrita), para ser coerente, não deveria ser a escolha do silêncio?

Um dos maiores interesses do Capítulo I está na crítica que Salinas endereça a Derrida, preocupado em desentranhar as raízes metafísicas da crítica de Rousseau à escrita como suplemento perigoso da fala e da visão, muito mais próximas do Ser, proximidade que a escrita abole instaurando uma distância irreparável entre o homem e a natureza. A primeira crítica endereçada a Derrida consiste em mostrar que o intérprete não retira do próprio Ensaio os princípios que permitiriam a leitura dos demais textos de Rousseau, de sorte que, afinal, a teoria da linguagem assim encontrada aparece inevitavelmente como simples suplemento da relação imediata com a natureza e com a verdade. Salinas fará um percurso exatamente oposto a este, na medida que procura na teoria rousseauniana da linguagem os princípios para ler Rousseau. A segunda crítica aponta para certa cegueira do comentador francês que em instante algum procura ver se a distância estabelecida entre aquilo que Rousseau declara, de um lado, e aquilo que descreve, de outro, não é uma distância exigida pela própria lógica interna do discurso rousseauniano. O que Salinas demonstra ser efetivamente o caso. Enfim, uma terceira crítica revela que as premissas usadas por Derrida para ler o Ensaio já estão dadas pelo próprio Ensaio, de sorte que o intérprete estaria sendo vítima do poder do discurso que tenta criticar.

Essas três observações preparam a verdadeira crítica. Assim como anteriormente não se tratava de salvar Rousseau indo da paixão à prudência, agora não se trata de condená-lo por uma ambiguidade na crítica da metafísica a que ainda estaria preso. A cisão entre falar e agir revela que o lugar da discussão é outro. Qual seja: o de uma leitura política do Ensaio que poderá esclarecê-lo e esclarecer sua articulação necessária com as demais obras de Rousseau. Será esta a via percorrida por Salinas. Trata-se, pois, de desvendar a relação entre o Logos e o Poder.

“A história posterior a esta fratura, (visão-fala, gesto-fala, fala-escrita), a nossa história – de que o Discurso descreve a gênese – será uma história de novas fraturas provocadas pelos ecos-retardados da primeira explosão e que se somam à primeira fenda, acabando, pouco a pouco, por consumar, com o culto do livro, o desligamento definitivo dos dois universos (naturezae cultura; sensível e inteligível). Mais do que isto. Conduzindo a uma total inversão da situação inicial, pois o livro acaba por se substituir ao real, acaba por ser mais real do que o real. Reconstitui-se assim, de forma tirânica e em favor do inteligível a unicidade do olhar e a unidade do campo visual”.

Persuasão e convicção são formas do discurso político. Convencer é dominar o espírito, a vontade, o sentimento do outro – é tiranizá-lo. E o livro é uma forma tirânica. É, pois, num contexto eminentemente político que a questão da escrita deve ser examinada. É o contexto da prática humana no estágio em que a Razão capta as mensagens da natureza (antes captadas pela sensibilidade) que deve iluminar a questão da passagem pela escrita e o significado do discurso teórico.

Mas a dificuldade não se faz esperar. Se a razão, a teoria e a escrita se definem pelas necessidades presentes da atividade humana, representam contudo uma queda frente ao estado originário do homem no coração da natureza. Se o livro é tirânico e se tirânica é a cultura que o faz nascer, como pode Rousseau usar como instrumento de crítico o objeto da própria crítica? Nova incoerência? Não. A resposta a essa questão emerge quando se circunscreve o campo em que a escrita e a teoria se oferecem, pelo menos, como remédio para uma humanidade envelhecida e decaída. O discurso é remédio quando é discurso político.

“O escrever sobre Política – diz Salinas – se situa também em um espaço intermediário entre um fazer e um calar-se. Ou ainda: um espaço que é li­mitado por duas figuras distintas do falar. Ou nos calamos porque fazemos – a palavra é, então, supérflua – ou nos calamos porque já não podemos fazer mais nada — a palavra é, então, inútil. Entre o território da ação efi­caz e o da impossibilidade da ação, estende-se o domínio da escrita. Entrea figura do Príncipe ou do Legislador bem sucedido – Moisés, Licurgo – e a figura do político impotente, constitui-se o espaço do escritor político. Se Rousseau, antes de entrar na matéria, julga importante justificar-se, ele o faz não apenas com o propósito de tranquilizar os leitores eventuais, mas antes com a intenção de circunscrever rigorosamente o espaço de seu discurso. Esta preocupação pedagógica não é acidental; é uma expressão, no plano da política, da postura constante de Rousseau diante da ciência em geral ou da filosofia”.

