Silvio de Almeida e Anielle Franco

Imagem: Cosmin Paduraru
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MICHEL MONTEZUMA*

Na política não há dilema, há custo

A esquerda brasileira, principalmente a comunidade negra letrada que nela está localizada com maior incidência, porém de forma fragmentada, enfrenta uma situação difícil. No cerne das questões com os quais lidam, com legítima preocupação, estão dois notáveis desse bloco político e grupo racial: Silvio de Almeida, acusado de assédio, e Anielle Franco, uma das possíveis vítimas.

Entre o ministro dos direitos humanos e a ministra da igualdade racial, ambos intelectuais negros, o bloco de esquerda se divide e, por conseguinte, a comunidade negra, fragmentada devido a sua frágil autonomia política. Debatem como se a métrica da defesa de um lado ou de outro, antecipada e por isso equivocada, pudesse ser determinada através de uma competição de popularidade; avaliação de currículo político e acadêmico; em última instância, do valor desses quadros para o campo progressista. E esse dilema é falso.

Está assentado numa crítica por vezes mais ritmada pela temporalidade das redes, do que pela devida reflexão estruturada num cálculo político mais comedido em seu exercício de diferenciação entre a narrativa e o fato. Na pressa, ingenuidade ou excessivo predomínio de uma visão subjetiva das questões relacionadas ao poder, alguns acreditam que é possível sanear de imediato a situação, salvando acusado ou vítima antes mesmo que se tenha conhecimento pleno dos fatos e suas implicações.

Fazem isso, porque se sentem humilhados, especialmente os negros letrados com algum grau de justeza porque compartilham predicativos de raça, classe e ofício, tanto com o acusado quanto a vítima. Por isso querem já apresentar resoluções para um assunto que lhes constrange, incomoda intimamente, porque se tratam de sujeitos que lhes representam, que são notáveis, supostamente entre os melhores daquilo que podemos prover enquanto comunidade.

Inexiste, talvez, nessas reações ao caso Silvio de Almeida e Anielle Franco, a consciência básica de uma das premissas do cálculo e da ação política dele derivada: Não existe dilemas nos assuntos que atravessam o poder, existem custos. E ele, que pode ser grande ou pequeno, é certamente inevitável.

Noutras palavras, é impossível salvar acusado ou vítima apenas no plano das narrativas políticas, porque nessa instância superficial da realidade, pois carente da materialidade dos fatos, o dano à imagem pública de ambos já foi feito. E ele é grande em seu potencial de nos humilhar publicamente, nos impondo se consolidado uma derrota histórica naquilo que diz respeito a representatividade negra no executivo federal.

Sendo assim, quem devemos defender? A resposta para essa pergunta não está majoritariamente localizada trajetória pretérita dos sujeitos políticos envolvidos. Ela está em outras questões norteadoras da nossa ação como classe social e, por conseguinte, grupo racial. Questionamentos que sempre devemos retomar, quando nos enfrentamos com essas situações: Que tipo de sociedade defendemos? Quem são os atores políticos e classes sociais que podem nos organizar na tarefa de transformação da ordem social?

Tão logo alcançamos essas respostas, de imediato vamos saber que a complacência com qualquer forma de violência contra a mulher é inadmissível, independentemente da posição política do acusado na configuração do campo progressista. Assim, como saberemos e defenderemos também, que toda movimentação para a criminalização do homem negro que não se dê por meio dos requisitos do devido, e incontornável, processo legal, onde é garantindo-lhe o direito de defender-se, é produto do racismo estrutural que visa preservar uma forma de organização social do poder racista da qual nossa comunidade, tão necessitada de autonomia e maturidade política, estará perpetuadamente alienada dos espaços político-institucionais onde as decisões sobre os rumos do país são tomadas. Em termos objetivos, nossa defesa deve partir sempre do projeto de sociedade que defendemos, nosso cálculo deve considerar os custos para a classe e grupo racial através de uma visão sistemática, fundamentada na síntese, do que está em jogo para nós na luta política.

Sem a reflexão necessária sobre a posição enquanto classe, grupo racial e bloco político, nos comportaremos em relação a crônica política a partir dos interesses de outros setores que não corporificam histórica, econômica e culturalmente o que fomos, quem somos e podemos ser na História desse país. Não perceberemos que o custo da nossa escolha política é inevitável, não pode ser saneado, pode ser enfrentado com justeza entre a teoria, prática e a moral que constituí nossa identidade enquanto grupo.

E justamente por isso, se lidarmos com essas questões de maneira recortada, caindo em falsos dilemas, iremos tomar posições que aprofundaram ainda mais as divisões em uma comunidade política já bastante fragmentada.

*Michel Montezuma é doutorando em sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Mísseis sobre Israelmíssel 07/10/2024 Por MÁRIO MAESTRI: Uma chuva de cintilantes mísseis iranianos cortando os céus de Israel, passando pelo mítico Domo de Ferro, como a farinha por peneira
  • Pablo Marçal na mente de um jovem negroMente 04/10/2024 Por SERGIO GODOY: Crônica de uma corrida de Uber
  • A poesia no tempo dos incêndios no céucultura quadro branco 04/10/2024 Por GUILHERME RODRIGUES: Considerações sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade
  • Annie Ernaux e a fotografiaannateresa fabris 2024 04/10/2024 Por ANNATERESA FABRIS: Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Mar mortocultura cão 29/09/2024 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Comentário sobre o livro de Jorge Amado
  • Ultrapassando os limites constitucionaissouto-maior_edited 06/10/2024 Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Luís Roberto Barroso leva adiante a sua verdadeira Cruzada, destinada a atender a eterna demanda do setor empresarial de eliminação do custo social da exploração do trabalho
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Profetas do enganobola de cristal 04/10/2024 Por SAMIR GANDESHA: A massa dos frustrados e o “pequeno-grande homem”
  • Fredric Jameson — maior que a vidafrederic 05/10/2024 Por SLAVOJ ŽIŽEK: Jameson foi o derradeiro marxista ocidental, que atravessou destemidamente os opostos definidores de nosso espaço ideológico

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES