Sobre a nota do Ministério da Defesa

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Desde a última ditadura, a representação política viveu intimidada pelos militares

Em 1979, acatou uma anistia que preservou praticantes do terrorismo de Estado que atentaram contra a humanidade. Na Constituinte de 1988, através do Artigo 142, reconheceu os superpoderes das corporações armadas. O Ministério da Defesa, organismo essencialmente político, foi entregue ao desígnio do militar. Os negócios da Defesa foram simploriamente assimilados como assuntos militares. Com uma tuitada um general condicionou as últimas eleições presidenciais. Com o país em profunda crise multidimensional, a representação política admitiu que Bolsonaro concedesse privilégios a perder de vista à “família militar”.

Não será baixando a cabeça diante de galões que os brasileiros preservaremos a democracia. Agiu bem o senador que preside a CPI ao dizer que não seria intimidado por generais. Militares se envolveram em falcatruas e devem responder por isso. Outra opção seria encerrar os trabalhos da CPI e deixar o morticínio correr frouxo.

Hoje à noite eu ministrarei uma aula cujo primeiro tópico é a religiosidade dos guerreiros. Homens que se preparam para abater semelhantes, mesmo que movidos por pura cobiça, cobrem-se de razões sagradas. Suas credibilidades derivam de imagens cuidadosamente construídas. Guerreiros precisam mostrar-se alheios aos interesses pequenos. O sentido de honra cultivado nas fileiras é estreitamente relacionado às causas elevadas que juram defender.

O guardião ideal é incorruptível, como Platão teorizou há mais de dois mil anos. A cristandade recheou sua hagiografia de figuras militares. São Sebastião, São Jorge, São Longuinho, Santa Joana D’Arc, São Luís… Guerreiros vivem passando a ideia de que prezam o interesse coletivo ao custo da própria vida. Demandam a divindade como parceira. Perdendo a sacralidade, o guerreiro se esfarela.

Os comandantes brasileiros sabem disso e se empenharam em destacar a diferença entre o político paisano, corrupto por índole, e o militar ilibado, íntegro por formação. Fileiras se legitimam como defensoras da pátria sacrossanta. Assim ensinam as escolas castrenses. Fora dos quartéis, a extraordinária lenda segundo a qual na ditadura não havia corrupção foi religiosamente disseminada. O povo sempre foi propenso a acreditar no extraordinário.

Eis que a imagem de alto padrão moral das instituições armadas brasileiras entra em chamas a partir dos trabalhos da CPI. Podia ser diferente? As corporações não passariam ilesas integrando o governo Bolsonaro. Os militares sempre souberam da folha corrida do Presidente.

Se os parlamentares baixarem a cabeça, cairemos numa sinuca de bico. Aliás, os senadores fizeram de tudo para poupar os militares, adiando o que estava escrito. Demoraram para colher o depoimento dos oficiais e entoaram loas às corporações.

De tão protegidos, ousaram cada vez mais. O Presidente do Superior Tribunal Militar julgou-se autorizado a delimitar o espaço da oposição e não perdeu a oportunidade. Disse que a esquerda estava esticando demasiado a corda. Não foi admoestado. Previsível, pois, que os homens de muitas estrelas continuassem o jogo de “aproximações sucessivas”, assinando uma nota contra o presidente da CPI.

A preservação da democracia passa pela contenção de tais manifestações. O senador Omar agiu de forma ponderada. Condenou a “banda podre”, não o conjunto das corporações. Como negar o fato de militares estarem envolvidos no escândalo de corrupção mais repugnante da história brasileira?

A santidade castrense está em chamas. Sem uma postura firme da consciência democrática, as labaredas podem tomar conta do país, como quer o Presidente.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Elias Jabbour Berenice Bento Bento Prado Jr. Alysson Leandro Mascaro Jean Pierre Chauvin José Machado Moita Neto Chico Whitaker Henry Burnett Osvaldo Coggiola Milton Pinheiro Rodrigo de Faria Lorenzo Vitral Walnice Nogueira Galvão Marcos Silva Paulo Nogueira Batista Jr José Micaelson Lacerda Morais Paulo Martins Francisco Pereira de Farias Flávio Aguiar Daniel Costa Thomas Piketty José Raimundo Trindade Afrânio Catani Vanderlei Tenório Fábio Konder Comparato Paulo Fernandes Silveira Gabriel Cohn Mariarosaria Fabris José Dirceu Marjorie C. Marona Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Avritzer Bernardo Ricupero Marcos Aurélio da Silva Ricardo Antunes Heraldo Campos Dennis Oliveira Tales Ab'Sáber Benicio Viero Schmidt Eugênio Bucci Celso Frederico Marilena Chauí Manchetômetro Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Marques Marcelo Guimarães Lima Salem Nasser Denilson Cordeiro Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Renato Dagnino Slavoj Žižek Andrew Korybko Mário Maestri Luiz Carlos Bresser-Pereira Valerio Arcary Eugênio Trivinho Igor Felippe Santos Samuel Kilsztajn Andrés del Río Antonino Infranca Luiz Werneck Vianna Eleonora Albano Julian Rodrigues Ari Marcelo Solon Caio Bugiato Tadeu Valadares Eleutério F. S. Prado Michael Löwy Antonio Martins Jorge Branco Leonardo Sacramento Luiz Eduardo Soares Otaviano Helene João Sette Whitaker Ferreira Jorge Luiz Souto Maior Remy José Fontana Celso Favaretto João Carlos Salles André Márcio Neves Soares Bruno Fabricio Alcebino da Silva Rubens Pinto Lyra Ronaldo Tadeu de Souza João Paulo Ayub Fonseca Lincoln Secco Eduardo Borges Yuri Martins-Fontes Atilio A. Boron Ronald León Núñez Boaventura de Sousa Santos Sandra Bitencourt Alexandre Aragão de Albuquerque Ricardo Abramovay José Luís Fiori Ricardo Fabbrini José Geraldo Couto Liszt Vieira Juarez Guimarães Sergio Amadeu da Silveira Luis Felipe Miguel Luciano Nascimento Armando Boito Luiz Renato Martins Francisco Fernandes Ladeira Everaldo de Oliveira Andrade Claudio Katz Fernando Nogueira da Costa Eliziário Andrade Marcus Ianoni Leda Maria Paulani Marcelo Módolo Luís Fernando Vitagliano Vinício Carrilho Martinez Chico Alencar Airton Paschoa João Carlos Loebens Flávio R. Kothe Manuel Domingos Neto Antônio Sales Rios Neto Luiz Bernardo Pericás Priscila Figueiredo Daniel Afonso da Silva Vladimir Safatle Maria Rita Kehl Leonardo Boff Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ladislau Dowbor Ronald Rocha Matheus Silveira de Souza Gerson Almeida Carla Teixeira Luiz Roberto Alves Tarso Genro Érico Andrade José Costa Júnior Michael Roberts Anselm Jappe Bruno Machado Paulo Capel Narvai João Feres Júnior João Adolfo Hansen Daniel Brazil Henri Acselrad André Singer Rafael R. Ioris Annateresa Fabris Gilberto Maringoni Kátia Gerab Baggio Jean Marc Von Der Weid Carlos Tautz Paulo Sérgio Pinheiro Michel Goulart da Silva Gilberto Lopes Dênis de Moraes Marilia Pacheco Fiorillo Ricardo Musse Lucas Fiaschetti Estevez João Lanari Bo

NOVAS PUBLICAÇÕES