Entre o silêncio da ação bem sucedida e o mutismo da impotência social e política, instala-se um discurso que visa alcançar a primeira e eliminar a segunda: o discurso da teoria política, que nasce quando todas as condições objetivas parecem aniquilar seu sentido. O livro político é aquele escrito quando tudo parece exigir silêncio. Mas, porque escrito quando a linguagem, e a escrita em particular, tornou-se inútil ou serva do poder vigente, o livro ganha uma significação nova que só é possível desvendar graças à crítica da cultura que o fez nascer. Assim, no lugar da suposta incoerência de Rousseau, vem colocar-se um discurso que é reflexão sobre sua própria origem e sobre sua destinação social e histórica.

Circunscrito entre dois silêncios, o ato de escrever aponta em seu próprio interior para a questão que o suscita: a passagem da teoria à prática, uma vez cumprida a passagem do tácito ao expresso: “O ponto de vista teórico, constitutivo do discurso da ciência do homem, apresenta-se, então, apenas como um momento necessário no interior de um saber e de um discurso eminentemente práticos. Momento necessário porque assim o exige nossa condição presente, essencialmente discursiva. Mas momento subordinado, na medida que esta ciência só se justifica no horizonte de uma prática. […] Assim como o princípio de utilidade serve de critério para o estabelecimento do programa de ensino de Emílio, autilidade para a prática aparece como princípio de delimitação do campo do saber: além do território compreendido pelos conhecimentos úteis para a prática, situa-se o perigoso domínio em que se dão os delírios da razão raciocinante”.

Três registros diferentes

Salinas examina a constituição do discurso teórico e de sua paisagem à prática em três registros diferentes.

O primeiro exame dessa constituição e dessa passagem é feito à luz da diferença na eficácia persuasiva dos discursos. O discurso teórico procura impor-se à razão do interlocutor; seu valor: a exatidão; sua tarefa: a explicitação de relações que constituem o objeto de que fala; seu pressuposto: a existência de uma ordem racional objetiva onde os interlocutores se defrontam; seu princípio de organização: o princípio do melhor. O discurso teórico imediatamente voltado para uma prática determinada, porém, visa outro tipo de persuasão cujo pressuposto não é a racionalidade do real e do interlocutor, mas a conveniência ou adequação da proposta ao interlocutor que a solicita. Salinas, examinando a diferença entre o O Contrato Social e textos como Considerações sobre o Governo da Polônia e Cartas da Montanha, localiza a distinção dos discursos numa diferença de auditórios. É a partir do ouvinte, portanto, que os discursos políticos de Rousseau reencontrarão sua coerência.

A teoria política desenvolvida no Contrato dirige-se ao “ouvinte transcendental”. É uma política desenvolvida no plano da universalidade e das condições de possibilidade da criação do corpo político enquanto tal. Seu interlocutor: o Legislador. A teoria política responde à questão da origem do corpo político (origem não-empírica, evidentemente) respondendo à questão: o que é o direito de legislar? Por sua vez, os textos conjunturais inserem-se no contexto de um corpo político já existente e cujas necessidades são imediatamente práticas e estão inscritas nos avatares do mundo empírico. Seu destinatário: o “ouvinte empírico”, governantes e governados concretos, membros de um Estado particular cujas peculiaridades históricas, geográficas e morais devem ser consideradas pelo escritor.

Agora o discurso responde à questão: como e quando é possível legislar? A passagem da teoria à prática se oferece, assim, no interior de uma diferença de auditórios graças à qual a teoria passa à ação eficaz e oportuna, o transcendental vem investir-se na região do empírico e o universal penetra no particular pela passagem de um tempo abstrato (o do Contrato) ao Kairós das políticas presentes. Não há, pois, incoerência no escritor político Rousseau, mas, ao contrário, há nele uma extrema atenção à utilidade, ao interesse e à eficácia da ação de seu ouvinte particular, levando-o a retomar de maneira sempre diferenciada os universais postos no plano da pureza abstrata exigida pela teoria, enquanto política transcendental. A cada passo, Rousseau está atento para o público que solicita seu discurso, e este só encontra efetividade se souber acolher a particularidade de quem o ouve, acolhida que exige uma espécie de bom uso ou de uso oportuno daquilo que fora endereçado ao ouvinte transcendental.

