Por JUDITH BUTLER*
Prefácios da autora ao livro recém-editado
Prefácio à segunda edição (1999)
Sujeitos do desejo é minha tese de doutorado, defendida em 1984 e revisada entre 1985 e 1986. Nela, escrevi sobre o conceito de desejo na Fenomenologia do Espírito, de G. W. F. Hegel, e alguns dos principais usos desse tema na filosofia francesa do século XX. Antes de ingressar nesta pesquisa, fui bolsista da Fundação Fulbright e me dediquei ao estudo do hegelianismo e do idealismo alemão na Universidade de Heidelberg, frequentando as aulas de Dieter Henrich e Hans-Georg Gadamer. No início da década de 1980, como aluna do Departamento de Filosofia da Universidade de Yale, fui formada pela tradição da filosofia continental, estudando Marx e Hegel, fenomenologia, Heidegger, Kierkegaard, Merleau-Ponty e a Escola de Frankfurt. Escrevi meu trabalho de conclusão sob a orientação de Maurice Natanson, um fenomenólogo que, gentilmente, apoiou minha pesquisa, mas alertou para o fato de que a filosofia francesa encontrava um limite razoável na obra de Sartre e em algumas passagens de Merleau-Ponty.
Durante minha pesquisa em Yale, entre o fim da década de 1970 e o início de 1980, estive bastante familiarizada com o pensamento pós-estruturalista, mas tendia a alocá-lo fora da esfera da tradição filosófica continental que pretendia estudar. Compareci uma vez ou outra à classe de Jacques Derrida e, com mais frequência, às aulas de Paul de Man. No entanto, trabalhei, na maioria das vezes, em torno do legado da fenomenologia, da hermenêutica e da Escola de Frankfurt, à medida que procurava estabelecer um fundamento no idealismo alemão. No contexto de uma disciplina de estudos das mulheres, fui apresentada à obra de Michel Foucault.
E foi apenas quando saí de Yale e tornei-me professora visitante e bolsista de pós-doutorado na Universidade de Wesleyan, entre 1983 e 1986, que me abri para o pensamento francês de uma forma diferente da resistência que havia em Yale. No centro de humanidades, entrei em contato com a teoria crítica de viés francês, e foi nos primeiros estágios desse contato que pude revisar uma tese como Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France, publicada em 1987 pela editora da Columbia University. Os capítulos finais desta tese, dedicados a Deleuze, Lacan e Foucault, esboçam de maneira inicial aquilo que entendo, desde então, como algo que merece uma análise mais complexa.
Publiquei este livro de maneira muito apressada, pressionada pelo mercado de trabalho, e o republiquei agora, quando já era muito tarde para uma revisão. Qualquer versão revista deste livro seria, de maneira geral, uma obra totalmente nova, um projeto no qual, agora, não me sinto apta a embarcar. Entre 1985 e 1986, não estava exatamente pronta para dar os passos teóricos que ensaiei nos capítulos finais deste livro e que fiz posteriormente em Problemas de gênero, publicado no fim de 1989. Embora hoje eu não seja exatamente velha, este livro se apresenta para mim – até onde o posso ler – como um escrito de juventude, de modo que peço aos/às leitores/as que tenham um olhar generoso com ele.
Este texto não é nem uma narrativa exaustiva do hegelianismo francês nem um trabalho de história intelectual.[i] Trata-se de um questionamento crítico acerca da relação repetidamente figurada entre desejo e reconhecimento.[ii]
Se fosse minha intenção um tipo de abordagem mais ampla, eu teria incluído, sem sombra de dúvida, um capítulo acerca da obra de Georges Bataille. Assim, Sujeitos do desejo teria considerado detalhadamente a influência da Lógica, de Hegel, tratando especialmente da obra de Jean Hyppolite, para quem a Lógica oferece a legitimação de verdades essenciais reveladas pela experiência subjetiva da Fenomenologia do Espírito. Na medida em que Sujeitos do desejo se dedica à Fenomenologia do Espírito, seria igualmente possível incluir neste livro uma consideração acerca do capítulo hegeliano “Liberdade da consciência-de-si: estoicismo, ceticismo e a consciência infeliz”. O trabalho de Jean Wahl a esse respeito poderia muito bem ser considerado a melhor abordagem da filosofia hegeliana na França do século XX, e, de fato, é precisamente nesse capítulo que tem início toda a recepção filosófica francesa do século.
