Sobre sentir ódio

Imagem: Valéria Possos
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Por CARLOS HORTMANN*

O ódio é um afeto integrante da nossa sociabilidade e não algo estranho como a ideologia nos faz querer acreditar

Confesso ao leitor/a que tinha preparado outro artigo para esse mês. Todavia, a situação brasileira me impõe trazer essa reflexão e também porque o presidente Lula da Silva tem dito várias vezes: “eu não sinto ódio”.

Algo importante que pretendo ressaltar de princípio: não estou a tratar ou a falar de sentir ódio em geral ou abstratamente (por qualquer pessoa), mas de um ódio determinado e específico, portanto, o ódio de classe – como afeto e elemento mobilizador/transformador. Muitos poderão ficar espantados com a minha afirmação, mas peço-vos, gentilmente, que respirem e tentem continuar o texto.

Acredito que a maioria de nós já ouviu a seguinte frase desde à tenra idade: “você não pode sentir ódio porque é feio ou deus não gosta”. Tal ditado aponta para uma cosmovisão “cristã” de mundo presente na formação social brasileira, contudo, o modo como essa perspetiva vazia de ódio é instrumentalizada enquanto ideologia, no sentido de controlo e dominação de classe, tem por finalidade construir um imaginário de que é pecado, “anormal” ou ruim as pessoas sentirem ódio, principalmente se for pela classe dominante** (burguesa monopolista).

Gostaria de pontuar algo: vivemos numa sociedade em que o conflito não é a excecionalidade, mas a regra. Apresento-vos dois exemplos. A lógica do patronado é pagar salários cada vez menores aos trabalhadores/as para acumularem (lucrarem) cada vez mais, como consequência nós trabalhadores/as temos menos condições objetivas e básicas de vida. Isto é, passamos a não termos soberania/segurança alimentar, um teto digno para viver (sem o medo de ser despejado); a ter que escolher entre pagar a conta de luz ou comprar comida – no último ano 19 milhões de brasileiros foram atingidos pela fome. Outra oposição é entre os proprietários de grandes empresas (os capitalistas) e nós trabalhadores/as que resta, apenas, vender a nossa força de trabalho em troca de um salário para sobreviver; e esses proprietários farão de tudo para não perderem o poder e controlo sobre a propriedade dos meios de produção (de riqueza em geral), que é de onde eles retiram a mais-valia (“lucros”), fruto do nosso trabalho. Em resumo, a forma como produzimos riquezas no capitalismo é coletiva, porém, a apropriação dessa riqueza é privada – e isto é uma construção histórica, ou seja, não é algo natural. Teria muito a refletir sobre tais antagonismos e sua complexidade, todavia, quero apenas sinalizá-los, visto que a nossa sociedade estrutura-se a partir de variados conflitos fundados na desigualdade (material/economica/social) e é decisivo para compreender o porquê do ódio ser um afeto integrante da nossa sociabilidade e não algo estranho como a ideologia nos faz querer acreditar.

Os que realmente são movidos pelo ódio são os burgueses** (donos de bancos/mercado financeiro, grandes empresas monopolistas/transnacionais, fazendeiros/agronegócio e afins). Eles odeiam a nós trabalhadores/as, pobres, negros, mulheres, indígenas, LGBTQI+ entre outros, e a expressão mais visível e sem-cinismo desse ódio é o Bolsonaro e o bolsonarismo. A sutil diferença do bolsonarismo e a classe dominante é que, esta última, tem no cinismo uma forma de ocultação desse ódio de classe, ódio esse que por vezes é vocalizado por meio de alguns dos seus intelectuais orgânicos (defensores do “teto de gasto” por exemplo) ou jornalistas papagaios nos grandes meios de comunicação de massa (TV, Jornal, Revista e Youtube). Portanto, a distinção entre o bolsonarismo fascista e a burguesia brasileira, especialmente a da Faria-Lima é de forma e não de conteúdo. A indiferença de Bolsonaro, dos Militares e da Burguesia diante das mais de 330 mil mortes pela Covid-19, das milhões de pessoas desempregas e sem qualquer condição de colocar comida no prato é movido por um ódio contra classe trabalhadora pobre e na sua maioria negra.

