Por FERNANDO LIONEL QUIROGA*
Como é próprio da crítica discernir, separar e julgar com lucidez, uma vez que ela passa a funcionar nas cadeias discursivas servindo a Deus e a Mamon, há falência de suas funções, em especial no espaço educacional
1.
Não é de hoje que a “crítica” está incrustada nos assuntos pedagógicos. Como um selo ou certificado de qualidade, impõe-se como adjetivo obrigatório em toda roda de conversa – acadêmica ou não – quando o assunto é a escola. Marca ubíqua, a crítica se oferece a uma multiplicidade inesgotável de usos. Logo se vê, emaranhada, em toda conversa “séria”, em todo discurso “oficial” e, entre aspas novamente, “científico”.
No subtítulo jocoso e sarcástico “Crítica da Crítica Crítica”, presente em A Sagrada Família, de Marx e Engels, já se percebe o mal-estar diante desta palavra. Nesse contexto, a crítica de Marx e Engels dirigia-se aos jovens hegelianos – especialmente Bruno Bauer e seu círculo – pela maneira como estes se autodenominavam os verdadeiros críticos da realidade e da religião, monopolizando – e excluindo os não pertencentes ao seu círculo – a caixa de ferramentas de Hegel.
Daí o tom de sarcasmo e ironia: rir-se de um grupo que arroga a si o monopólio da crítica filosófica é uma resposta racional. O riso aqui é dispositivo de revelação do absurdo, expondo uma situação que, dada sua estupidez, poderia passar despercebida.
Nas sociedades contemporâneas, especialmente no âmbito educacional, a crítica torna-se palavra da vez. Não há discurso ou argumento que se pretenda sério sem sua presença. Não há palestra investida de autoridade em que a crítica não seja nuclear – presença obrigatória da sintaxe argumentativa. Espraiada, reverberada, multiplicada, a crítica torna-se moda.
A moda da crítica está no fato de que, neste contexto, ela perde total contato com o real. Como na moda propriamente dita, em que a hipérbole vale mais que o substantivo, também aqui a crítica se desconecta da realidade imediata para, sem o saber, confabular com uma polifonia ensurdecedora de sentidos. Torna-se performática: mole o suficiente para fazer-se dela o que se quiser.
Mas qual é o problema disso? Ao recorrermos à sua etimologia, aprendemos que crítica vem do grego antigo kritikḗ (κριτική), derivado de kritḗs (κριτής), “juiz”, cuja raiz verbal krínō (κρίνω) significa “distinguir, separar, julgar, decidir”. Daí o problema: como é próprio da crítica discernir, separar e julgar com lucidez, uma vez que ela passa a funcionar nas cadeias discursivas servindo a Deus e a Mamon, há falência de suas funções. Já não distingue, não julga, não decide. A palavra perde seu potencial produtivo e converte-se em ideologia. Sem sentido, torna-se um simulacro, uma fantasmagoria.
Assim, toda vez que se ouve ou lê a palavra crítica no espaço educacional, uma pergunta se faz necessária: “onde está a crítica?”. Satisfazer-se apenas com sua menção é como se iludir diante de uma crisálida vazia, esperando ver o nascimento de uma borboleta. É, novamente, continuar esperando Godot.
2.
Antes de concluir, é preciso insistir em um ponto: não se transmite a crítica pelo rótulo. Não se formam alunos críticos simplesmente porque se deseja; nem professores críticos porque a palavra abunda nos cursos de formação. A crítica é ou não é. Ela demanda tempo e meditação. Recusa estereótipos, não se alia a ideologias, não flerta com o poder.
Sua natureza é estar fora do mundo. Seu reino não é daqui. É ela quem traz a novidade ao mundo – e, como tal, sempre encontra legiões de algozes. São sempre os mesmos inimigos, cujo temperamento conservador e reacionário visa anular aqueles que, pela crítica, ousam apontar novos caminhos: Sócrates, Jesus Cristo, Giordano Bruno, Galileu, Lula.