O breve texto de Jean Wahl, intitulado Le Malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel (1929), estabelece uma leitura própria de Hegel, trazendo em si a consciência internamente dividida como sustentação de aspectos simultaneamente religiosos e existenciais, enfatizando a negatividade da consciência, que cumpre um papel deveras proeminente nas leituras empreendidas posteriormente por Kojève e Hyppolite.
Em 1995, publiquei o ensaio “Apego obstinado, sujeição corporal: relendo Hegel sobre a consciência infeliz”, que constitui uma retomada da reflexão acerca do sujeito hegeliano.[iii] Ali, procurei mostrar de que maneira Hegel oferece um desdobramento do capítulo “Dominação e escravidão”, que raramente é considerado por quem privilegia a conclusão aparentemente emancipatória dessa seção. Hegel fornece uma configuração do sujeito na qual a sujeição é tornada uma realidade psíquica, uma realidade com a qual a opressão se articula e se entranha em meios psíquicos. Sugiro que Hegel começa a expor como as inversões do poder ganham lugar à medida que alcançam o estatuto de uma realidade psíquica, uma explicação que frequentemente se atribui a Nietzsche e Freud.
Este texto se ampara nas traduções disponíveis em inglês de Hyppolite, Kojève e Sartre, e em obras escolhidas de ensaios em francês em decorrência do fato de que a maior parte dos escritos não traduzidos de Kojève (incluindo a tradução completa de sua Introdução à leitura de Hegel) permanece ignorada. Suas aulas, ministradas entre 1933 e 1939 na École des Hautes Études, incluem extensas discussões acerca da relação entre Hegel e Kant, o lugar da linguagem poética, a tragédia e a religião na Fenomenologia, assim como uma ampla abordagem da figura de Cristo e do significado do cristianismo que não foram transmitidos à coletânea da tradução em inglês.[iv]
Reivindicado, por um lado, pela tradição straussiana de Alan Bloom, Stanley Rosen e Francis Fukuyama, e sustentado, por outro lado, como marxista por Pierre Macherey e outros, Kojève permanece como um autor de difícil compreensão.[v] Mesmo que ele tenha insistido na ideia de que o texto hegeliano está aberto a uma série de apropriações históricas não previstas na época do próprio Hegel, sua leitura tornou possível a abertura a uma miríade de interpretações conflitantes. Esse dilema pode muito bem ser resultado do tipo de “leitura” que o próprio Kojève põe em questão, uma leitura que não procura ser exatamente fiel à letra hegeliana, mas que, de outra maneira, busca produzir novas interpretações que refletem as modificações das circunstâncias históricas da leitura em si.
Na medida em que se move pelo tempo, o texto hegeliano repõe continuamente a questão de sua própria legibilidade, ainda mais porque o fim da história antecipado por ele não consiste no fim dos tempos e, muito menos, no fim da temporalidade da leitura.[vi] O texto hegeliano, talvez apesar de si mesmo, abre-se à questão da relação entre tempo e legibilidade. Para Kojève, o futuro não está mais constrangido pela teleologia; e o futuro que Hegel de alguma maneira entrevê consiste, precisamente, naquilo que é enlutado por Kojève como um idealismo perdido.
A “leitura” de Kojève traz à tona a temporalidade do texto hegeliano, mostrando que a temporalidade na qual o texto sobrevive demanda um tipo de leitura diferente, leitura que não se move em direção ao progresso com a mesma confiança de antes. Esse dilema da temporalidade pós-Hegel levou alguns straussianos à conclusão de que a história em si precisa ser resolvida em temas “perenes” e, também, levou althusserianos a afirmar que uma análise estruturalista da sociedade, despojada da presunção à diacronia, é a conclusão preferível.
