Por FERNANDO RIOS*
I
quem é o corpo?
propriedade ou proprietário?
senhor ou escravo?
um corpo minotauro de arco e flecha
que abate tudo e todos
fere mata incendeia?
um corpo cornucópia
que se oferece em pão vinho
frutas hidromel ternura cARINHO?
II
o corpo é um alfabeto?
o corpo é uma numerologia?
o corpo é uma letra?
o corpo é uma palavra?
o corpo é um dicionário?
o corpo é uma biblioteca?
o corpo é sólido?
o corpo é líquido?
o corpo é gasoso?
o corpo é natural?
o corpo é artesanal
(feito a quantas mãos)?
o corpo é animal?
o corpo é mineral?
o corpo é vegetal?
corpo é racional?
o corpo é emocional?
o corpo é irracional?
o corpo é agressivo?
o corpo é violento?
o corpo é cruel?
o corpo é gramática?
o corpo é sintaxe?
o corpo é semântica?
o corpo é guerra?
o corpo é dança?
o corpo é furacão?
o corpo é brisa?
o corpo é brutalidade?
o corpo é ternura?
o corpo é uma boa ou má temática?
o corpo é física?
o corpo é química?
o corpo é bio logia
o corpo é uma alma que habita num corpo?
a alma é um corpo que habita numa alma?
o corpo responde:
“sou tudo isso… e muito mais…
sou sempre uma imensa fortaleza
sou sempre uma imensa frágil idade
vivendo entre nascer e morrer
nem sempre o bastante
para contar minha história
sobre mim grandes vidas aconteceram
desaconteceram
acontecem desacontecerão
muitos milhares milhões de mim trucidaram
e foram trucidados
ad majorem gloriam de alguéns
e ainda trucidam e são trucidados
para maior glória de quem?”
III
o corpo é eficiente? o corpo é deficiente?
é campeão porque sobe no pódio
ou porque é sobrevivente?
o corpo é senhor de quem?
o corpo é escravo de quem?
com quantos corpos se faz uma humanidade?
quantas humanidades cabem num corpo?
com quantos corpos se faz ou se desfaz uma celebridade?
IV
a humanidade caminha sobre corpos
quantos corpos construíram e desconstruíram alexandres, os grandes?
quantos corpos construíram e desconstruíram gengis khans?
quantos corpos construíram e desconstruíram napoleões?
quantos corpos construíram e desconstruíram hitleres?
por sobre quantos corpos o capital se constrói?
e seguimos anestesiados
talvez por nós mesmos
mas há que abandonar a letargia
há que acordar de um pesadelo
que nos escurece o dia
um corpo mais um corpo mais um corpo
e mais um e mais outro
formam umas e quantas humanas idades?
em cada uma delas
muitas histórias
escritas com muito fel muito sangue
e quanto de mel?
V
o corpo ama e odeia
e diante do espelho
se delineia
eros tanatos narciso?
que corpos não se aguentam em uníssono?
há que dominar?
há que ser dominado?
há espaço para uma idílica igualdade
diante de tanta iniquidade
de tanto machismo na masculinidade?
VI
diante do espelho
não se olha o tempo
olhar-se no espelho
o tempo não anda
que mágica traz o espelho
no infinito dia a dia?
misteriosa alquimia
que não transforma o corpo
diante do espelho
o corpo não muda, não se (trans)forma
só o retrato revela as marcas de cronos
quanto espaço do grito primal
ao espasmo da angústia presente
ao espanto que a agonia pressente
um corpo em descanso?
um corpo em riste?
diante do espelho
o mesmo corpo existe diariamente
mas que tempo esculpe o corpo
e faz dele alegre ou triste?

VII
o corpo mata e dá à luz
o corpo abraça e tortura
o corpo beija e morde
o corpo acaricia e esmaga
a humanidade se multiplica
corpo a corpo
em estranha e amorosa ironia
cresce a demografia
VIII
na geografia do corpo
que melhor lugar do que a pele
para gravar memórias
contar e recontar histórias
passadas presentes futuras
lembradas esquecidas imaginadas
que (re)voltam em gestos
palavras adormecidas
boas malévolas (re)torcidas
forjadas no tempo
que melhor tatuagem
é a boa memória gravada na pele?
que corpo não expõe sua memória?