Talvez o que leve a pensar numa incoerência de Rousseau, quando não se leva em conta sua atenção pelos auditórios, seja o fato dos intérpretes não perceberem que o filósofo rompe de maneira oblíqua com o ideal clássico da política. O ideal clássico parte do pressuposto de que há uma boa sociedade em si e que as sociedades existentes realizam bem ou mal esse modelo ideal, tendendo geralmente a corrompê-lo. Ora, os temas da boa-sociedade e da corrupção também se encontram em Rousseau, mas deslocados do contexto clássico. A boa-sociedade, a sociedade jovem, é a sociedade onde o Legislador não é apenas um ideal transcendental, mas uma figura concreta instauradora do corpo político legítimo. A má-sociedade, a sociedade velha e corrompida, não é aquela que desvirtuou o modelo ideal da boa-sociedade, mas a que nãoconsegue encontrar alguém que encarne a figura do Legislador. Não há uma cronologia da corrupção, mas uma espécie de bondade essencial ou de maldade essencial das formas políticas que são ou originariamente boas ou originariamente más. Estas últimas precisam de remédio. E o remédio só é eficaz se souber exatamente qual a moléstia que deve curar. Essa moléstia, só a atenção dada ao “ouvinte empírico” pode dizer ao escritor político como remediá-la.

O segundo momento do exame da passagem da teoria à prática é feito graças a um deslocamento operado por Salinas no critério tradicionalmente usado pelos comentadores de Rousseau. Estes supõem, de modo geral, que o corpo político nasce do pacto e que a política é pensada pelo filósofo em termos jurídicos. Salinas desloca a questão indagando: qual o terreno da possibilidade do político, não a partir do pacto, mas a partir da consciência coletiva. O fundamento da política não é jurídico (o pacto), nem empírico (a concórdia de todas as vontades), mas a consciência coletiva que se exprime como “vontade geral”.

Esse deslocamento fará com que a passagem da teoria à prática se revele mais dificultosa do que antes, mas permite, por outro lado, desfazer uma vez mais a suposta incoerência de Rousseau. Com efeito, costuma-se apontar como incoerência o fato de que, sendo o pacto, o fundamento do corpo político, como pode o filósofo falar em “morte do corpo político” ali onde o pacto ainda persiste? Salinas nos mostra que, justamente por não ser o pacto o fundamento do político, e sim a Vontade Geral, o corpo político estará morto sempre que a Vontade Geral tenha morrido, a despeito de certa inércia do pacto em sua permanência empírica. Salinas indica, pois, o verdadeiro lugar da política: o campo simbólico da Lei corporificada na Vontade Geral e cujo efeito é um pacto entre os homens.

A política não é o campo da violência pura e das forças nuas – quando estas se manifestam a política já morreu. A política também não é o terreno onde a vontade de todos se reconcilia numa paz perpétua que anula e mistifica os movimentos antagônicos do corpo social. A política se instaura com a instauração da região da Lei, poder que é poder da Vontade Geral, emblema do social e de suas articulações internas e necessárias. Dessa maneira, Salinas pode afastar uma nova incoerência imputada a Rousseau. Se o pacto é o fundamento do corpo político, costuma-se perguntar como, então, Rousseau discute o problema da legitimidade política e por que dá ao Legislador um papel inútil, visto que estaria encarregado de instaurar o que já existe? Ora, como bem mostra Salinas, o pacto não é o fundamento do corpo político, mas seu ponto de chegada enquanto Vontade Geral. O papel do Legislador é o papel do fundador político, na medida que sua ação instaura a Vontade Geral como Lei.