No entanto, é possível derivar de Kojève outra perspectiva, de modo que a temporalidade é irredutível à historicidade e, até mesmo, à teleologia. A temporalidade do conceito não é nem estática nem teleológica, mas exige uma leitura duplamente invertida que não conhece nenhum fechamento, e que, sem dúvida, desagrada o senso comum, mas sem a qual nenhuma abordagem de Hegel se faz possível.
A afirmação especulativa que Hegel traz em sua Lógica ressalta esse problema da temporalidade como um dilema da leitura. Não é possível esperar que a linguagem mostre de forma transparente aquilo que diz, tampouco se pode esperar que essa verdade seja encontrada fora da linguagem. A verdade não é aquilo que se oferece à narrativa da Fenomenologia, e ainda assim se manifesta apenas por meio de sua própria apresentação. A afirmação se move de modo tal que o familiar é tornado infamiliar, e isso participa da gramática comum à própria afirmação. Isso se torna especialmente verdadeiro quando consideramos a função gramatical da “negação”, termo que não apenas padece semanticamente da mudança de sentido, mas que também “age” de modos essenciais no desdobramento de verdades fundamentais.
Essas funções da “negação” evocam as piadas comuns a respeito de Hegel feitas por analistas contemporâneos que insistem no fato de que o filósofo pode muito bem ser simplificado ou definitivamente rejeitado. No entanto, Hegel tem outros planos em mente quando afirma na Fenomenologia do Espírito, por exemplo, que a proposição especulativa destrói a natureza geral da proposição. A questão não é o que se pode fazer com o sentido lógico da negação em Hegel, mas como o uso da negação em sua filosofia convoca o problema da nossa compreensão das relações lógicas.
A negação emerge de inúmeras formas na Fenomenologia, e não meramente a serviço de assimilar ou domesticar a operação lógica que subjuga as alteridades que a confrontam. Na seção “A verdade da certeza de si mesmo”, a consciência nega seus objetos, consumindo-os; na seção “Dominação e escravidão”, a negação aparece, primeiramente, como o esforço das duas figuras em aniquilar uma à outra, para então ser transmutada em relações de dominação e escravidão. Em que sentido a negação “aparece” por meio dessas múltiplas figuras? E de que maneira é possível compreender essas transmutações submetidas pelo aparecimento da negação?
Sugiro que, na Fenomenologia, essas figuras emergem para descrever um momento em que ainda não se atingiu um estatuto lógico estável; tais figuras marcam, de fato, a instabilidade das relações lógicas. Por outro lado, porém, toda relação lógica assume uma forma ou aparência que é figurativa. Se estamos dispostos a ler Hegel, o que essa leitura poderá produzir em uma gramática destinada a expressar relações lógicas (a ideia husserliana nas Investigações lógicas e, igualmente, o primeiro Wittgenstein)?
Costuma-se ler a Fenomenologia com a certeza de que há nela a descrição de uma realidade estável apenas para se opor à teimosia da linguagem descritiva em si. Pensamos saber a todo momento textual o que “é” ou faz a negação, apenas para encontrar, ao seguir o curso de sua ação e lendo-a de fato, que nossas convicções primárias não tinham nenhum fundamento. Em outras palavras, é precisamente isso que impede nosso conhecimento em si. A linguagem, que, conforme pensávamos, correspondia à realidade da negação, no fim das contas tomou parte na própria atividade, ganhou a própria função negativa e, de fato, tornou-se sujeita à própria negação. Assim, a linguagem do texto apresentou seu caráter propriamente retórico, e, então, descobrimos que não havia diferença entre a questão da lógica e a da retórica. Da mesma forma, nenhuma afirmação cognitiva pode ser separada da prática de leitura: a temporalidade do conceito não é, afinal, separável da temporalidade da leitura.
