Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*
Concentração de renda e poder: será o Brasil capaz de aprender com Piketty, Sandel e a doutrina social da Igreja para romper seus ciclos históricos de desigualdade?
1.
Em um exitoso diálogo, realizado em maio de 2024, na Escola de Economia de Paris, entre o professor de história da economia Thomas Piketty e o professor de filosofia política Michael J. Sandel, publicado sob o título de Igualdade: significado e importância (Civilização Brasileira) os leitores têm a oportunidade de ampliar sua percepção sobre o significado e a importância da igualdade, um dos pilares da democracia moderna, tema fundamental para o público brasileiro, afinal vivemos num país entre os mais desiguais do planeta, cujo histórico de concentração de renda e riqueza não apenas persiste, mas restringe as oportunidades de vida e penaliza a maioria de sua população.
Uma das noções desenvolvidas no livro são as distâncias sociais. No Brasil, mesmo com décadas de crescimento econômico, as elites continuam a deter a quase totalidade do “bolo”, isto é, os espaços de decisão política, os resultados (lucros) do trabalho concreto produzido socialmente, as melhores oportunidades de educação e acesso à saúde, juntamente com o controle sobre a narrativa pública.
A desigualdade (extrema) não apenas limita o alcance a bens essenciais, mas mina a própria noção de democracia ao concentrar poder e influência em um pequeno grupo, como tão bem destacou a Laura Carvalho no prefácio do livro.
Michael J. Sandel e Thomas Piketty consideram que a desigualdade não é apenas um problema econômico, é também de dignidade. Sociedades desiguais restringem a autonomia dos indivíduos, perpetuando relações de dependência e submissão. A dignidade está diretamente ligada à possibilidade de participação plena na sociedade, o que se torna impossível quando poucos controlam as oportunidades e recursos disponíveis.
Thomas Piketty apresenta-se como um otimista quanto ao tema justificando que no mundo inteiro, a longo prazo, tem ocorrido um movimento rumo a uma igualdade maior. Tal movimento é decorrente da mobilização social e de uma forte e extraordinária exigência política visando à igualdade de direito a acesso ao que as pessoas percebem como bens fundamentais.
O apetite pela participação democrática, na opinião do autor, vem conduzindo esse movimento rumo a uma maior igualdade a longo prazo. Para o economista, o marco localiza-se no final do século XVIII com a Revolução Francesa com a extinção dos privilégios da aristocracia, em seguida, com a abolição da escravatura e o surgimento dos movimentos operários.
2.
Neste sentido, achamos importante destacar, nesse contexto de eleição de um novo Chefe da Igreja Católica que, em 15 de maio de 1891, final do século XIX, o Papa Leão XIII publicava um importante documento: a Encíclica Rerum Novarum – sobre a condição dos operários.
Para aquele Pontífice, era necessário vir em auxílio dos homens da classe operária, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida, isolados e sem defesa, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada, de insaciável ambição.
A tudo isso, acentua Leão XIII, deve acrescentar-se o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito (monopólio dos meios de produção e do dinheiro), que se tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e de opulentos, que impõe assim um jugo quase servil à imensa multidão de proletários.
A Encíclica Rerum Novarum é considerada um marco no ensinamento social da Igreja Católica, uma espécie de inflexão copernicana diante das coisas novas no campo político e econômico a oprimir os trabalhadores e trabalhadoras do mundo.
Desde então, vários outros documentos papais buscaram repercutir a mensagem leonina: Quadragesimo Anno (1931), Pio XI aprofundou a reflexão sobre a ordem econômica e social; Mater et Magistra (1961), João XXIII destacou a necessidade de uma renovação da doutrina social da Igreja Católica, adaptando-se às mudanças do mundo moderno; Octogesima Adveniens (1971), Paulo VI aborda os desafios sociais contemporâneos; Laborem Exercens (1981), João Paulo II assevera a primazia do trabalho sobre o capital, destacando que sobre toda a propriedade privada reside uma hipoteca social; Centesimus Annus (1991), novamente João Paulo II reflete sobre o impacto da Rerum Novarum para o engajamento social concreto dos católicos no tempo presente.
3.
Neste sábado, 10 de maio, o Papa recém-eleito Leão XIV encontrou-se pela primeira vez com os membros do Colégio Cardinalício. Destacamos dois aspectos do discurso oficial do pontífice nesta audiência.
Primeiramente, sobre as razões que o levaram a escolher o nome Leão XIV, a principal deve-se ao fato de Leão XIII, com a histórica Encíclica Rerum Novarum, haver abordado a questão operária no contexto da primeira grande revolução industrial. E hoje, continua o Papa, a Igreja busca oferecer a riqueza do seu ensinamento social para responder a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho.
O segundo importante aspecto a ser destacado por Leão XIV reporta-se ao Papa Francisco, o qual atualizou magistralmente os conteúdos do Concílio Vaticano II em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, da qual ressaltam-se: o regresso ao primado de Cristo no anúncio; a conversão missionária de toda a comunidade católica; o crescimento na colegialidade e sinodalidade; a atenção ao sensus fidei (a capacidade de os fiéis perceberem e discernirem a verdade da fé cristã), especialmente nas formas mais próprias e inclusivas, como a piedade popular; cuidado amoroso com os marginalizados e excluídos; diálogo corajoso e confiante com o mundo contemporâneo nas sua várias componentes e realidades.
Sobre os desafios contemporâneos, retornando ao livro, Thomas Piketty relembra que quando os sociais-democratas suecos chegaram ao poder em 1945, levaram os operários a ocupar cargos no ministério. Até a Primeira Guerra Mundial, a Suécia era um país onde apenas os 20% mais ricos da população masculina podiam votar; e nesse grupo, cada indivíduo podia deter entre 1 a 100 votos, dependendo de suas posses. Mas em eleições municipais, não havia teto. Em dezenas de municípios suecos apenas um único indivíduo podia ter mais de 50% dos votos, ou seja, um perfeito ditador.
Graças ao movimento operário com seus sindicatos, os sociais-democratas assumiram o poder na Suécia, mudando completamente o cenário, colocando a capacidade estatal a serviço de um projeto completamente diferente, no qual em vez de haver privilégios de concentração de votos em função da renda e da riqueza dos indivíduos, foi adotada uma tabela de imposto progressivo alto, de acordo com o valor da renda e da riqueza, como o Brasil, timidamente, está tentando adotar.
O surgimento do Estado Social, em termos históricos, segundo Thomas Piketty, só foi possível graças ao crescimento dos sindicatos de trabalhadores e, também, graças ao grande aumento das tributações fortemente progressivas, com enorme compressão das disparidades salariais, de renda, de remuneração e de riqueza.
*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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