Como diz o autor, o Legislador constitui-se como vanguarda política criadora das condições para o exercício efetivo da política. A passagem da teoria à prática se explicita, então, na análise das ações daquele que deve fundar o político. Na lógica da ação do Sujeito Político, o discurso encontra o princípio de seu próprio saber e dos limites desse saber, limites que lhe são impostos pela prática do agente político. “[…] nem a sensibilidade, nem a razão pouco desenvolvida dos membros da associação podem constituir guias para a conservação do corpo político. Abandonados a si mesmos os membros da associação seriam incapazes de levar a bom termo o empreendimento que têm em vista ao se associarem. Para que o bem comum se transforme no polo diretor do seu comportamento é necessário que seja garantido e fixado, já que ninguém pode agir de acordo com o bem comum se não o conhecer e já que nem as luzes insuficientes, nem a sensibilidade particular permitem aos membros da associação um acesso espontâneo ao bem comum. […] Se as leis positivas são necessárias não é apenas porque devemos nos prevenir contrao vício da vontade, mas igualmente contra o erro do entendimento dos particulares. O corpo político deve tomar a forma de uma ordem jurídica e a vontade geral deve se explicitar através de leis, porque o homem, neste estágio, está naturalmente inclinado ao erro e ao vício. […] A invenção da máquina artificial do Estado é obra do Legislador. […] Por que, entretanto, o recurso a este personagem providencial? O próprio aparecimento em cena desta figura paternalista não contraria a soberania do povo afirmada anteriormente? […] O direito de elaboração das leis pertence ao povo. Nós já nos despedimos, entretanto, do plano do direito. De fato, o povo não dispõe do poder efetivo para se desincumbir desta tarefa, dadas as suas limitações. Não há contradição, mas mudança de plano: o povo real não é o mesmo que o povo ideal que participa do pacto primitivo. Entre um e outro, entre o povo e a multidão cega, existe um abismo a ser franqueado pela intervenção de um indivíduo excepcional”.

O Legislador, razão encarnada, situa-se fora da sociedade enquanto esta se configura como multidão cega. E o veículo através do qual a razão pode penetrar na história humana. É o ocupante do lugar que pertence ao povo que ele próprio deve criar. Assim, o Legislador não se confunde com as figuras empíricas dos poderosos e dos oprimidos, mesclados nos conflitos da multidão cega. Seu lugar é simbólico: é o lugar do Poder, poder que é do povo enquanto corpo político, isto é, vinculado pelo bem comum a que a multidão cega deverá curvar-se pela obediência à Lei. O Legislador não é o legista. É o Sujeito Político por excelência: fundador e conservador do corpo político.

A partir dessas duas primeiras colocações, encontramos o terceiro registro do exame da passagem da teoria à prática. Salinas se detém, inicialmente, na distinção entre dois grandes momentos da constituição do discurso teórico: o primeiro momento é o da análise da constituição do social, e a questão do político só aparece nomomento seguinte com a figura do Legislador, destinado a constituir o corpo político pela instalação da Vontade Geral. A distinção desses dois momentos fará com que entre em cena algo que vinha implicitamente sustentando o percurso de Salinas, e que agora se explicita: a história. Não é o social (enquanto pacto), mas o político (enquanto consciência coletiva expressa na Vontade Geral) que põe em movimento a História. Agora a problemática se concentra no modo de articulação entre O contrato Social e o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, isto é, entre uma teoria da boa-forma política e a genealogia do mal, ou, se quisermos, entre a boa-sociedade e a teodiceia às avessas.

Para que o Contrato não seja lido como elaboração abstrata de Leis, Salinas considera indispensável lê-lo tendo sempre presente o segundo Discurso. E para que não se veja incoerência entre o texto lógico (a política transcendental) e o texto genealógico (a história da perversão da natureza humana), é preciso pôr à luz a articulação entre política e história, isto é, entre política e economia (o advento da propriedade privada, a acumulação das riquezas, as desigualdades que se exprimem como dominação do fraco pelo forte, do pobre pelo rico, o vício do amor-próprio e a velhice social, a política rumando para o despotismo). “A história dos progressos da desigualdade […] é a história da contínua desagregação dos corpos políticos defeituosos constituídos pelo vício humano. […] Ao lado desta, há outra história possível, que para efetivar-se tem necessidade da colaboração do Legislador. Esta ação leva, pois, a adotar o caminho oposto ao que nos traça o segundo Discurso”.

Há pouco, comentávamos a maneira rousseauniana de se desfazer da política clássica da boa-sociedade e da história de sua queda. Agora essa afirmação torna-se mais clara. Se a história narrada pelo segundo Discurso é a história da queda e da desnaturação perversa é porque nela o corpo político nasce viciado, nasce do discurso do rico, da proposta de uma união de forças contra um suposto inimigo a quem se deve combater para que haja justiça. Ora, se o fraco e o pobre são suscetíveis de serem persuadidos por tal discurso, é porque estão corrompidos tanto quanto os fortes e os ricos. A genealogia é genealogia do mal porque o mal está no princípio constituinte dessa história perversa.