Um dos mais atuais leitores franceses de Hegel, Gérard Lebrun (2006), em A paciência do conceito: ensaio sobre o discurso hegeliano, sustenta uma posição semelhante ao reivindicar a possibilidade de um dogmatismo hegeliano, mostrando de que maneira o discurso de Hegel inicia o/a leitor/a de maneira ativa em uma nova forma de pensamento filosófico.[vii] Assim como para Kojève, também para Lebrun a leitura de Hegel deve atravessar uma temporalidade pretérita (uma ideia de futuro que é passado), de modo que a leitura da gramática hegeliana em relação às exigências da afirmação especulativa seja interpretada “retroativamente”, apenas para descobrir que os pressupostos que animavam essa leitura, por sua vez e em si mesmos, serão conduzidos a uma reviravolta que não desfaz precisamente aquilo que foi feito (ou seja, em sentido propriamente gramatical, põem em ato certa ideia de negação inerente à interpretação em si mesma).
Jean Luc-Nancy sustenta essa posição de outra maneira em seu recente Hegel: l’inquiétude du négatif.[viii] Para ele, o sujeito não se encontra apenas encurralado em si mesmo, mas também se define de maneira fundamental como um ato pelo qual o si mesmo se supera em sua passagem no e para o mundo. O sujeito dispersa a si mesmo no mundo, e essa autossuperação consiste, justamente, na operação de sua negatividade. A obra de Nancy livra Hegel do tropo da totalidade, insistindo no fato de que a “inquietude” do si mesmo consiste, justamente, em seu modo de devir, sua ausência de substancialidade no tempo e sua expressão muito específica de liberdade.
Assim, essa obra é importante retoricamente porque, em vez de uma sistemática exegese hegeliana, oferece um conjunto descontínuo de meditações acerca da Fenomenologia por meio de termos-chave pelos quais o autor aborda a questão da liberdade. Quem espera que a Fenomenologia de Hegel ilustre uma clara teleologia encontra, nesse texto, uma espécie de confusão produtiva.[ix]
De fato, o estatuto da teleologia parece ser significativamente polêmico no interior da abordagem francesa hegeliana do século XX. Embora tenha sido no contexto da filosofia francesa que, no fim das contas, Hegel se tornou sinônimo de totalidade, de dominação conceitual e de sujeito imperialista, a apropriação francesa de Hegel também pôs em questão as presunções totalizantes e teleológicas de sua filosofia. Na maior parte das vezes, de fato, as marcas de uma posição distintivamente “pós-hegeliana” não são tão facilmente separáveis de uma leitura apropriativa do próprio Hegel.
Em especial, os textos de Kojève são pertinentes na medida em que questionam a emergência de um tempo depois do fim da história, assinalando, desse modo, um fechamento à teleologia que não consiste exatamente em um fechamento teleológico, mas em um fim que se ampara, sobretudo, nas linhas de certa ruptura, interrupção e perda. Embora Althusser tenha qualificado a obra de Kojève como “tola”, ele levou a sério seu esforço em considerar a teleologia hegeliana um antropocentrismo.[x]
As reflexões de juventude de Louis Althusser sobre Hegel desenvolvem uma crítica imanente à visão de Kojève, afirmando que o autor foi responsável por uma dimensão subjetiva da negatividade que teria conduzido à exclusão da dimensão objetiva. A tentativa de reduzir o trabalho da negatividade ao sujeito consistiria, portanto, em um revisionismo burguês que afirma o indivíduo à custa de sua situação objetiva (Althusser, 1997, p. 171).
E, quando a objetividade retorna em Hegel, ela é desprovida de seu conteúdo especificamente econômico, o que leva a valorizar uma noção filosoficamente abstrata de igualdade e de democracia em detrimento da que é forjada a partir da luta de classes. Na medida em que lê o Hegel de Kojève pelas lentes do jovem Marx, de modo que tanto Hegel quanto Marx são entendidos como a afirmação da dimensão subjetiva da negação, Althusser afirma que “o Marx existencialista de Kojève é uma farsa na qual os marxistas não se reconhecerão” (Althusser, 1997, p. 172).
