Significar o tempo

Imagem: Kelly Jeanne Rebaixada, Deslocamento da imagem, 2016
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por FERNANDO RIOS*

Novos poemas

Com nossa ampulheta caleidoscópica
sem ponteiros paradeiros
como pensar vi/ver sofrer sorrir
                                                               tantos incógnitos momentos mundos?

para Danilo Santos de Miranda

para eu entrar no mundo
preciso primeiro entrar em mim

a casa o corpo a vida
o enigma o efêmero
o ser o ter o tempo

quem pode existir inteiro
senão afetuosamente repartido
multiplicado em alguém?

 

casa
a
casa o corpo a vida
há que se adentrar ao corpo
como se penetra na casa
como se penetra na vida

tenho pele músculos órgãos
sangue unhas cabelos ossos
e naturalmente animal vegetal
me adentro da cabeça aos pés

minha casa corpo vida
tem porta sala janela
cozinha quarto banheiro
à espera de penetrações

às vezes me prendo
pelo lado de fora
da casa ou do corpo?

 

alegres tristes sinas em alegorias
que euforias no dia a dia
que horrores desgostos desolações
melancolias depressões misantropias
minhas sinas desfilam diante de mim?

meu corpo minha casa
minha casa meu corpo
onde está minha vida
onde estão minhas filantropias?

entro e saio de mim
como entro e saio de minha casa?

a vida me espera me espreita
me denuncia
aos brados me convoca
para que desistir?

só se implode amorosamente com o outro
ou no mínimo em romaria

quantas portas e janelas
fecham e abrem a cada segundo
em meu corpo casa vida?

meu corpo animal encontrou uma caverna
e agora quem governa
é meu corpo líquido mineral físico químico

quantas sombras minha caverna absorve
quantas vezes vou e volto
afogado em lágrimas
embriagado em vinho?
o que dizer aos seres sombrios?

quantas vozes gritando norte sul
enlouquecem a rosa dos ventos
destroem o astrolábio
e me mandam à deriva?

casa navio ou casulo?
há que entrar e sair

nenhuma casa aconchega
se não tiver o calor
se não tiver o odor
que se transforma em memória
que registra alegria
acima de qualquer dor

mesmo no corpo que pausa
a casa caminha tênue
porque há corpo

porque corpo sem casa
                                                                  vagueia

 

há também os sem casa e seus corpos?
que corpos são esses?
como eles vagueiam indestinados?
são crianças jovens adultos velhos
tempos de todas idades
adulterados pela miséria pela fome
pela solidão pelo álcool pela droga
pela nossa cegueira
pela nossa hipocrisia
pelo nosso não olhar
pelo nosso anestésico não sentir

os sem casa não têm corpo?
são invisíveis para olhos sensíveis?
não são alcançados pelas mãos?
pela nossa emoção?
valem menos que um pet?
viajam pelas ruas sem destino?
concretizam o nosso desatino?

corpos e casas precisam-se
significam-se acrescentam-se
apascentam-se

corpos sem casas
entram em erupção

 

mágicos toques humanizam-se em solidariedades
casa e corpo são construídos nos detalhes
dedos trazem a luz de onde quer que ela venha
e acendem a casa

dedos tocam os corpos e se acendem
acendem peles iluminam almas
que perambulam eisteinianamente
sem qualquer fórmula
pelo tempo espaço
que fazem de um corpo
casa de alguém

corpo e casa
propriedades e proprietários
sabem de quem
e de cada um com seu cada qual

a casa é um útero
como o útero é uma casa
como o mar é um útero/casa
como um útero/casa é uma casa/útero
que nos convida ao viver
que nos impele ao viver
que nos convence ao viver

viver que vida, com quem?
em que humana solitária solidária idade?

quantas guerras serão necessárias
para que úteros corpos casas vidas
possam abraçar-se calorosas/mentes?

 

vida
entre céu e mar
voar
e segurar o pôr do sol com as mãos
e mergulhar no ar profundo
e construir no tempo grave acalanto
e desconstruir um tempo de intrusa fúria
e serenamente confundir os ponteiros da ampulheta
e sem cansaço
adormecer nos braços do amanhã
e acordar ao léu no todo segundo
(com um corpo ao lado?)
como quem acaba de nascer

e então apascentar a alcateia dor e ódio
(que sempre ronda o rebanho amar)
para saudar um ameno dia a dia
em serena sinfonia
que pavimenta o caminho
e embala bachianamente os passos

e então
entre céu terra mar
entre fogo água ar
caminhar cantar num verde azul
banhar-se num sol carinho
viver o dentro e o fora
com os calos da alma
e os jorros de glória
porque só assim o tempo não tem hora

 

enigma
há que beber fel e hidromel
para decifrar as nuvens

há que experimentar azia e ambrosia
para decifrar o vento

há que viver amor e horror
para decifrar paixão

e entre corpo e soco
e entre alma e arma

para que retirar o ar do outro?
para que extorquir a chama alheia?

se não acontecer lado a lado
inteira sempre vívida

sem corpo e corpo colados
nenhuma vida se semeia

 

efêmero
nada é mais eterno do que um efêmero
nem aion nem kairós nem cronos
para ser um efêmero verdadeiro íntegro explosivo

é possível mergulhar profundamente em um efêmero
é possível ouvir eternamente um efêmero
é possível abraçar infinitamente um efêmero

um bom efêmero toma conta de nós
cobre e aquece corpo e alma
um bom efêmero alimenta embriaga

efêmeros acontecem de dia ou de noite
costumam pousar em superfícies voláteis
e esperam o futuro pacientemente

quando você encontrar um efêmero
um grande e belo efêmero digno desse nome
devidamente tatuado no corpo e na alma

não o abandone porque ele costuma ser fugidio arredio
só precisa de um preciso terreno afeto
e de um abrangente e luminoso sonho sorriso

experimente pegar um efêmero pela mão
como quem segura a mão de um cego
como quem aquece e fortalece uma criança

efêmeros estão em toda parte
só o viver intensamente pode significá-los
e transformá-los em infinitos para sempre

 

ser ter tempo
tudo é muito pouco
nunca é para sempre

pouco é muito tudo
sempre é para nunca

viver jamais nunca pouco
viver tudo para sempre

e se tiver que desviver
que seja intensamente

mas há que deixar tatuado na vida
um corpo que se construiu com sorte engenho arte

um corpo que driblou a morte
plantando em terreno fértil sua eternidade

 

*Fernando Rios é jornalista, poeta e artista plástico.

 

 


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES