Sobre a criação de conhecimentos científicos

Imagem: G. Cortez
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por IVAN DA COSTA MARQUES*

Os conhecimentos científicos amalgamados à empresa imperial do Ocidente, que coloniza o Brasil, afastam das/os brasileiras/os possíveis outras agendas

Uma vez ocidentalmente bem escolarizados, introjetamos o modo de ser moderno (euro-americano) e somos capazes de imaginar, descrever, conhecer, pesquisar, explicar e entender um universo habitado por entidades que classificamos dizendo serem minerais, vegetais, animais, práticas, teorias, noções, fatos, ficções, usos, vínculos, ideias, sonhos, matéria, espaço, tempo, objetos e sujeitos. Mas, especialmente desde a segunda metade do século XX, os estudos, as discussões, as análises e as problematizações dessa classificação e do mundo moderno que ela gera ensejaram mudanças nas disciplinas da história, sociologia, antropologia e filosofia das ciências e das tecnologias, e até nas próprias ciências ditas naturais. Essas mudanças, academicamente configuradas no campo dos Science Studies, foram avistadas no Brasil no final do século XX como parte dos chamados “Estudos CTS”, expressão que pode ser lida como Estudos de Ciências-Tecnologias-Sociedades.

Os Estudos CTS propõem que todas aquelas entidades do universo classificado acima, inclusive a própria classificação, são efeitos de redes de “justaposições provisionais de elementos heterogêneos”. Essa proposição tem a desenvoltura filosófica e a radicalidade ontológica de Jorge Luis Borges quando ele destaca que “nas remotas páginas de certa enciclopédia chinesa intitulada Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos consta que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis (k) desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar o vaso, (n) que de longe parecem moscas” e arremata que, “notoriamente, não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjetural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo.” (Borges, 1952/2007)

Michel Foucault reproduziu a ousadia de Borges no Prefácio de sua famosa e muitíssimo influente As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. (Foucault, 1966/2000) É justamente a partir dessa radicalidade ontológica que os Estudos CTS e Paulo Freire podem ser provisionalmente justapostos como elementos heterogêneos para trazer contribuições inesperadas e cruciais para a criação de conhecimentos científicos nos Brasis. Essa é a proposta-aposta desse breve texto.

Uma primeira contribuição dos Estudos CTS é questionar o grande divisor no edifício dos saberes modernos euro-americanos: a bifurcação / separação kantiana[i] entre os conhecimentos científicos sobre a Natureza (o mundo das coisas-em-si) e aqueles sobre a Sociedade (o mundo dos humanos-entre-si). Como é sabido, os Estudos CTS mostraram que essa bifurcação não está desde o início no processo de criação (observação, pesquisa, experimentação) de um conhecimento científico, mas é uma espécie de acabamento epistemológico do processo ontológico que cria esse conhecimento, isto é, a estabilização sempre provisória da rede que configura esse conhecimento como uma entidade, seja ela um objeto, fato, teoria ou sujeito.[ii]

Especialmente, os objetos e fatos científicos deixam de ser vistos como entidades puras, que sempre estiveram existentes na Natureza, criadas por figuras demiúrgicas tais Galileu, Newton, Lavoisier, Pasteur, habitantes de mundo onde “a ciência” é simploriamente vista como universal, neutra e objetiva – uma visão hoje insustentável que o sociólogo americano Robert K. Merton idealizou em meados do século XX. Desfeita a separação ontológica entre Natureza (o mundo incorruptível das coisas-em-si) e a Sociedade (o mundo corruptível dos homens-entre-si), os brasileiros podem enxergar os “conhecimentos científicos” que aqui chegam como resultantes de processos em que trabalham não figuras demiúrgicas, mas cientistas de carne e osso.

E daí resulta algo especialmente importante para a periferia do Ocidente em que os Brasis nos encontramos: construídos por atores humanos, como propõem os Estudos CTS, os conhecimentos científicos trazem com eles, muitas vezes sub-repticiamente, interesses, valores e afetos dominantes em suas origens. Ou seja, eles chegam aqui amalgamados à empresa imperial do Ocidente (the West and the rest) que coloniza o Brasil e afasta das/os brasileiras/os as possíveis outras agendas.

