Sacrifício e violência

Imagem: Oscar M
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Por RENATO ORTIZ*

Da violência colonial ao determinismo racista: a invenção do ‘bárbaro’ e as pseudociências do século XIX criaram narrativas implausíveis, mas eficazes, para justificar dominação, sacralizando a barbárie europeia e naturalizando o extermínio do Outro

1.

Dizem que Michel de Montaigne foi ao porto, creio que Rouen (há dúvidas a respeito), para ver os índios trazidos das Américas pelos navegadores europeus; conversou, inclusive, com um deles, não sei em que idioma. Sua curiosidade por esses seres estranhos era compreensível, fazia parte de uma realidade que os pensadores ocidentais desconheciam. A conquista das Américas – o termo é mais preciso do que “descobrimento” – deixa explícita a dimensão de dominação e rapina, exigia uma certa reformulação do pensamento da época.

A tese de Anthony Pagden em seu belo livro The fall of natural man é, neste sentido, interessante: ele argumenta que a noção de homem natural, legado da Antiguidade clássica, com o choque da “descoberta” do Outro, tornava-se complicada e difícil de se sustentar. Era preciso entender não mais a natureza humana em sua concepção abstrata, mas situar uma mesma espécie na diversidade de seus contextos sociais e culturais. De uma certa forma esse é o momento em que “inventa-se” o relativismo.

Os povos desses lugares distantes e desconhecidos são, assim, considerados pelos europeus como bestas, animais, e a expressão bárbaro cumpre a função cognitiva de discriminá-los. Porém, eles não podiam ser inteiramente assimilados à natureza. Caso isso ocorresse, enquanto seres irracionais seriam matéria inerte para a conversão ao cristianismo. Todos somos iguais perante Deus, embora a vida implique em desigualdade entre os habitantes do não-Paraíso.

O debate sobre os indígenas na América espanhola, particularmente entre Sepúlveda e Bartolomeu de las Casas, gira em torno disso: como aceitar esses “estranhos” dentro da fé cristã. Que tipo de humanidade constituiria essa espécie tão próxima do reino animal? A questão da escravidão, isto é, do direito dos colonizadores em aprisionar a mão de obra indígena, é, portanto, um ponto central da controvérsia, na qual os interesses econômicos encontravam-se travestidos em linguagem filosófica e religiosa. Sepúlveda, filósofo da religião e da ordem, invoca Aristóteles e seus escritos sobre a escravidão natural para justificar a necessidade e a legitimidade deste ato drástico e repressor; Las Casas, frade dominicano, toma partido dos dominados.

Um tema marca esta discussão: a noção de guerra justa. Os espanhóis teriam o direito de aprisionar e condenar os indígenas por que eles haviam pecado contra a ordem natural das coisas. O sacrifício humano surgia assim como evidência da ausência de retidão moral, desvio ético a ser corrigido pela repressão e o acolhimento do evangelho. A prática desses sacrifícios era comum em algumas culturas da mesoamérica durante o período pré-colonial, envolvia um conjunto de rituais e uma concepção mítica do universo.

Particularmente entre os astecas, eles faziam parte de toda uma cosmologia, na qual o sangue do sacrificado tinha a faculdade de renovar a vida em sociedade; eles continham ainda uma dimensão ideológica, servindo como justificativa para a expansão do império, pois muitos dos sacrificados eram prisioneiros de guerra. Saciar os deuses era um imperativo de ordem moral e política. Mas seria a violência sacrificial equivalente à violência colonial? Em que elas se distinguiriam?

Tzvetan Todorov em seu livro A conquista da América faz algumas observações interessantes a esse respeito. Ele considera o sacrifício humano como um homicídio religioso. A dimensão religiosa expressa-se na crença e nos ritos. Os deuses exigem dos homens uma atenção constante, o descuido e a desatenção possuiriam consequências nefastas; por sua vez, os seres humanos esperam das divindades uma recompensa pela realização de seus favores.

Há uma contrapartida entre o que é oferecido e o que se recebe. Existe ainda o aspecto ritual, como o sacrifício é realizado. O sacrificado é preparado com antecedência, purificado, e o ato sacrificial realiza-se em público, a coletividade expia a dor expressa na morte violenta daquele que é imolado aos deuses. O sacrifício é um ato coletivo, o resultado almejado recobre a comunidade como um todo.

Mas Tzvetan Todorov o qualifica também como um homicídio, isto é, um ato singular. Alguém é objeto da ação violenta, a destruição atinge a particularidade de um indivíduo específico. A ideia de homicídio sublinha a singularidade da morte. A violência colonial é de outra natureza, esconde-se através do segredo (os genocídios não são nunca confessados). Ela não é pública, como os enforcamentos e as decapitações da Europa desta época; realiza-se à distância, longe da metrópole, inflige-se a morte àqueles que são “inferiores”, isto é, percebidos como “aberrações”.

Os atos administrados aos indígenas são indeterminados, no extermínio em massa predomina a indiferença, o Outro não é um ser idiossincrático, todos, sendo bárbaros, devem ser aniquilados pelo poder colonizador. Creio que se pode acrescentar à reflexão de Tzvetan Todorov outra camada interpretativa dos fatos, para isso retomo a noção de sacrifício de Marcel Mauss.