Nesse contexto me entristece muito as falas do presidente Lula quando diz não sentir ódio por: aqueles que golpearam a presidenta Dilma Rousseff; aqueles que lhe perseguiram e o prenderam (injustamente) na masmorra de Curitiba; que “mataram” (indiretamente) a sua falecida companheira Marisa Letícia; aqueles que não permitiram despedir-se o seu querido irmão Vavá e pelo constrangimento de ir no velório do seu neto, cercado por aparato de guerra. Companheiro Lula, ao você repetir esse discurso que soa como música para burguesia brasileira está em certa medida tirando um instrumento de luta, transformação e mobilização importante para a classe trabalhadora: o ódio de classe que mobiliza para a luta! Se você diz não sentir ódio, não nos tire esse afeto fundamental no processo de formação de consciência de classe. Lula, a burguesia te odeia, você ajudou eles acumularem dinheiro como nunca e depois te prenderam. Você não é um deles, você pertence ao nosso lado da barricada da luta de classe. O Brasil pós-golpe de 2016 voltou ao regime de autocracia burguesa e a partir de 2018 parece caminhar para um regime neofascista. Não será com “lulinha paz e amor” e flores que derrotaremos o fascismo, o neoliberalismo e o capitalismo.

Não podem nos retirar o ímpeto de odiarmos aqueles que nos oprimem e exploram, nos empobrecem, destroem a natureza e nos arrancam sangue e suor, para que eles (burgueses) continuem a usufruir da boa vida, enquanto nos sobra o pauperismo e a barbárie. As milhões de vítimas da covid-19 são fruto de um sistema que pratica assassinato social de forma sistemática: capitalismo. Basta lembramos quem foi a primeira vítima da covid-19 no Brasil, uma empregada doméstica, negra e periférica. Ela pegou a doença da sua patroa que estava a fazer turismo pela Itália. O que quero dizer é que as doenças são biológicas, mas sobreviver a elas ou não são socialmente determinadas, no sentido das condições materiais que temos para resistir.

Companheiros e companheiras, vocês não precisam sentir medo de odiar aqueles que fazem mal para humanidade. O ódio é um afeto “normalizado” e constitutivo da nossa sociedade, mas os defensores do status quo querem nos reprimir tal sentimento por saberem que ele é um instrumento mobilizador e transformador, principalmente, para aqueles que desejam construir Outro modo de vida, em que as nossas reais diferenças possam existir e que as desigualdades económicas e sociais sejam abolidas: socialismo rumo ao comunismo.

Parafraseando. Que o ódio de classe não nos amargure ou entristeça, mas que nos radicalize, nos mobilize e nos alimente a esperança de que um outro mundo podemos construir coletivamente. Mundo esse que ninguém morra por não ter o que comer; por ser obrigado a sair de casa para trabalhar e ser infetado pela covid-19; que não precisemos destruir a natureza em nome do lucro; que as mulheres não tenham que atravessar a rua para não serem violentadas e agredidas pelo machismo; e os/as negros/as possam andar sem o medo de serem alvos suspeitos por um dos aparatos estatais defensores dos interesses da classe dominante: polícia.

Enquanto finalizava esse texto vi uma informação que “Brasil ganhou 20 novos bilionários no ano de pandemia” (https://gq.globo.com/Lifestyle/Poder/noticia/2021/04/brasil-20-novos-bilionarios-panemia.html) no mesmo ano em que mais de 50% população ficou sem emprego e 19 milhões de pessoas não têm condições de comer. Que a indiferença e a desesperança não nos provoque imobilismo e apatia, mas que ódio de classe e a esse mundo de exploração e barbárie nos leve para uma revolução.

** Uma observação. Toda vez que utilizar classe dominante ou burguesa não estou a me referir ao senhor/a que tem uma padaria no bairro ou algumas lojas na sua cidade. Num diálogo crítico que tentei estabelecer com Stoppa (https://www.brasil247.com/blog/vacinacao-e-as-falacias-de-stoppa) argumentei no seguinte sentido: “O empresário-capitalista é aquele que toma uma decisão e impacta na totalidade de um segmento produtivo ou de um país.”

*Carlos Hortmann é filósofo, historiador e músico.

 

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