É claro que isso não implica a rejeição imediata ou completa de todos os conhecimentos que nos chegam do exterior, mas torna legítima, digna e não “irracional”, essa espantosa nova liberdade de escolha entre aceitar, resistir ou rejeitar não só os fatos, especialmente os fatos científicos, mas também as agendas que de lá vêm ou são aqui produzidas por agentes colonizadores. Esse “espanto” expande os espaços para a criação de saberes nos Brasis, inclusive de conhecimentos científicos.

Outra contribuição dos Estudos CTS é terem evidenciado a pluralidade, a multiplicidade e os limites dos referenciais constitutivos da validade de todo conhecimento. Eles nos dizem que as ocasiões e iniciativas propícias à criação de conhecimento são plurais, múltiplas e situadas. Ao contrário do que rezam os handbooks e os catecismos dominantes, as criações de conhecimentos, mesmo aquelas atividades formalizadas como “P&D”, não acompanham tanto as estruturas previamente planejadas, como as construções de avenidas em uma cidade, mas acontecem e proliferam mais em rizomas, aproveitando reentrâncias e fendas do território, como crescem as favelas. Em poucas décadas os Estudos CTS traduziram alguns séculos de uma Ciência esotérica e transcendente de uma realidade centrada para uma pluralidade de ciências exotéricas, imanentes e contingentes de um “mundo múltiplo”[iii] de “conhecimentos situados”,[iv] dignificando inúmeras novas possibilidades para saberes brasileiros.

Os Estudos CTS libertam os espaços de criação de conhecimentos nos Brasis para se pluralizarem, se multiplicarem e se situarem na diversidade brasileira, propiciando o reconhecimento de uma fonte imensa e indomada de conhecimentos e modos de vida. Os Estudos CTS, justapostos a Paulo Freire, nosso maior educador, podem instrumentalizar as/os brasileiras/os para incorporar dignamente essa fonte de energia e de conhecimentos que foi até agora sistematicamente desclassificada nas classificações euro-americanas.

O colonizador branco consagra suas próprias uni-direcionalidades nas construções de conhecimento, tal como priorizar as agendas de pesquisa que visam conhecimentos poupadores de mão-de-obra (labor saving) que melhor se enquadram nos interesses, valores e afetos euro-americanos convencionais e que alijam, neste exemplo, as contingências locais de carência ou abundância de empregos que brasileiras/os podem ocupar.

Além de cruzar o grande divisor natureza x sociedade e de instalar a pluralidade e a multiplicidade, e ainda situar os conhecimentos, os Estudos CTS enxergam um mundo em processo (fluxo, devir) que a criação de conhecimento deve percorrer colado à materialidade. Pela sua própria origem ligada à observação dos fatos científicos enquanto são feitos e não já prontos, pela exigência de, nessa observação, caminhar junto à materialidade segundo o olhar míope de uma formiga[v], os Estudos CTS problematizam a naturalização de produtos acabados que são vistos como “caixas-pretas” que podem ser abandonadas (por mudanças paradigmáticas), se abrir (por defeitos ou acidentes) ou serem abertas (pela pesquisa ou pela engenharia reversa). Esse privilegiar dos processos pode contribuir para agendas brasileiras, em oposição ao “modelo de difusão” que nos apresenta as entidades euro-americanas como prontas e naturais em decorrência da noção moderna de progresso, também naturalizada.

As agendas brasileiras podem ser de múltiplos calibres, podem variar de um pequeno projeto de um departamento universitário ou de uma empresa até políticas públicas de grande envergadura. Paulo Freire nos diz para “fazer uma leitura própria do mundo” levando em conta que “o conhecimento é coletivo” e que devemos “pensar a partir do chão onde os pés pisam” – nada poderia se imbricar mais perfeitamente com os Estudos CTS. Paulo Freire sempre lutou arduamente contra aquela “educação bancária” que nos inculca coletivos de coisas e pessoas muitas vezes brutalmente uniformizadas e equiparadas para constituir unidades abstratas (a humanidade, o trabalhador genérico, o camponês genérico, o capitalista genérico) que configuram a imposição epistêmica da classificação da abertura deste texto.