O sacrifício é uma operação de consagração que incide sobre um objeto (plantas, animais ou seres humanos) para torna-lo simbolicamente distinto. Ele o retira, assim, do domínio comum e o sacraliza. Desta forma, é possível passar da esfera do profano à esfera do sagrado. O sacrifício instaura uma passagem, uma comunicação entre compartimentos separados e de natureza qualitativamente diferentes. O que se encontrava seccionado encontra-se ligado através do ritual. A violência colonial encerra-se sobre si mesma, pouco importa o Outro, inexiste comunicação entre a civilização e a barbárie. A violência é cega, indeterminada e certeira.

2.

Henry Thomas Buckle (1821-1862) foi um historiador menor de grande êxito em sua época. Dele, ninguém se recorda, mas é justamente esta ausência – ou melhor, o esquecimento que o abraça – que torna o seu caso exemplar. Foi um próspero homem de negócios cuja ambição era escrever uma robusta obra sobre a noção de civilização. Diletante, eurocêntrico, de certo modo encarnava a figura do senso comum do orgulho britânico. Seu livro História da civilização na Inglaterra, em dois volumes, traduzido para o português ainda no final do século XIX, é fruto de um saber enciclopédico e inócuo.

Henry Thomas Buckle almejava transformar a história numa disciplina equivalente às ciências da natureza; queria desvencilhar-se das interpretações metafísicas e das elucubrações filosóficas. Tinha certa obsessão pela estatística e pela geografia, acreditando ser possível compreender o destino humano por meio do estudo do clima, do solo, da alimentação e da natureza.

O comportamento dos indivíduos e dos povos seria modelado por esses fatores inelutáveis, os “agentes físicos” que os determinariam. Com afinco, dedicou-se a escrever uma “teoria” insensata da história, capaz de desvendar os segredos da civilização. Mas qual a relevância de se recuperar um pensamento esotérico desse tipo? A implausibilidade plausível do relato. Para a elite brasileira, ele era conveniente na interpretação de seu próprio destino: funcionava como um artifício crível para explicar o atraso de um país diante da modernidade europeia.

Esse era o retrato a ser esculpido (Sílvio Romero dedicou a Henry Thomas Buckle todo um capítulo da longa série História da literatura brasileira). No primeiro tomo do livro, quando o autor apresenta suas premissas conceituais e divaga sobre as virtudes da Antiguidade e da civilização na China ou na Índia, algumas páginas, poucas, referem-se ao Brasil. O arcabouço argumentativo no qual assentava seu raciocínio era simples: a civilização teria florescido nas sociedades que conheciam um solo húmido, que lhes propiciaria a acumulação da riqueza.

O Brasil surgia, assim, como um contraexemplo a seus argumentos: era um país coberto por uma vegetação e uma fauna vigorosa, nele manifestava-se uma “efusão e uma abundância vital”. Porém, seu povo era “ignorante e brutal”. Entre a potencialidade da civilização e a presença da barbárie havia um hiato a ser explicado.

A  resposta ao dilema proposto – um falso problema – Henry Thomas Buckle a encontrou nos ventos alísios. Ao atravessar o Atlântico, oriundos do leste, eles sopravam na costa oriental da América do Sul e, em seu trajeto, acumulavam uma grande quantidade de vapor, que posteriormente se condensava no solo brasileiro. Não havia outra possibilidade para o escoamento desses ventos fustigantes: eles não podiam avançar para oeste devido à gigantesca cadeia dos Andes. Isso provocava o surgimento de inundações sucessivas e destrutivas. A umidade era excessiva, nefasta; a “energia da natureza” impedia a realização humana. O atraso era fruto dessas circunstâncias climáticas adversas.

O que torna plausível a implausibilidade dos relatos? A questão não se coloca apenas em relação ao passado. De fato, as explicações cientificistas do século XIX sobre a superioridade ou a inferioridade das nações ou das raças representam bem esse tipo de interpretação do mundo. São inteiramente fantasiosas. Entretanto, o presente não se encontra imune à sua existência. Diz-se que a modernidade instaurou entre nós uma descrença generalizada; sua racionalidade seria uma espécie de desencantamento do mundo (no XIX, havia todo um debate sobre o fim da religião).

O diagnóstico repete-se muitas vezes na atualidade: a hipermodernidade narcísica dos indivíduos implicaria o descrédito dos valores coletivos. Mas a implausibilidade é resiliente, contradiz essa ideia ao desafiar as contradições impostas pela realidade. O que torna o relato plausível é a crença em sua autenticidade: sua falsidade, desde que percebida como verdadeira, é inabalável. Não se deve imaginar que esse tipo de explicação seja fruto da irracionalidade ou da incoerência; pelo contrário, ela repousa sobre a ordem racional do discurso.

Isso acontece com as teorias conspiratórias ou as interpretações racistas da inferioridade dos outros, de maneira sistematizada e ordenada elas “falam” do mundo. Mas ela pressupõe ainda outro aspecto: o contexto. Nele, se dá a confluência do relato com a inconsistência de sua veracidade. A crença, para ser convincente, precisa ser coletiva, não necessariamente de todos, mas de um grupo amplo de indivíduos. Dessa forma, ela se mineraliza, se solidifica, torna-se senso comum.

Pode-se inclusive dizer que a internet favorece esse tipo de situação. Em sua dimensão global, ela recorta o espaço digital em “bolhas” que se imaginam universais. A verdade das narrativas parciais afirma-se, assim, como indubitável, nutre-se de um ilusionismo que se sobrepõe ao real. Esse é o destino das fake news: a disputa em torno de sua implausibilidade é secundária diante de seu enunciado e do contexto. A crença molda a concepção de mundo, traz com ela o bálsamo dos ventos alísios.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]


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