ele engravida lembranças
faz um parto de alianças
transforma ferida em flor
faz transbordar o vinho
estanca sangria e dor
poder escolher boas memorias
é poder mais maior melhor
XI
o corpo tem cabeça tronco membros
unhas cabelos
por acaso é oco o corpo?
nos seus interiores
faz das tripas coração?
quem respira
o cérebro ou o pulmão?
quem canta
garganta ou coração?
por acaso flutua o corpo na imensidão?
o que está ao seu redor?
outro corpo, outros corpos, quantos corpos?
quantos tempos e espaços
tatuam o corpo na sua solidão?
quantas roupas sapatos cadarços
prendem o corpo numa realidade?
o que ele faz com a sua vontade
de saciar e evitar uma sede ancestral
que constrói e destrói e constrói e destrói?
X
o corpo fala
o corpo se comunica
o corpo sussurra
o corpo grita
quantos gritos
para a humanidade escutar?
XI
um corpo não é mobília
não enfeita nada
mas também não é mortalha
há que sempre
transformar o corpo em manta
que cobre outro corpo e acalenta
XII
que corpos sentimos
bem longe da festa?
holocaustos genocídios
entram por onde?
estamos anestesiados?
quem anestesia?
streamings, noticiários?
a internet?
o silêncio do outro?
a ausência do outro?
a solidão
no meio da multidão conectada
no meio da multidão abandonada
quantos corpos monologam sem resposta?

XIII
pode um corpo são
salvar uma humanidade doente?
como esse corpo se sente?
perdemos a sensibilidade?
fomos anestesiados contra a barbárie?
olhamos ao redor
e nem sentimos calafrios
são migrantes são sem tetos são famintos
e passamos ao largo
vemos bombas sobre tudo e todos
meros vermes memes videogames?
vemos calmamente
milhares de vidas explodindo
meros filmes de outro mundo?
destruímos nosso corpo natureza
como destruímos nossa natureza corpo?
engolimos os diálogos?
vociferamos monólogos?
vomitamos blasfêmias?
o que fizemos das palavras?
matérias primas de munição?
XIV
há um caos que caminha em cada esquina
há destroços que aumentam e amontoam
há corpos muitos corpos anônimos
que nunca mais se corporificarão
é possível ser feliz
diante destas (des)humanas idades
mas não são elas também tão humanas?
nazifascistas ouviam beethoven
ao lado das câmaras de gás
hoje brindam com vinhos
e banham-se em piscinas de champanhe
regadas ao sangue escorrido de bombas aladas
é possível andar na vida
como se anda na rua?
temos um corpo vestido de armadura
que guarda uma alma vazia ou vice-versa?
onde estão as sementes
da paz, da felicidade, da alegria
enterradas e adubadas
na indústria bélica da carnificina?
o agronegócio beneficia?
desmata, planta, ecocidamente?
quem fabrica estranhas sementes
de agressão, de violência, de crueldade?
em que canteiros elas são plantadas?
que adubos as fazem sempre tão viçosas?
XV
a pomba da paz está assustada
a pomba da paz está acuada
a pomba da paz está cansada
não consegue pousar
sem ninho seus ovos estouram no ar
a pomba da paz está engaiolada
presa nem pode voar
e quando escapa e voa
ressentida
pousa num corpo esteio esteira
mas…
se transforma em alvo
na mira do míssil fuzil
ou tonta ao léu
vítima de uma ave bala perdida
a ave pomba da paz não evita
o voo da bomba de guerra
a ave pomba da paz
escapa ferida dos tiros na ucrânia
derrama lágrimas no massacre em gaza
não entende as negras guerras da áfrica
produzidas por alans brancos musks ávidos de minérios
para seus brinquedos digitais
é difícil ser feliz diante de tão pouca sorte
que nem a arte suscita
vendo tantas vidas mortas
e outras por um triz
ninguém é dono de nada
nem de seu próprio nariz
em que ritmo caminha o algoritmo
que altera seu/meu desejo seu/meu destino?
está cada vez mais difícil
criar coragem para viver
sobre atroz cidades
e dizer para filhos netos bisnetos
como acreditar num horizonte utopia
XVI
toda humanidade
trabalha com estranha balança
quase sempre desequilibrada
de um lado, amor, carinho, afeto, vida
do outro, fome, tortura, maldade, morte
de que lado pende a balança?
onde está a esperança?
