Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Thomas Piketty compara as estruturas econômicas da China e do Ocidente, abordando a estabilização da China em uma economia mista, equilibrando propriedade pública e privada
“Além da questão ambiental”, segundo Thomas Piketty, no livro Uma breve história da igualdade, “as rivalidades entre as potências estatais e ideológicas constituem um dos principais fatores suscetíveis de acelerar a mudança política”. Uma das questões mais cruciais é a do futuro do regime chinês. Exceto por um colapso inesperado, a República Popular da China deve se tornar a primeira potência econômica do planeta nas próximas décadas.
Thomas Piketty compara as estruturas econômicas em vigor na China e no Ocidente. A maior diferença diz respeito ao regime de propriedade e, em particular, o peso da propriedade pública. Em 1978, quando as reformas pró-mercado foram lançadas, a parcela do capital público (todos os escalões de governos e de coletividades incluídos) estava próximo de 70% na China, antes de baixar de modo considerável durante os anos 1980 e 1990 e até meados dos anos 2000, para então se estabilizar em torno de 30% do capital nacional a partir de meados dos anos 2000.
O processo de privatização da propriedade na China cessou em torno de 2005-2006: o equilíbrio entre propriedade pública e privada não se alterou em nada desde essa data. O capital desenvolvido sob detenção pública avançou quase no mesmo ritmo que o capital privado.
Nesse sentido, a China se estabilizou em torno de uma estrutura de propriedade qualificada de economia mista: o país não é mais realmente comunista, mas tampouco é completamente capitalista, porque a propriedade pública representa pouco mais de 30% do total, ou seja, minoritária, embora substancial em termos comparativos com os demais países. O fato de deter quase um terço de tudo possuído no país dá ao poder público chinês possibilidades de intervenções para decidir sobre a localização dos investimentos, a criação de empregos e para executar políticas de desenvolvimento regional.
Segundo as categorias de ativos, os imóveis residenciais foram quase inteiramente privatizados. O poder público e as empresas detinham, no início dos anos 2020, menos de 5% do total de habitações. Houve a disparada dos preços de bens imobiliários, sobretudo porque as possibilidades de poupança são limitadas e o sistema de aposentadorias por Previdência social não é universal.
O poder público chinês detém atualmente cerca de 55% a 60% do capital total das empresas. Essa parcela quase não sofreu alteração desde 2005-2006.
Daí a manutenção de um rígido controle do sistema produtivo pelo Estado e até mesmo a acentuação do controle das maiores empresas. Observa-se também uma expressiva baixa da parcela do capital das empresas detida pelos investidores estrangeiros, compensada por uma alta da parte detida pelas famílias chinesas.
Além da estrutura de economia mista e do relevante controle estatal das empresas, outra importante característica do “socialismo com características chinesas”, como o regime se define, é o papel dominante do Partido Comunista Chinês. Este contava com mais de 90 milhões de membros em 2020, ou seja, cerca de 10% da população adulta do país.
Para o Partido Comunista Chinês, a democracia à moda chinesa é superior ao enorme mercado eleitoral à moda ocidental. Ela confia os destinos do país a uma vanguarda motivada e determinada, selecionada para ser representativa da sociedade.
Para Thomas Piketty, “na prática, contudo, o regime se assemelha cada vez mais a uma ditadura digital perfeita (…) [com] uma vigilância generalizada da população nas redes sociais, a repressão a dissidentes e minorias, a brutalização do processo eleitoral em Hong Kong, as ameaças dirigidas ao sistema de democracia eleitoral em Taiwan”.
Ele acrescenta à crítica o forte aumento das desigualdades, a extrema opacidade da distribuição das riquezas e o sentimento de injustiça social decorrente. Aposta nesse sentimento não ser eternamente apaziguado com algumas prisões e afastamentos.
O declínio demográfico anunciado e o envelhecimento acelerado da população também representam grandes problemas para o regime. Talvez levem a Índia a substituir a China como primeira potência econômica mundial no decorrer da segunda metade do século XXI.