O que seja que os humanos façam, eles o fazem sempre com as coisas.[vi] Ao contrário do que está pronto, de um produto acabado isolado como um “objeto”, uma “coisa que está lá” que segundo o modelo de difusão espalha e impacta a sociedade, os processos são sequências de decisões e ações que sempre envolvem coletivos de humanos e coisas. Os Estudos CTS e Paulo Freire se justapõem em aliança ao não separarem as pessoas de seus mundos, suas coisas, recusando-se a pensá-las alocando-as em unidades categóricas abstratas. Os Estudos CTS e Paulo Freire partem sempre de um quadro muito mais heterogêneo de coletivos de pessoas e coisas, cada coletivo com as coisas que o integram, as materialidades dos alimentos, das escolas, dos hospitais, dos transportes, das comunicações, dos trabalhos, das ciências, das crenças, das igrejas, das artes, dos divertimentos, e até dos sonhos que nele circulam. Para ambos, as pessoas são também múltiplas e propriamente constituídas pelos materiais que as cercam.

Concluo com a ousadia de imaginar exemplos de propostas de agendas brasileiras pensando processos e não produtos acabados a partir de supostos desdobramentos de estudos de caso:

Uma agenda cts/freiriana para segurança alimentar – A merenda escolar poderia ser preparada em processos descentralizados pelas comunidades de cada escola com envolvimento de mães e pais, parentes e voluntários a partir de ingredientes locais em oposição à compra de grandes quantidades de produtos acabados fornecidos por grandes empresas”. (desdobramento imaginado a partir de (Dias, 2016))

Uma agenda cts/freiriana para fornecer eletricidade para todos – Novas smart grids poderiam implementar processos descentralizados de compra e venda em que cada consumidor de energia pode potencialmente ser também um fornecedor de energia (eólica, solar, álcool etc.), em oposição ao produto acabado “energia” fornecido por gigantescas concessionárias centralizadas (desdobramento imaginado a partir de (Feitosa, 2021)).

*Ivan da Costa Marques é professor do Programa de Pós-Graduação de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Brasil e abertura dos mercados (Contraponto).

Versão ampliada de artigo publicado em CTS em foco.

 

Referências


BORGES, J. L. O idioma analítico de John Wilkins. In: BORGES, J. L. (Ed.). Outras Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras 1952/2007.

DA COSTA MARQUES, I. Estudos CTS, Paulo Freire e novas “agendas brasileiras”. CTS em foco (boletim ESOCITE.BR), v. 2, n. 1, p. 38-43, Jan – Mar 2022 2022. ISSN 2675-9764.

DIAS, L. R. Na “boca do povo”: a multimistura e suas redes heterogêneas. 2016. 216 (doutorado). Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

FEITOSA, P. H. F. O cidadão iluminado: controvérsias sobre inteligências e transformações digitais nas redes de energia elétrica do Rio de Janeiro. 2021. 227 (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Informática / COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1966/2000.

HARAWAY, D. J. Manisfesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, T. T. D. (Ed.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2000. p.37-129. ISBN 8586583820.

LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 1987/1997. 439 ISBN 857139265X.

______. Um coletivo de humanos e não humanos – No Labirinto de Dédalo. In: LATOUR, B. (Ed.). A Esperança de Pandora – Ensaios sobe a realidade dos estudos científicos. Bauru, SP: EDUSC, 1999/2001. cap. 6, p.201-246. ISBN 85-7460-062-8.

MOL, A. The body multiple : ontology in medical practice. Durham: Duke University Press, 2002. xii, 196 p. ISBN 0822329026 (cloth alk. paper)

0822329174 (pbk. alk. paper). Disponível em: http://www.loc.gov/catdir/toc/fy037/2002006932.html.

 

Notas


[i] Sobre o tratamento dessa separação kantiana nos Estudos CTS ver o posfácio escrito por Bruno Latour para a tradução do livro Science in Action para o espanhol.

