Ruy Fausto: A difícil relação entre dialética e política

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Por RODNEI NASCIMENTO*

Ruy Fausto contribuiu de maneira decisiva para a reconstrução de um projeto político de esquerda ao recuperar a centralidade da luta anticapitalista

Autor de uma obra incontornável sobre o pensamento de Marx e o significado da dialética em geral, faleceu, no último dia primeiro de maio, o filósofo e professor Ruy Fausto, aos 85 anos de idade. Em plena atividade intelectual e política, estava envolvido com uma releitura intensa das obras de Adorno sobre quem planejava publicar um novo livro. No plano prático, acabara de lançar junto com alguns colegas a revista Rosa, que se seguiu à revista Fevereiro – ele era bom com esses títulos – ambas dedicadas à intervenção no debate teórico e política de esquerda. Com espírito sempre jovem e entusiasmado com os novos projetos, foi, entretanto, pego de surpresa por uma parada cardíaca quando se encontrava em seu apartamento, na cidade de Paris, onde vivia desde o início dos anos 70.

Ruy Fausto deixara o Brasil já no final dos anos 60, afim de evitar a sua prisão em decorrência da proximidade com membros de grupos de esquerda no país que eram perseguidos pela ditadura militar. Foi primeiro para o Chile, onde lecionou por 2 anos e meio, na Universidade Católica, antes de partir para França, com o intuito de concluir sua tese de doutoramento. Colhido pela notícia do golpe militar que derrubou Salvador Allende, em 1973, viu-se impossibilitado de retornar a Santiago e acabou por estabelecer-se definitivamente na capital francesa. Ali construiu sua vida pessoal e a carreira acadêmica, tendo alcançado o posto de Mestre de Conferências na Université de Paris 8. Jamais perdeu, contudo, sua relação com o Brasil, principalmente com o Departamento de Filosofia da USP, que o acolheria ainda como professor visitante e lhe concederia mais tarde o título de professor emérito. Todos os anos, no período pós-ditadura, o professor Ruy passava infalivelmente uma temporada no departamento oferecendo cursos sobre Marx, Hegel e Adorno, contribuindo para a formação de várias gerações de pesquisadores, antes de aposentar-se de vez da sala de aula.

A mesma tensão entre filosofia e política verificada na vida inteira do indivíduo, não deixaria de marcar igualmente a obra filosófica, nunca concluída e sempre em construção, do filósofo Ruy Fausto. Desde os seus primeiros livros até os artigos mais recentes, uma mesma questão atravessou o pensamento do autor: como seria possível fundamentar a ação de transformação da sociedade? No caso de Marx, em nome do que exatamente se faz a crítica do capitalismo e a exigência de sua superação? Trata-se de uma exigência ética por igualdade e justiça ou de uma reivindicação mais ampla em favor da realização da essência humana?  O fundamento da crítica e da ação transformadoras seria então uma ética ou uma antropologia? A investigação desse questionamento conduziria a um problema dialético, pois em Marx, de acordo com Ruy, este fundamento está ausente e presente ao mesmo tempo, ou, na linguagem hegeliana, está pressuposto, mas não posto. E aqui já estamos, então, no coração da lógica dialética.

A explicação do movimento de posição e pressuposição, ou, a compreensão de por que Marx está impedido de explicitar o fundamento da sua crítica da economia política, levaria ao achado filosófico mais importante de Ruy Fausto, como ele mesmo declarou em várias ocasiões: a noção dialética de interversão, isto é, a ideia de que uma coisa ao constituir-se a si mesma experimente um processo de autonegação que faz com que ela passe no seu contrário. Não se trata de uma anulação da coisa, mas do seu próprio vir a ser que somente é possível pela mediação da sua negação. Assim, sob as condições do modo de produção capitalista, o homem é negado pelos inúmeros mecanismos de alienação, reificação e exploração aos quais está submetido. Nesse sentido, o homem nunca conclui seu processo de formação. Jamais saberemos o que é o homem verdadeiramente no interior do capitalismo, pois o que temos aqui é apenas a figura da sua negação. Por isso, uma concepção qualquer sobre o homem não poderia servir como fundamento da crítica. Falar em nome do homem significaria silenciar sobre sua condição de ser negado. Para lembrar uma fórmula do nosso filósofo, o humanismo interverte-se em anti-humanismo. Ou seja, a crítica converte-se em mera fraseologia ou ideologia. Não por acaso, portanto, Marx nunca ofereceu uma concepção acabada sobre o que é natureza humana, mesmo que tenha tematizado essa questão nos textos de juventude, nem se demorou a definir os traços do que seria uma sociedade de homens livres, isto é a sociedade comunista. O que importava para ele era expor – compreender e criticar – os processos de negação do homem sob o capitalismo.

A partir dessa chave de leitura, e a contar da publicação do seu primeiro livro, Marx, lógica e política: investigações para a reconstrução do sentido da dialética, em 1983, Ruy passaria os vinte anos seguintes ocupado com o projeto de reinterpretação do corpus marxiano e da reconstituição de um significado rigoroso para a dialética. Sua leitura tomava desde os primeiros escritos de juventude até O Capital, passando por textos intermediários, como a Ideologia Alemã, além dos escritos histórico-políticos sobre as lutas de classes na cena europeia do final do século XIX. O resultado foi uma das mais amplas e rigorosas tentativas de compreensão dos meandros da dialética materialista do pensador alemão, não só no Brasil, mas também no exterior. Os três volumes de Marx, Lógica e Política (1983, 1987 e 2002) tornaram-se reconhecidos em todo o meio acadêmico, a despeito das divergências, como bibliografia obrigatória para qualquer um que se aventure a compreender a fundo a obra de Marx.