Embora Althusser dedique muitos ensaios a Hegel em seus Écrits philosophiques et politiques, nos quais apresenta uma crítica à abstração hegeliana e inicia a prática de uma crítica imanente que articula uma totalidade sem sujeito, ele se precipita ao insultar, particularmente, Hegel e o hegelianismo francês. Althusser elogia Kojève de forma ambivalente: “Seu livro é mais do que uma Introdução à leitura de Hegel: é a ressureição de um cadáver ou, melhor, a revelação de que Hegel, um pensador desmantelado, feito em pedaços, pisoteado e traído, assombra e domina profundamente uma era póstuma” (Althusser, 1997, p. 171).
Depois, ressalta no mesmo tom com que despreza a irrelevância da filosofia hegeliana: “esse deus morto, coberto de insultos e enterrado mais de 100 vezes, ergue-se de sua cova” (Althusser, 1997, p. 174). Por fim, Althusser acusa a filosofia de Hegel não apenas de tornar possível a glorificação do status quo burguês, mas também de sustentar um revisionismo “de tipo fascista” (Althusser, 1997, p. 183).
O recém-publicado livro de Pierre Macherey (1990), Hegel ou Spinoza, é claramente influenciado por Althusser, mas leva mais a sério o potencial crítico da filosofia hegeliana.[xi] Ao contrapor Espinosa e Hegel, Macherey se pergunta de que maneira cada uma de suas posições filosóficas define os limites necessários de um para o outro. O autor defende uma concepção dialética de história sustentada pelo pressuposto teológico para o qual existe determinada “luta de tendências que não carregam em si mesmas a promessa de uma resolução, […] de uma unidade de contrários, mas sem negação da negação”.[xii]
Em oposição a Louis Althusser, Pierre Macherey pondera que há determinado sentido de sujeito hegeliano que permanece irredutível ao próprio uso ordinário dos juízos predicativos. O sujeito hegeliano é aquele para o qual, no interior da gramática, a relação estável entre sujeito e predicado se torna incompleta. Assim, como leitor da tradição althusseriana, Macherey ainda sustenta uma interpretação que vai ao encontro das leituras de Lebrun e Nancy, afirmando a concepção de um sujeito entendido como mero termo no processo que procura alcançar, alguém que não tem substância e para quem a ausência de limites destrói a própria função gramatical.
A revisão que eu teria feito de Sujeitos do desejo incluiria a original crítica de Jacques Derrida (1991) à conceituação hegeliana em O poço e a pirâmide, assim como a revisão e a reelaboração posteriores de sua perspectiva na introdução de Lacoue-Labarthe em Typographies e no livro Glas, escrito pelo próprio Derrida.[xiii] Uma análise completa teria incluído também, e sem sombra de dúvida, um capítulo dedicado aos muitos engajamentos de Luce Irigaray na obra hegeliana, especialmente o texto “The Eternal Irony of the Community”, em Speculum of the Other Women, assim como suas reflexões sobre a obra do filósofo, o parentesco e a universalidade em Sexes et parentés.
A abordagem de Frantz Fanon acerca de Hegel pode, igualmente, ser lida como uma apropriação muito relevante da tese de Kojève sobre a centralidade do desejo no interior da luta por reconhecimento e da constituição do sujeito (e a problemática mimetização do trabalho como uma condição constitutiva para o reconhecimento).
Meu interesse no legado hegeliano não foi exatamente superado pela publicação bastante apressada deste livro. Ministrei uma série de cursos sobre Hegel e a teoria contemporânea, e ainda continuo interessada pela maneira como Hegel é lido e mal interpretado no contexto da criação, da instituição e da disseminação do estruturalismo. Em certo sentido, todo o meu trabalho pode ser remetido à órbita de determinadas questões hegelianas: o que é a relação entre desejo e reconhecimento? De que maneira a constituição do sujeito forma uma relação radical e constitutiva com a alteridade?
Atualmente, estou trabalhando em um livro que será publicado na série da Wellek Library Studies, em que considero a centralidade da escrita de Hegel sobre Antígona em A Fenomenologia do Espírito, Princípios da filosofia do direito e Estética. Nesse texto, dedico-me à forma como Antígona é sistematicamente mal interpretada por Hegel na maneira provocativa como ela entende seu ato criminoso, erupção de uma legalidade alternativa no interior da esfera pública da lei.
