Por MÁRCIO MORETTO RIBEIRO*
Sem provas definitivas, o caso Almeida se tornou um marco na disputa entre o fortalecimento das denúncias e as acusações de uso político dessas alegações
Cinco meses após deixar o governo sob acusações de importunação sexual, o ex-ministro Silvio Almeida quebrou o silêncio em entrevista, negando categoricamente as acusações e afirmando que as denunciantes mentiram. Sem provas definitivas, o caso se tornou um marco na disputa entre o fortalecimento das denúncias e as acusações de uso político dessas alegações. A controvérsia reflete a crise das instituições liberais, onde a desconfiança na justiça formal tem levado julgamentos para as redes sociais, sem espaço para contraditório ou mediação.
As instituições liberais enfrentam uma crise de legitimidade que se manifesta de forma dupla: pelo avanço do populismo autoritário e pela crescente desconfiança nas vias institucionais de justiça. O primeiro fenômeno se alimenta da percepção de que o sistema político tradicional não responde aos anseios da população e, por isso, deve ser desmontado ou radicalmente reconfigurado.
Líderes populistas constroem sua legitimidade atacando tribunais, parlamentos e a imprensa, alegando que esses órgãos foram capturados por elites distantes dos “verdadeiros interesses do povo”. Em nome da soberania popular, minam freios e contrapesos, enfraquecem normas democráticas e concentram poder. Esse processo leva a uma erosão institucional progressiva, na qual a democracia formal se mantém, mas seus mecanismos se tornam disfuncionais, abrindo espaço para regimes autocráticos cada vez mais autoritários.
Se o populismo autoritário desqualifica as instituições para justificar sua tomada de poder, um outro fenômeno, mais associado a setores progressistas, rejeita essas mesmas instituições por vê-las como ineficazes na promoção da justiça social. A incapacidade do sistema em responder a questões como racismo, violência de gênero e desigualdade tem levado grupos historicamente marginalizados a buscar justiça por vias alternativas, frequentemente em arenas informais como a internet.
Essa desconfiança alimenta uma cultura de julgamento público, onde denúncias são tratadas como sentenças e a ideia de um processo justo é frequentemente descartada. O cancelamento e os linchamentos digitais emergem como tentativas de punição moral direta, contornando um sistema percebido como lento, ineficaz ou conivente com injustiças. O problema é que, ao deslocar o espaço do julgamento para fora das instituições, essas práticas corroem garantias fundamentais, como a presunção de inocência e o direito ao contraditório, gerando um ambiente de medo e vigilância permanente. Assim, enquanto o populismo destrói as instituições por dentro, a cultura do cancelamento as torna irrelevantes por fora.
As denúncias de assédio ocupam um lugar central nesse dilema, pois exemplificam de forma concreta a tensão entre a necessidade de justiça e a fragilidade dos caminhos institucionais. Se o sistema formal frequentemente falha em oferecer respostas eficazes, exigindo provas materiais difíceis de obter e submetendo as vítimas a processos desgastantes, a alternativa extra-institucional se fortalece como um espaço de reconhecimento e acolhimento.
Diante da impunidade estrutural e da morosidade da justiça, a denúncia pública surge como um mecanismo de enfrentamento, permitindo que vítimas que se sentem silenciadas possam reivindicar sua voz e visibilizar experiências antes ignoradas. Nesse sentido, muitas mulheres recorrem às redes sociais e à imprensa não por rejeição ao sistema legal, mas porque percebem que ele não lhes oferece garantias reais de reparação. O uso das redes sociais para denunciar assédio também pressiona por mudanças institucionais e redefine normas sociais, ampliando o reconhecimento da gravidade desses casos.
No entanto, a substituição dos mecanismos institucionais por julgamentos públicos não apenas enfraquece garantias fundamentais, mas também compromete a própria noção de justiça. O devido processo legal existe para estabelecer critérios objetivos de responsabilização, garantindo que a presunção de inocência e o direito ao contraditório sejam preservados antes que qualquer sanção seja aplicada.
Quando denúncias são julgadas no espaço público digital, essa estrutura é subvertida: a acusação passa a ser tratada como prova, e a defesa se torna praticamente inviável, pois qualquer tentativa de contestação pode ser interpretada como um ataque à vítima. Esse deslocamento gera uma inversão da carga da prova, rompendo com o princípio fundamental de que cabe ao acusador demonstrar a culpa do acusado, e não o contrário. A justiça, nesse contexto, deixa de se basear na produção de provas e na análise dos fatos e passa a operar no campo da moralidade pública, onde a penalidade não decorre de um processo formal, mas da mobilização social e da indignação coletiva.
A entrevista de Silvio Almeida introduz um elemento incomum em casos de denúncias de assédio: a ausência de ambiguidades. Em muitos relatos desse tipo, há espaço para diferentes interpretações, pois a percepção dos envolvidos pode divergir, especialmente em interações marcadas por dinâmicas de poder e subjetividade. Há casos em que a linha entre um comportamento inadequado e uma conduta criminosa não é evidente, permitindo discussões sobre contexto e intenção. No entanto, Silvio Almeida não admite essa possibilidade.
Sua posição na entrevista é categórica: ele nega veementemente as acusações, classificando-as como absurdas e inaceitáveis, e sugere que foram resultado de intrigas políticas. Não há margem para um mal-entendido ou uma diferença de leitura dos fatos. Com isso, o caso se coloca em termos binários e irreconciliáveis: ou ele está mentindo, ou as denunciantes estão mentindo. A disputa não é sobre percepção ou interpretação, mas sobre a própria realidade dos fatos.
Sem provas definitivas, cada lado seguirá acreditando na narrativa que já defendia, e a consequência disso é a erosão da confiança nas instituições e nos movimentos sociais. Se o ex-ministro estiver mentindo, está enfraquecendo o caminho institucional e dando razão àqueles que buscam justiça fora dele. Isso contribui para a erosão da confiança nas instituições formais e reforça a ideia de que o julgamento público pode oferecer alguma forma de reparação, acelerando um processo de descrédito que mina as garantias fundamentais da justiça.
Se as denunciantes estiverem mentindo, um dos pilares mais importantes da luta feminista – o direito de mulheres serem ouvidas e acreditadas – é colocado em xeque, reforçando a reação anti-identitária e a desconfiança sobre futuras denúncias legítimas. Diante da ausência de evidências conclusivas, a sociedade se divide em trincheiras irreconciliáveis: para um lado, ele será mais um homem poderoso escapando impune; para o outro, um exemplo da perseguição promovida por uma cultura punitivista.
O resultado é um ciclo de deslegitimação mútua, no qual feministas veem a justiça como estruturalmente falha e seus críticos veem o feminismo como um projeto autoritário. Se há uma certeza, é que todos perdem – e a democracia, mais uma vez, sai enfraquecida.
*Márcio Moretto Ribeiro é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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