Ora, se há, como diz Salinas, outra história possível, essa nova história é história política. Embora já esteja mergulhada na desnaturação do homem, a política é uma boa desnaturação na medida que, como proporá o Contrato, a ação do agente político visa encontrar um princípio político oposto ao que se manifesta no segundo Discurso. Ou melhor, visa encontrar o lugar do político propriamente dito. Assim, em vez de uma contradição entre o Contrato e o segundo Discurso, encontramos uma transformação radical da problemática, na medida que seus registros não são idênticos. Na genealogia do mal, homens corrompidos querem ter o poder e exercê-lo pela violência. Na história política, não há homens – há o Povo e a Lei, o lugar do Poder e a ação do Legislador.

Como articular as duas obras, agora que surgem como discursos invertidos, mas escritos em dimensões diferentes? Pela mediação do Legislador que atua sobre a Vontade Geral e pela intensificação das relações sociais e econômicas, circunscreve-se o campo prático da política e da história, circunscrição que encontra sua teoria em O contrato social. O campo prático da política revela-se como campo de forças em luta e cujo maior risco é degenerar em violência e despotismo, isto é, em dominação total de um (ou de alguns) sobre todos. Se nessa luta a vitória couber à Vontade Geral, a prática política torna-se possível e outra história pode encontrar o caminho de sua efetividade. Se, ao contrário, a vitória couber à vontade individual, a política será impossível, o despotismo, inevitável, e o segundo Discurso, a única verdade sobre os homens.

Essa articulação dos dois grandes discursos de Rousseau permitirá a Salinas desvendar o subsolo da teoria política rousseauniana. Esta não é apenas uma tipologia das formas de governo, como sempre se imagina, mas antes uma tipologia das formas de ação política. A teoria passará à prática desde que se perceba seu verdadeiro objeto: a lógica da ação do Sujeito Político.

“Ao termo inicial, quando a instituição de um corpo político quase perfeito é ainda possível, corresponde a ação do Legislador propriamente dito, de Licurgo, Moisés, Numa. Ao termo final, quando já nada mais é possível fazer, corresponde a ação do Pedagogo. A ação se despolitiza, já não visa mais a cidade, mas um indivíduo isolado. Entre esses dois extremos, dois outros tipos poderiam ser distinguidos. De um lado, temos a figura do Legislador conselheiro, assessor técnico dos governantes. Seria o caso do próprio Rousseau, diante da Polônia ou da Córsega. De outro, o publicista ou o escritor político. Já não é mais aos governantes que ele se dirige, mas ao povo em geral ou ao público das grandes sociedades corrompidas”.

Trata-se, então, de saber como e por que essas figuras políticas passam à existência, pois cada uma dessas ações corresponderá a uma forma de organização, isto é, um sistema de leis diferentes. Assim, a tipologia das ações políticas e a tipologia das formas de governo desenham uma articulação inteiramente nova entre o Contrato e o segundo Discurso. No caso do Legislador, a questão gira em torno da possibilidade de realizar a ordem política onde a Vontade Geral seja soberana, a partir do estabelecimento de quatro variáveis fundamentais: duas variáveis temporais – a idade de um povo e o instante em que está apto a ser legislado – e duas variáveis espaciais – as dimensões da cidade e as relações com o exterior. Isto posto, é preciso, indagar, examinando a vida concreta dos povos, como essas variáveis se oferecem historicamente, para que sejam apanhadas no tempo oportuno.

Nesse ponto, o Contrato deve ser iluminado pelo segundo Discurso, pois tudo dependerá da relação estabelecida, em cada momento, entre as leis e os vícios dos homens. A legislação exige que os vícios tenham uma força mínima, estejam quase em seu grau zero. A pedagogia se instala, justamente, quando alcançaram o grau máximo de intensidade, o que corresponde, no segundo Discurso ao triunfo do despotismo e ao grau último das desigualdades – o corpo político, velho, está às portas da morte. A diferença política entre a velhice e a juventude é uma diferença moral: o povo jovem é o povo do amor de si e da benevolência, atento à voz da consciência, isto é, à presença de si ao outro; o povo velho é aquele que se tornou surdo à voz da consciência, pois nele o amor de si converteu-se em amor-próprio.

