Comentário sobre a autobiografia recém lançada de Edward Snowden
Por Flávio Aguiar*
Preâmbulo
Em seu livro Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal,
compilado a partir da série de reportagens para a revista The New Yorker sobre o julgamento do criminoso de guerra, Hanna
Arendt desmonta a tese dos procuradores israelenses, segundo a qual ele
aparecia como um sanguinário monstro antissemita. Em seu lugar, ela descerra a
imagem de um zeloso burocrata, cônscio de bem executar seus deveres, incapaz de
raciocinar sobre as ordens que recebe, capaz apenas de obedecê-las
escrupulosamente. Em outras palavras, Hanna Arendt procura demonstrar que, se
bem treinado na tarefa de não fazer perguntas sobre a natureza do que faz,
qualquer um tem o potencial de tornar-se um Eichmann.
De certo modo, este
seria, em outro contexto e em outro século, o destino de Edward Snowden, que se
autodescreve – em Permanent Record
(Londres: MacMIllan, 2019) – como “um espião para a CIA e a NSA (National
Security Agency dos Estados Unidos), apenas mais um jovem tecnólogo destinado a
construir o que tinha certeza de que seria um mundo melhor”.
O livro conta a
história deste “jovem tecnólogo”, começando por explicar por que razões ele se
imbuiu deste papel de praticar a espionagem que julgava ser benéfica para seu
país e para o mundo, para depois explicar o que o levou a desviar-se desta rota
e denunciar o que hoje acha que é a mais ampla e ilegal máquina de vigiar os
cidadãos do planeta. Este desvio fê-lo tornar-se, ao lado de Julian Assange, um
dos mais conhecidos e perseguidos whistleblowers
deste começo de século XXI.
Como Assange, ao
enveredar por esta rota desviante, Snowden pensava refugiar-se no Equador de
Rafael Correa. Por tramas do destino e de seus perseguidores, ele fugiu a este
destino, acabando – até o momento – por tornar-se um asilado político na Rússia
de Vladimir Putin. Hoje pode-se considerar uma “sorte”, digamos, que sua viagem
tenha sido interrompida em Moscou pela decisão do governo norte-americano de
cancelar seu passaporte quando ele viajava de Hong Kong para a Rússia, como
primeira escala da rota Hong-Kong/Quito.
Não fosse isto,
hoje ele estaria em apuros sob o governo de Lenin Moreno, nesta América Latina
que volta a ser assombrada e devastada por golpes de Estado e atos traiçoeiros
incentivados, apoiados e tramados a partir dos Estados Unidos.
Como tudo começou
O livro de Snowden
tem um tom de “autobiografia precoce”, a descrição de uma viagem que ainda não
terminou, em parte porque seu autor tem potencialmente muitos anos de vida pela
frente, em parte porque ela foi interrompida pela cassação de seu passaporte, o
que o condenou a ficar retido num limbo: o exílio inesperado em Moscou.
A narrativa começa
com uma espécie de genealogia familiar do autor, sublinhando a herança que
recebeu de seus antepassados, um deles vindo a bordo do legendário navio Mayflower, que trouxe os primeiros
colonos ingleses – puritanos de religião – para fundarem e se estabelecerem na
Colônia de Plymouth, no hoje estado de Massachussets, Nova Inglaterra.
Outro foi um herói
da Guerra de Independência, no século XVIII. Ainda outros lutaram em ambos os
lados durante a Guerra de Secessão, no século XVIII. Finalmente houve aqueles
que, como o pai do jovem Snowden, pertenceram ao serviço da Guarda Costeira dos
Estados Unidos, no Oceano Atlântico. Tudo isto situa o jovem nascido em 1983,
no estado da Carolina do Norte, como o descendente de uma certa “aristocracia”
histórica norte-americana, com um forte pendor para combinar uma vida de ação
com atividades intelectuais.
Nascido ao final do
século XX, Snowden cresceu entre computadores: eles faziam parte de sua paisagem
assim como o telefone já fazia parte da paisagem de muitas crianças nascidas
logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Foi com esta bagagem que ele se
aproximou da “Comunidade de Inteligência” dos Estados Unidos, gravitando em
torno da National Security Agency e
da CIA no desempenho de várias funções, muitas vezes terceirizadas, embora ele
quase sempre trabalhasse em instituições governamentais.
Segundo conta, o
fator decisivo desta aproximação foi um impulso patriótico nele despertado após
os atentados do 11 de setembro de 2001. Os ataques de três aviões sequestrados
contra as Torres Gêmeas de Nova Iorque e o Pentágono em Washington (um quarto avião
que provavelmente se dirigia à Casa Branca caiu segundo a versão oficial) ou
foi abatido no meio do caminho) pegaram de surpresa todos os serviços norte-americanos
de espionagem e contraespionagem, e provocaram um terremoto nas organizações do
setor, incluindo aí a CIA e a NSA.