[ii] Ver (Latour, 1987/1997)

[iii] Ver, por exemplo, (Mol, 2002)

[iv] Ver (Haraway, 2000)

[v] Referência ao acrônimo de actor-network theory, ANT (formiga).

[vi] Ver (Latour, 1999/2001)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ladislau Dowbor Annateresa Fabris Daniel Costa Marjorie C. Marona João Carlos Loebens Rubens Pinto Lyra Juarez Guimarães Henri Acselrad Anselm Jappe Bruno Machado Gilberto Maringoni José Machado Moita Neto Eugênio Bucci Ricardo Fabbrini José Dirceu Chico Alencar Luciano Nascimento Marcus Ianoni Antônio Sales Rios Neto Ari Marcelo Solon Celso Favaretto Lucas Fiaschetti Estevez Jorge Branco Flávio Aguiar Luís Fernando Vitagliano Claudio Katz Matheus Silveira de Souza José Micaelson Lacerda Morais Samuel Kilsztajn José Raimundo Trindade Alexandre de Freitas Barbosa Marcelo Módolo Henry Burnett Eleutério F. S. Prado Carlos Tautz Mariarosaria Fabris Tales Ab'Sáber Francisco Fernandes Ladeira Francisco Pereira de Farias Benicio Viero Schmidt Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Chico Whitaker Bruno Fabricio Alcebino da Silva Igor Felippe Santos Paulo Nogueira Batista Jr José Geraldo Couto Leonardo Boff Tadeu Valadares Paulo Sérgio Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Liszt Vieira Lorenzo Vitral Ricardo Abramovay Michael Roberts Francisco de Oliveira Barros Júnior Antonino Infranca Elias Jabbour Airton Paschoa Luiz Carlos Bresser-Pereira Leonardo Avritzer Maria Rita Kehl Daniel Brazil Gerson Almeida Ricardo Antunes Julian Rodrigues Atilio A. Boron Denilson Cordeiro Gilberto Lopes Boaventura de Sousa Santos Flávio R. Kothe Tarso Genro Alexandre Aragão de Albuquerque Ronaldo Tadeu de Souza Eleonora Albano Dennis Oliveira Carla Teixeira Yuri Martins-Fontes Thomas Piketty João Lanari Bo Érico Andrade Valerio Arcary Andrés del Río Otaviano Helene José Luís Fiori André Márcio Neves Soares João Paulo Ayub Fonseca Berenice Bento Vinício Carrilho Martinez Armando Boito Marcos Silva Fábio Konder Comparato Daniel Afonso da Silva Marilena Chauí Bernardo Ricupero Eliziário Andrade Osvaldo Coggiola Luiz Bernardo Pericás Kátia Gerab Baggio Valerio Arcary Renato Dagnino Heraldo Campos Rafael R. Ioris Rodrigo de Faria Remy José Fontana Luiz Renato Martins João Adolfo Hansen Manchetômetro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Salem Nasser Mário Maestri Paulo Martins Manuel Domingos Neto Sergio Amadeu da Silveira Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Marques João Carlos Salles Lincoln Secco Dênis de Moraes Vladimir Safatle Andrew Korybko Caio Bugiato André Singer Leonardo Sacramento Leda Maria Paulani Ronald León Núñez Ricardo Musse Vanderlei Tenório Slavoj Žižek Marcos Aurélio da Silva Priscila Figueiredo Eduardo Borges Luis Felipe Miguel Sandra Bitencourt Michael Löwy Gabriel Cohn Fernando Nogueira da Costa Luiz Roberto Alves Bento Prado Jr. Marilia Pacheco Fiorillo Ronald Rocha Alysson Leandro Mascaro João Feres Júnior Jean Pierre Chauvin Paulo Fernandes Silveira Celso Frederico Afrânio Catani Luiz Eduardo Soares Paulo Capel Narvai Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Lima Castro Tranjan Fernão Pessoa Ramos Antonio Martins Walnice Nogueira Galvão José Costa Júnior Milton Pinheiro Eugênio Trivinho Michel Goulart da Silva Luiz Werneck Vianna João Sette Whitaker Ferreira Jorge Luiz Souto Maior

NOVAS PUBLICAÇÕES