É da natureza da crítica despertar reações de extrema violência. Contudo, no contexto em que as elites proprietárias desenvolveram a técnica da inversão de sentidos, crítica pode significar exatamente seu contrário. Daí a necessidade, mais do que nunca, de perceber a flagrante ingenuidade expressa na contradição que se impõe diante de nossos olhos: um modelo educacional em que a crítica se multiplica nos discursos e interstícios teóricos e práticos, contrastando com uma realidade de aprendizagem cada vez mais indiferente, cretina e cínica. Onde aparece “crítica”, cobre-se por ela.
A atmosfera na qual a crítica se encontra subsumida, escamoteada e reduzida a mera expressão retórica é como a de um círculo vicioso que se retroalimenta, impulsionando-a cada vez mais como “produto de moda” e menos como potência de julgamento. O resultado disso é a reprodução e a intensificação das desigualdades, tendo a injustiça como núcleo social. Se a crítica se resume à apresentação formal das questões problemáticas e, portanto, determinantes que se movem em torno de um determinado objeto, de nada adianta mencioná-las. Quando essa se torna a prática habitual do fazer científico, a crítica como ideologia cumpriu seu papel.
Ao não enfrentar os problemas centrais que incidem sobre boa parte dos impasses — cujos determinantes são, invariavelmente, resultados ou intenções desastrosas do capitalismo —, tais problemas tendem não apenas a se perpetuar, contribuindo para a imensa engrenagem de aumento das desigualdades em todas as esferas, como também a se perpetuar sem qualquer remorso.
Que o atual capitalismo se encontre em um estágio de acumulação mais poderoso e agressivo não é coincidência. Ocorre que, detentor dos meios de produção, seu modus operandi tem sido empregado de um modo mais ardiloso e corrosivo do que nunca. Seu triunfo é avassalador porque seu alvo, desta vez, é a própria “crítica”, isto é, o próprio “espírito revolucionário”.
Não mais recusa a crítica ou o espírito revolucionário: acolhe-os, abriga-os e, até certo ponto, parece concordar com eles. Entretanto, descobre-se, logo depois, que o interesse em concordar era meramente para aprender com eles. E então, tão logo aprende, prepara o ataque final: o desenvolvimento da mesma personagem, mas de modo invertido. Exatamente o que aprendemos com o exemplo histórico da transmutação dos hippies (crítica à guerra do Vietnã, abandono dos valores materiais, paz, amor livre) nos yuppies (materialistas, focados em carreiras, competição e ascensão social), alinhados à ideologia californiana.
3.
Seguimos o entendimento de Karl Marx, no livro I de O capital, para quem a ideologia é uma inversão da realidade, um véu que oculta as verdadeiras relações sociais. No caso da educação, em que a “crítica” é a principal arma de transformação, transformar a crítica é o meio que o capitalismo encontra para torná-la estéril, opaca e vazia.
A crítica como ideologia termina por se converter em cinismo. Aliás, se o cinismo tomou conta do espírito das sociedades contemporâneas, é porque a ideologia destilada em streamings, canais do YouTube (fortemente investidos por interesses do capital, e não por preferências psicológicas), redes sociais em peso e mídias oficiais — o que corresponde a mais de 90% de todo o conteúdo “absorvido” pela expressiva maioria da população — não aparece como “tema central” de uma comédia ou tragédia.
O cinismo é o espírito do atual estágio do capitalismo porque é o espírito que sobra de um vasto e devastador sistema cuja meta é a “inversão” de tudo aquilo que inspira resistência, de tudo aquilo que busca decifrar suas contradições O cinismo emerge daquilo que carece de sentido entre o real e o ideal.
Na educação, infelizmente, colhemos os frutos de um período em que o cinismo não apenas surge como resultado nefasto dessa estrutura, mas, em razão de sua centralidade, reproduz-se ao longo de gerações e ataca o próprio leitmotiv da transformação.
*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).
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