perdida no tiroteio
entre tantos velórios
de incontáveis idades
onde não há tempo sequer para saudade
há estufas para boas sementes?
há canteiros e adubos para boas colheitas?
há tiroteios nos escritórios?
há violência nas escolas?
quantas vãs humanidades podemos suportar?
leões não pilotam tanques
nem condores carregam foguetes
apenas o capital maneja seus dardos
chuvas mortíferas sobre orientes
câmaras de gás metamorfoseiam imensos cadafalsos
israelenses e palestinos, ucranianos e russos
que vizinhos dolorosos cultivam estranhos destinos
onde tudo se lava com sangue
onde vingança inunda os rios
onde palavras se transformam em gritos lamúrias
o corpo que assassina
é um corpo que ama e acaricia?
onde está meu corpo
no meio da chacina?
é possível alguma alegria?
quantas marielles franco
terão que viver sua sina
quantas deixarão de ver o dia?
ainda há uma humana idade
que prenuncia um mínimo bom tempo?
um desabafo não basta
é preciso plantar
o que, onde, quando, com quem?
é hora de convocar
esta é a convocação
estamos anestesiados?
quem nos anestesia?
não quero essa injeção
quero minha autonomia
minha liberdade
meu canto de alforria
não quero corpo ausente
vazio corpo digital
mesmo que seja fatal
prefiro meu geográfico corpo pele
marcado com tatuagens
minha pele é meu mapa
meu coração é minha bússola
minhas mensagens
signos sons letras imagens olhares
que saltam de mim
do meu silêncio
e mesmo o meu corpo liso
é expressão de meu grito
é impossível um corpo sozinho
fazer um belo verão boreal
mas pode ser um bom sinal
XVII
meu corpo é minha porta estandarte
meu corpo é meu mestre sala
com ele escrevo meu enredo
com ele componho minha música
e mesmo sem ensaiar
desfilo na avenida da vida!
com música afinada ou desafinada
ele sempre chega primeiro
é no desfile que ele se mostra por inteiro
essa escola de samba
chamada vida
é muito mais que uma avenida
tem começo meio e fim
e jorra imensa bem no meio
XVIII
quantas cores tem o corpo?
o que elas fazem com o corpo?
elas apenas colorem?
por que o corpo chamado branco
manda mais do que um corpo preto amarelo vermelho
manda mais que um corpo arco-íris
e todas as quantas outras cores?
XIX
quantas vida o corpo aguenta
sabendo que a morte é apenas uma
e quantas mortes são necessárias
para afastar nossa anestesia
de olhar cegamente ao redor
e sem nenhuma euforia
fechar ainda mais os olhos
esvaziar o corpo e encher o copo

XX
a coisa que corpo mais gosta
é abraço
abraço que não economiza afeto
abraço amigo
num corpo a corpo caloroso
fundido em corpo e alma
ingerido no todo dia
como alimento da vida
tem também outro abraço
aquele do amor tórrido da tórrida paixão
onde cada um com seu cada qual
entra em erupção e transborda
por dentro e por fora
e navega e voa e navega e voa
um corpo sem abraço
é um pobre corpo pobre
perdido, sem destino
um corpo ao léu, corpo sem céu
sem bússola, desnorteado
que só um bom abraço arrebata
XXI
em algum momento
o corpo reivindicará sua corporidade
para dizer que constrói e se constrói
num dia a dia que virá
e sua escola de samba
comandar todas as avenidas
todas as florestas
todos os desertos
todos os polos
todas as cidades
esse dia virá
mas precisamos começar…
que dionísio e baco
gêmeos siameses univitelinos
fundidos num único corpo
O MEU CORPO O SEU CORPO
sob as bênção de eros
nos ajudem a construir belas avenidas
para que possamos nos conduzir
ternamente
XXII
um corpo pede passagem
em meio a tantos conflitos
em meio a tantas tormentas
um corpo pede passagem
não para plantar genocídios
não para construir cadafalsos
um corpo pede passagem
para se erigir proprietário
para se construir em mutirão
para transformar multidão solitária
em solidária multidão
qualquer ano qualquer mês
qualquer dia qualquer hora
é hora de encorpar
juntar corpos em sinfonia
comemorar memórias
se abraçar afetuosamente
quem sabe um dia que não tarde
com muitos e tantos ávidos corpos
o mundo amanheça abraçado
*Fernando Rios é jornalista, poeta e artista plástico.
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