a terra é redonda

Sobre a suposta polarização

Por Leonardo Avritzer*

A
soltura do ex-presidente Lula da cela onde se encontrava preso na Polícia
Federal em Curitiba, decorrência da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a
interpretação do artigo cinco da Constituição, assim como dos enormes desmandos
e ilegalidades perpetrados pelo Ministério Público, enfraqueceram o discurso da
impunidade entre aqueles que desejavam que ele continuasse preso.

Afinal,
difícil defender este argumento com base no que hoje sabemos sobre a operação
Lava Jato e o conluio que ela patrocinava entre Ministério Público e o ex-juiz
federal Sérgio Moro. Imediatamente surgiu uma nova narrativa argumentando que a
libertação de Lula reacendia a polarização na sociedade e na política no
Brasil.

O
conceito de polarização tem dois significados principais, um primeiro tem como
ponto central o senso comum significando apenas “divergência de atitudes “políticas” entre extremos ideológicos” a definição da Wikipedia
que tem sido usada pela grande maioria dos jornalistas e colunistas políticos. Porém,
a polarização é um fenômeno muito mais complexo expresso de forma mais adequada
pelo aumento da distância entre os diferentes polos políticos, já que extremos
sempre existem e sua existência não parece ser o problema. O problema ocorre
quando a distância entre direita e esquerda aumenta e a questão analítica é entender
o significado dessa ampliação.

Em 2014, Jane Mansbridge, então presidente da
APSA, Associação Americana de Ciência Política, constitui uma força-tarefa para
analisar a questão da polarização na política nos Estados Unidos. No livro em
que diversos autores comentaram o resultado do trabalho duas questões de extrema
relevância foram apontadas. Elas são válidas para o Brasil hoje.

Em primeiro lugar, apesar da ilusão de que os dois
partidos dos EUA, democratas e republicanos, se moveram para os extremos, os
dados da força-tarefa mostraram que o movimento à direita do partido
republicano correspondia à quase totalidade do movimento polarizante; em
segundo lugar, os resultados do trabalho mostravam que apesar de uma grande
parte da mídia apontar a polarização como um movimento partidário ele tinha uma
forte ancoragem em uma movimentação da esfera pública (os resultados foram
publicados no livro Political Polarization
in American Politics
).

Vale a pena utilizar esse trabalho para
entender os gritos contra a renovação da polarização emitidos pelos atores
midiáticos brasileiros. A despeito de quase tudo o que se escreve sobre
polarização enquanto disputa entre extremos, o Brasil pode ser situado na mesma
posição que os Estados Unidos no que diz respeito à polarização política. Ela
tem origem no crescimento ou na radicalização da direita brasileira.

Questões como a tentativa de reabilitar o
regime autoritário, o elogio da tortura, o ataque contra os direitos humanos e a
reação ao ambientalismo vêm de um campo político muito bem delimitado. Se essas
questões aumentam a distância entre os polos é porque a direita resolveu
trilhar novamente caminhos antes interditados. Assim, temos um caso de
ampliação da distância entre direita e esquerda provocado pela radicalização à
direita dos setores conservadores no nosso país.

Vale a pena analisar o nosso centro, em pânico
desde saída do ex-presidente Lula de Curitiba. O Brasil tem um centro político cuja
característica principal nos últimos anos foi de se eximir de defender as
instituições democráticas e a Constituição de 1988 dos ataques que ambas têm
sofrido por parte dos setores conservadores. A adesão ao impeachment da
ex-presidente Dilma Rousseff e ao governo Temer colocaram o centro em uma
posição difícil porque deixou clara uma adesão seletiva à questão da luta
contra a corrupção. Ninguém evidenciou mais essa seletividade que o
ex-presidente Temer.

Jair Bolsonaro apareceu assim como uma solução de
extrema direita que associou Lava Jato, mercado e ataques à democracia. O papel
do centro e principalmente da grande imprensa foi relativizar esses ataques
tentando colocá-los em uma perspectiva de ataques à democracia pela direita e
pela esquerda. O melhor exemplo foi o Jornal
Nacional
do dia seguinte ao primeiro turno da eleição de 2018, no qual se
equiparou fechar o STF e pedir revisão constitucional.

A afirmação de uma radicalização por igual dos
extremos não se sustenta. Pelo contrário, tanto o Partido dos Trabalhadores quanto
o ex-presidente Lula têm aceitado decisões polêmicas da justiça desde 2015. A
condenação de Lula tingida de elementos políticos, que se segue até hoje com a
decisão estapafúrdia do TRF-4 em relação ao sítio de Atibaia, é apenas mais uma
comprovação desta coalizão atípica na qual mercado, defensores do AI-5, e
inimigos do Estado de direito se juntam para atacar a democracia no Brasil. Assim,
o problema não é existem extremos, mas o que são as relações de cada um dos
polos com a democracia.

A reorganização de um centro democrático no
Brasil não pode prescindir de uma esquerda democrática, ou fracassará rotundamente.
A recuperação da economia, junto com uma agenda pró-direitos que tenha impacto
positivo sobre a vida da população pobre e por ultimo uma agenda ambiental que
permita cuidar da Amazônia, dos rios e da costa brasileira, simultaneamente
maltratados pelo capitão presidente e seus aliados, só será realizada se o
Brasil não sucumbir ao discurso fácil da polarização e encontrar os elementos
que unem aqueles que defendem a tradição democrática.

*Leonardo Avritzer é professor titular de ciência política na UFMG.

Sobre a suposta polarização – 06/12/2019 – 1/1
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