Thomas Piketty ressalva que se as potências ocidentais insistirem em “uma ideologia hipercapitalista ultrapassada”, não conseguirão limitar a crescente influência do regime chinês. No plano econômico e financeiro, o Estado chinês dispõe de ativos consideráveis, muito superiores a suas dívidas.
Os principais Estados ocidentais se encontram, no início dos anos 2020, em posições patrimoniais quase nulas ou negativas. Por não ter equilibrado as contas públicas por meio do aumento da tributação para os contribuintes mais ricos, esses países acumularam dívidas públicas ao colocar à venda parte crescente de seus ativos públicos, a ponto de elas superarem os ativos.
Os países ricos são ricos porque os patrimônios privados nunca foram tão elevados; apenas os Estados são pobres. Eles se depararão com um patrimônio público cada vez mais negativo, ou seja, os detentores dos títulos de dívidas possuirão não apenas o equivalente a todos os ativos públicos (como infraestruturas e estatais), mas também o direito sobre uma parte dos futuros impostos arrecadados.
Entretanto, contraditoriamente com seu diagnóstico baseado em dados e fatos, Thomas Piketty argumenta por uma terapia não pragmática: “seria totalmente possível, como aconteceu nesses mesmos países no período do pós-guerra, reduzir a dívida pública de modo acelerado taxando, por exemplo, os patrimônios privados mais elevados, dando novamente margens de manobra ao poder público”.
Seria necessário outro pós-guerra?! Ele reconhece essa terapia “vir a gerar algumas crises, dado o conservadorismo predominante”. A China se industrializou sem recorrer à escravidão e ao colonialismo, algo percebido pelo mundo diante a eterna arrogância dos Estados Unidos a la Trump se pressupondo autossuficiente.
Para Thomas Piketty, “a resposta apropriada ao socialismo estatal e autoritário chinês seria promover uma forma de socialismo democrático e participativo, ecológico e pós-colonial, finalmente atento ao Sul e a todas as desigualdades e hipocrisias ocidentais”. Tal evolução permitiria corresponderia à perda de velocidade do neoliberalismo, declínio por conta do fracasso das promessas reaganianas de dinamização do crescimento pela desregulamentação.
As classes médias e populares começaram a ter sérias dúvidas quanto à globalização e ameaçam ser capturadas pelo nativismo. “O risco é o neoliberalismo ser substituído por diversas formas de neonacionalismo, encarnadas pelo trumpismo, pelo Brexit ou pela ascensão ao poder dos nacionalismos turco, brasileiro e indiano, movimentos políticos diversos, mas cujo ponto em comum consiste em denunciar o peso das responsabilidades estrangeiras e das diferentes minorias dentro de seus próprios países pelas suas mazelas nacionais”. Thomas Piketty demonstra desconhecimento sobre o Brasil.
Historicamente, o movimento comunista se formou em torno de uma plataforma com defesa da propriedade estatal dos meios de produção e do planejamento centralizado. Fracassou e nunca foi de fato substituída por uma plataforma alternativa. Pior, os comunistas anacrônicos criticam os reformistas defensores do Estado social e sobretudo o imposto progressivo como formas “frouxas” de socialismo, incapazes de contestar a profunda lógica do capitalismo.
Os marxistas dogmáticos são céticos diante de uma reforma capaz de se contentar com a redução das desigualdades produzidas pelo sistema capitalista sem mudar as relações de produção. Temem, por isso, “o risco de anestesiar a marcha dos trabalhadores rumo à Revolução proletária”.
Segundo Thomas Piketty, no livro Uma breve história da igualdade, o cenário atual, por causa do crescente descrédito do neoliberalismo, aponta para uma disputa entre diferentes visões de socialismo, com o modelo autoritário chinês em competição com o socialismo democrático.
Para Branko Milanovic, no livro Capitalismo sem rivais: O futuro do sistema que domina o mundo, as experiências socialistas do passado acabaram por contribuir para o desenvolvimento do próprio capitalismo e a competição atual se dá entre as variantes do capitalismo: o meritocrático liberal e o político.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]
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