O conflito entre a força das leis e a força dos vícios decide sobre a juventude e sobre a velhice do corpo político, mas a origem desse conflito deve ser buscada na região em que a moral e a política são possíveis ou impossíveis, isto é, no interior das relações sociais. E novamente, aqui, o segundo Discurso oferece a via para a compreensão desse movimento de perda gradativa da moral e da política. Ora, o que é fundamental na interpretação de Salinas é a localização do momento em que a política é possível. Entre a instalação da propriedade, mas antes que a riqueza tenha se tornado valor dominante para todo o povo, nasce o campo político. Que significa esse nascimento? Qual a verdade que carrega? Antes da propriedade, a política é supérflua; depois da riqueza, a política é impossível.

Isto significa que o campo político só pode emergir quando o social se oferece dilacerado por uma divisão interna que pode converter-se numa luta sem tréguas pela dominação. E a divisão do social engendrada pela propriedade, que exige o advento das leis e do governo, pois a ordem social só poderá prevalecer se o movimento despótico do amor-próprio for contido e contrariado. A política nasce, pois, de uma desigualdade produtorado social, mas só é política se caminhar a contrapelo com relação ao movimento imanente à desigualdade que conduziria ao fim da política. Em suma: entre o isolamento anterior à propriedade e a dominação coletiva, entre o individualismo inicial e o despotismo final, uma outra história é possível, se a política for possível, isto é, se o estado de guerra da sociedade nascente puder ser canalizado para a instauração da Vontade Geral. E, em cada caso particular, o campo político assim posto genericamente deverá encontrar uma forma particular e uma prática particular. Mas, em todos os casos possíveis, a ação política eficaz se define pela capacidade de avaliar o grau máximo da força das leis e o grau mínimo da força dos vícios. Neste ponto, o Contrato e o segundo Discurso percorrem caminhos exatamente inversos, mas seu sentido é o mesmo do ponto de vista político.

Do ser ao parecer, do falar ao agir, do direito ao fato, do transcendental ao empírico, as dicotomias que deveriam sugerir as incoerências do pensamento de Rousseau, ao contrário, designam o sentido de sua obra filosófica como circunscrição do campo político e do discurso da política. Feito esse percurso, na Conclusão, Salinas retomará a pergunta colocada pela Introdução: há ou não incoerência entre os discursos políticos de Rousseau? Imediatamente a resposta será negativa, garantida pela compreensão dos princípios da política examinados ao longo do livro. Contudo, há uma segunda resposta, também negativa, mas obtida em um contexto novo, e que vem completar o sentido da primeira, pois se enraíza na problemática que o livro tematiza, qual seja, a passagem da teoria à prática.

Salinas interpreta, agora, as Considerações sobre o Governo da Polônia. Examinando o texto do Legislador conselheiro, verificando seus pontos de contato e sua distância frente ao Contrato, portanto, ao discurso do escritor político, Salinas aponta os paradoxos e incoerências que parecem percorrer a totalidade das Considerações, reforçando a interpretação tradicional de um Rousseau charlatão e oportunista. Contudo, subitamente, o leitor é levado a reler as Considerações para, afinal, compreender que não está diante de simples incoerências, mas de verdadeiras contradições. Porém, e este é o ponto essencial, Salinas faz com que descubramos que tais contradições não estão no discurso de Rousseau, mas na Polônia, objeto do discurso.

É, pois, o objeto político que é contraditório e não o discurso que o revela. Torna-se claro, então, porque desde o início do livro Salinas recusa a noção de incoerência, pois esta não é uma categoria política e não pode lançar a menor luz sobre os escritos de Rousseau, homme à paradoxes, isto é, pensador que alcança o universo da política como um universo governado por uma lógica paradoxal – uma lógica da contradição. Se é possível pensar a passagem da teoria à prática em Rousseau, é porque sua teoria é capaz de acolher a realidade política naquilo que a torna enigmática e exigente de uma práxis, isto é, em suas contradições. Eis porque nas Considerações a questão da forma do governo é quase secundária frente a uma outra questão fundamental: a da ação política formadora ou transformadora do corpo político.

*Marilena Chaui é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Contra a servidão voluntária (Autêntica).

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Luiz Roberto Salinas Fortes. Rousseau: da teoria à prática. São Paulo, Discurso Editorial, 2021, 200 págs.

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