A partir dali houve
um esforço concentrado de informatização dos serviços, e foi nessa onda que
Snowden aderiu voluntariamente ao sistema, como ele mesmo enfatiza, por
acreditar que estaria pondo suas capacidades a serviço da construção de um
mundo mais seguro.
Uma carreira vertiginosa
Snowden aceitou
trabalhar para a CIA em 2006, depois de um acidente em que quebrou duas pernas e
o alijou do serviço militar. Até meados de 2013, quando abandonou a “Comunidade
de Inteligência”, para denunciar o que via como uma flagrante violação dos
direitos humanos e da Constituição norte-americana, Snowden exerceu funções de
ponta nos Estados Unidos, na Europa, no Japão. Ao final de seu engajamento
estava no Havaí. Tornara-se um dos agentes mais treinados e capazes em todo o
sistema de computação e inteligência da espionagem e contraespionagem de seu
país.
Foi nesta condição
que testemunhou o nascimento e crescimento do mais completo sistema de
vigilância virtual do mundo, com a capacidade de acessar qualquer processo de
comunicação no planeta ou qualquer operação eletrônica, desde que feita num
aparelho com acesso à internet, de modo totalmente insuspeito por parte de seus
usuários. Foi por isto, que ele considerou um abuso de autoridade, que ele
decidiu desertar e tornar-se um dos whistleblowers
mais perseguidos do mundo.
A narrativa do
livro é muito saborosa e tem elementos de suspense, embora já de saída quem a
leia conheça seu desfecho. Snowden descreve em detalhes as balizas operacionais
deste sistema pantagruélico de devorar e armazenar informações. Começa pela
constatação do recrutamento preferencial de jovens como ele, ou até mais moços
ainda. Objetivo: lhes formatar os espíritos, fascinando-os com os poderes que
adquirem, em todos os sentidos. Graças à arte de bisbilhotar a vida alheia
podem espionar todos e tudo: do telefone da chanceler Angela Merkel ou da
presidenta Dilma Rousseff às atividades privadas de suas amantes ou amadas
(trata-se de um mundo fortemente masculino, apesar das exceções).
O sistema recorre
frequentemente à terceirização e nisto, além de razões funcionais, há
motivações financeiras: quem terceiriza ganha um percentual, pago pelo governo,
sobre o salário do contratado no processo. Isto explica, por exemplo, por que
Snowden ao pedir numa de suas contratações um salário de 50 mil dólares por
ano, recebeu uma contraoferta de 60 mil. Ao final precoce de sua carreira,
ganhava algo como 120 mil por ano.
O alcance do sistema
As operações
cobrem, potencialmente, o mundo inteiro, e não há quase nada que possa detê-las.
Segundo ele, a única segurança que existe contra esta espionagem é a
encriptação de arquivos e mensagens através de códigos extremamente
sofisticados. Ele mesmo declara que encrostou seus códigos através do uso de
meta-códigos, que ele agora destruiu. Aquilo que melhor “engana” os usuários da
internet e conexões, como a atual telefonia móvel ou não, é a pequena tecla que
indica: “delete”. Na verdade, esse mundo segue uma extensão e glosa da máxima
da química de Lavoisier: nele nada se perde, tudo se arquiva.
Por aí se vê o amadorismo
e a inconsistência da argumentação por parte dos procuradores e juízes da Lava Jato
brasileira, alegando que deletaram suas mensagens escritas ou orais de seus
celulares e outros aparelhos e que, portanto, as denúncias da Vaza Jato não
podem ter sua autenticidade comprovada.
Snowden expõe que a
tecla “delete” simplesmente esconde do usuário o que ele pensa estar apagando,
mas que na verdade fica arquivado, primeiro, em algum lugar de seu próprio
aparelho, e em segundo lugar nas nuvens dos servidores que ele contata.
Portanto, tudo da Lava Jato está arquivado no servidor da Telegram ou outro
servidor e ali fica à disposição de quem quiser e puder (ter capacitação para
tanto) buscar as informações. O operador desta busca nem precisa “invadir” os
telefones ou outros aparelhos que foram usados: basta, de alguma forma, ter
acesso aos arquivos do servidor utilizado.
Esta, aliás, é uma
das razões alegadas pela NSA para justificar em juízo suas operações secretas.
Em processo levado à Suprema Corte pela American
Civil Liberties Union (ACLU), a NSA argumentou que ao acessar um servidor
para arquivar ou trocar mensagens, o usuário estaria automaticamente abrindo
mão do seu direito à privacidade. Por isto, para exercer sua vigilância total e
permanente, as agencias norte-americanas de espionagem contraespionagem não
necessitariam de ordem judicial expressa e poderiam fazê-lo secretamente. A
argumentação foi aceita por 5 votos conservadores contra 4 liberais.
Durante muito tempo
a argumentação pública da NSA concentrou-se em negar a existência deste sistema
de vigilância universal e perpétua. Depois das denúncias de Snowden isto
tornou-se impossível. O esforço oficial norte-americano hoje se concentra em
desacredita-lo e conte-lo por meio de processos judiciais com base na “Lei
Sobre Espionagem”. Por pressão do governo norte-americano o editor de seu livro
se comprometeu a não remeter qualquer ganho de direito autoral ao autor pelo
menos até abril do ano que vem, porque, argumenta a NSA, com a publicação
Snowden violou o compromisso de sigilo assinado ao aderir ao serviço.