Embora nunca tenha perdido de vista a unidade entre filosofia e política, era evidente, como reconheceu o próprio autor, que, nesse projeto os problemas de lógica dialética haviam ganhado um predomínio sobre as questões políticas, mesmo que ambas fossem tratadas simultaneamente. A política estava presente, mas muito mais como como pano de fundo do que como objeto de análise principal. Por isso que, ao final da série sobre lógica e política, Ruy inicia um novo ciclo de estudos, de estilo completamente diferente, em que os problemas políticos e históricos ganham o devido protagonismo. Trata-se agora de fazer um balanço crítico das experiências revolucionárias no século XX, aprender com os erros históricos e formular o programa de uma esquerda anticapitalista e democrática. Novamente uma empreitada ambiciosa, que começa a produzir uma leva de novos títulos a partir de 2007, com a publicação de A esquerda difícil: em torno do paradigma e do destino das revoluções do século XX e alguns outros temas. Em seguida, viriam ainda Outro dia, de 2009, Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução, de 2017 e, por fim, O ciclo do totalitarismo, em 2019.

A nova fase marcaria também o seu afastamento de Marx, já latente em alguns capítulos do seu primeiro livro, o que nunca significou simplesmente um abandono do marxismo, pois considerava ainda a sobretudo a crítica econômica de Marx ainda bastante atual. Ruy chegara à conclusão de que o fracasso, ou mais propriamente, a tragédia da tentativa de implementação das sociedades socialistas no século XX revelava os limites da solução dialética dada por Marx ao problema da crítica. O fato de não explicitar claramente o que queria colocar no lugar do capitalismo o tornava refém dos erros cometidos em nome da sua teoria. Ele sabia perfeitamente que ambos não se confundiam, mas como imunizar o marxismo contra sua apropriação totalitária se não havia definição clara sobre o tipo de sociedade que queremos construir, sua relação com a liberdade dos indivíduos, sobre o papel da democracia, do Estado etc.? Depois da experiência totalitária da esquerda no último século, a maneira de evitar que o conteúdo da crítica ao capitalismo se interverta no seu contrário é justamente tematizá-lo explicitamente, é pôr o seu fundamento, a fim de impedir sua manipulação ideológica.

Em A esquerda difícil, Ruy começaria a esboçar o que considerava o programa de uma esquerda não totalitária. Para dizer de maneira sintética aqui, uma esquerda autêntica deve ter uma política “intransigentemente” democrática, anticapitalista e avessa a toda prática de corrupção na administração pública, além de uma agenda ecológica consistente. Embora se trate de um programa mínimo, ele não é nada óbvio. Para ficar apenas em um exemplo, sabemos que democracia e anti-capitalismo nunca tiveram uma convivência tranquila. Ele assume um conceito convencional de democracia, fundamentalmente a democracia parlamentar representativa: eleições parlamentares, divisão de poderes e pesos e contrapesos institucionais. Seria incorreto denominar esse arranjo político simplesmente de democracia burguesa, visto que o seu princípio mais fundamental é o da igualdade, ao passo que o do capitalismo é a desigualdade. Conduzida à radicalidade que comporta, a democracia seria capaz de abalar qualquer sistema baseado na desigualdade. Já o anti-capitalismo não significa ser contra toda forma de Estado ou contra todo tipo de propriedade privada, mas visa antes de tudo à “neutralização” do grande capital. Nesse sentido, a existência do mercado e da produção de mercadorias não são vistas como contrárias ao socialismo, como na versão clássica, inclusive de Marx. Para a pequena propriedade, defende uma organização econômica fundada em cooperativas de produção. Mas esse seria um objetivo de longo prazo. De imediato, a tarefa que se impõe é a defesa de um Estado de bem-estar que garanta a universalização dos direitos sociais, financiados pela taxação das altas rendas.

Ruy Fausto contribuiu de maneira decisiva para a reconstrução de um projeto político de esquerda ao recuperar a centralidade da luta anticapitalista. Sem descuidar dos novos temas, como o das minorias e da ecologia, afirma sem hesitação que a esquerda representa os interesses dos não detentores de capital, em oposição aos interesses dos que de dispõem. Sabe combinar estrategicamente objetivos de longo e curto prazo, como a transformação do modo de produção capitalista e a reforma do sistema de impostos, a defesa da educação pública, a democratização dos meios de comunicação etc. Aquilo que sugere colocar no lugar, uma economia solidária e cooperativa de pequenos proprietários, além do controle sobre o grande capital, pode ser questionável, em razão da complexidade e do nível de especialização da atividade produtiva hoje em dia, mas não é possível duvidar da radicalidade da sua proposta. A meu ver – para deixar uma nota crítica final, que celebra muito mais sua memória e inteligência do que a recepção sem debate e indiferente de suas ideias, um vezo bem brasileiro que tanto o irritava – seu programa esbarra na defesa incondicional da democracia representativa. Pode-se admitir que esta tenha um potencial emancipatório, mas, dominada pelo poder do dinheiro, tem servido antes como instrumento de manutenção dos interesses econômicos dominantes. A dificuldade de movimentos recentes, no Brasil e na Europa, que afrontam minimamente a normalidade do sistema capitalista, de ascender e manter-se no poder parecem manifestações claras a esse respeito. Seria preciso admitir que a implementação de um projeto socialista autêntico requer um nível de confronto com os poderes dominantes que fere a ordem “democrática” vigente. Uma noção reformulada de democracia deveria, então, assumir como legítimo outros meios de deliberação política e um certo grau do uso da força (como faz o sistema quando protege seus interesses). Somente dessa perspectiva uma ruptura com a ordem seria possível sem passar necessariamente, isto é, dialeticamente, no seu contrário, numa patologia totalitária.

*Rodnei Nascimento é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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