Snowden
contraargumenta: a Constituição dos Estados Unidos, redigida no século XVIII,
garante o direito à privacidade dos cidadãos perante o Estado – salvo em
condição de fragrante delito e autorização judicial para tanto – o que inclui
explicitamente os documentos que ele possua. E no século XXI a noção de
“documentos” abrange os arquivos virtuais e de comunicação dos usuários.
Mutatis mutandis, a argumentação da NSA permitiria a conclusão análoga de que,
ao depositar seu dinheiro num banco, o correntista estaria automaticamente
abrindo mão de seu direito ao sigilo bancário.
Outra face da
argumentação da NSA, também copiada pelos próceres da Lava-Jato e proximidades,
é a de que informações obtidas através de hackeamentos ou de outra forma
considerada ilegal não poderiam ser utilizadas em juízo.
Contra-argumento de
Snowden: a tradição jurídica norte-americana estabelece, desde o século XVIII,
que quem descobre abuso de autoridade por parte de agentes do Estado têm não só
o direito, mas o dever de denunciar a pratica ilegal. Por isto ele não se
arrepende do que fez.
Ao deixar a
presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 1961, Dwight Eisenhower denunciou
a existência de um “complexo militar-industrial” que seria o poder de fato por
detrás do poder governamental em seu país. A denúncia foi largamente estudada
pelo jornalista Fred J. Cook, em O Estado
militarista (Civilização Brasileira, 1965).
O livro de Snowden
mostra que agora, por detrás de tudo, se encontra um complexo “High Tech –
Espionagem e Inteligência”, com ramificações internacionais, embora tenha sede
primordialmente nos Estados Unidos, que ganhou autonomia quase total em relação
a governos. Snowden vai ao ponto de argumentar que a principal função hoje das
legações diplomáticas é servirem de fachada para operações de espionagem e
contraespionagem.
Esta autonomia já
existia antes, mas o que acontece agora é que o mundo virtual potenciou seu
alcance, poder e independência. O primeiro suporte internacional desta máquina
operadora construída a partir dos Estados Unidos é a chamada “Aliança dos Cinco
Olhos”, constituída pelos servi dos de inteligência dos Estados Unidos, do Reino
Unido, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia.
Porém a rede de
espionagem e assemelhados se estende a serviços de outros países, como atesta,
novamente, os vínculos da Operação Lava Jato com as operações de inteligência
dos Estados Unidos. Além disto, os processos de terceirização criaram uma rede
que entrelaça agências governamentais e empresas privadas, além de se estender
também por centros de pesquisa de informática e think thanks e redes semelhantes devem existir a partir da Rússia e
da China, por exemplo.
A impressão que o
livro nos deixa é a que nos leva a comparar o ex-agente Snowden a uma famosa
ilustração atribuída por alguns aos séculos XV ou XVI, e por outros a algum
desenhista art-nouveau dos fins do XIX ou começo do XX, em que um jovem
ultrapassa, deslumbrado, o mundo das aparências e consegue ver, por detrás de
tudo, a verdadeira “máquina do mundo”. Só que o jovem Snowden, que estava
deslumbrado antes, descobriu-se, na passagem, apavorado.
O estado da arte
Depois de sua
“fuga” sigilosa do Havaí, onde trabalhava na ocasião, para Hong Kong (nem a família
nem a namorada ficaram sabendo), onde deu as entrevistas para Glenn Greenwald,
Laura Poitras e para Ewen MacAskill, Snowden conseguiu literalmente “evadir-se”
do assédio de outros jornalistas e potencialmente das autoridades locais graças
a uma rede de solidariedade que envolveu até refugiados de outros países,
habitantes de bairros periféricos e pobres da cidade.
Conseguiu um
salvo-conduto dado pelo cônsul do Equador em Londres, graças à colaboração de
Julian Assange e de outra jornalista do Wiki Leaks (Sarah Harrison), o que lhe
permitiu deixar Hong Kong e chegar a Moscou. Hoje leva uma vida discreta, na
companhia da namorada Lindsay. Evita aparições públicas, e diz que com
frequência usa um cachecol e um chapéu para ocultar o rosto. Para conceder entrevistas,
marca encontros em hotéis.
É decididamente o
preço que paga por sua coragem e audácia, com que honrou os princípios de sua
consciência. À guisa de conclusão desta resenha, podemos dizer que um dos
graves problemas que enfrentamos diariamente é o de estarmos, em termos de
administração pública, privada e de serviços de informação na mídia ou além
dela, cercados por hordas de Eichmanns, onde os Snowdens permanecem sendo as
bravas e honrosas exceções.
*Flávio Aguiar, escritor e jornalista, é professor aposentado da área de literatura brasileira da USP.