Na medida em que, em minha leitura, Antígona cumpre a função de sujeito na escrita hegeliana, ela levanta a questão acerca dos limites políticos do sujeito como ponto de partida para a política. Hegel permanece muito importante aqui, de forma que esse sujeito não está parado no lugar que lhe é próprio, atuando por meio de uma mobilidade crítica que pode muito bem ser útil às apropriações futuras da filosofia hegeliana. O sujeito emergente da Fenomenologia, de Hegel, é um sujeito ek-stático, que se encontra constantemente fora de si e cujas periódicas expropriações não conduzem a um encontro com uma versão prévia de si mesmo.
De fato, o si mesmo que é tornado outro para si, para quem a ek-stasis consiste em certa condição de existência, é aquele para o qual não existe nenhum tipo de retorno possível, para quem não há a recuperação derradeira da perda de si. Sugeriria que a noção de “diferença” é, igualmente, mal interpretada quando considerada circunscrita ao interior do sujeito: o encontro do sujeito hegeliano com a diferença não se resolve na identidade. Pelo contrário, o momento de sua “resolução” é, finalmente, indistinguível em relação ao momento de sua dispersão; o pensamento acerca dessa temporalidade cruzada por um vetor importa ao entendimento hegeliano de infinito, oferecendo uma noção de sujeito que não pode remanescer vinculada em frente ao mundo.
O falso reconhecimento não se apresenta como uma correção distintamente lacaniana em relação à qual o sujeito hegeliano sofre, reiteradamente, a perda de si mesmo. Esse sujeito não padece daquilo que ele mesmo deseja – é, pelo contrário, a ação que perpetuamente o desloca. Hegel, portanto, não oferece uma nova teoria subjetiva ou um deslocamento definitivo do sujeito, e sim uma definição deslocada, para a qual não existirá nenhum tipo de restituição derradeira.
Prefácio à primeira edição (1987)
Em Um bonde chamado desejo, peça de Tennessee Williams, a personagem Blanche DuBois descreve a própria jornada: “Disseram-me que eu tomasse um bonde chamado Desejo, depois passasse para um outro chamado Cemitério, andasse seis quarteirões e desceria nos Campos Elísios!” (Williams, 1980, p. 31). Quando escuta que sua triste e atual localização são os Campos Elísios, ela tem certeza de que recebeu as coordenadas erradas. Seu dilema é implicitamente filosófico. Que tipo de jornada faz do desejo um caminho tão ilusório?
E que tipo de veículo é o desejo? Terá esse veículo outras paradas antes de chegar ao seu destino mortal? Esse questionamento acompanha a jornada do desejo, as viagens de um sujeito desejante que permanece sem nome e sem gênero no percurso de sua universalidade abstrata. Não seria possível reconhecê-lo na estação de trem; não se pode dizer que ele exista como indivíduo.
Como uma estrutura abstrata do anseio humano, esse sujeito consiste em certa configuração conceitual da agência e do propósito humanos cuja reivindicação de integridade ontológica se encontra sucessivamente desafiada pelas suas próprias viagens. De fato, como Blanche e sua jornada, o sujeito desejante segue uma narrativa de desejo, engano e derrota, amparado por momentos pontuais de reconhecimento, fontes para uma redenção meramente fugaz.
Na introdução da Fenomenologia do Espírito, de Hegel, o desejo desse sujeito é estruturado por alegações filosóficas: quer conhecer a si, mas também descobrir, no interior dos confins de si mesmo, a inteireza do mundo exterior; quer, de fato, descobrir seu desejo sobre o domínio pleno da alteridade como uma reflexão de si, não apenas para incorporá-lo ao mundo, mas também para exteriorizá-lo e aprimorar os limites do si mesmo.[xiv] Embora Kierkegaard tenha especulado em voz alta se esse sujeito realmente existe, e Marx tenha criticado o conceito hegeliano como produto de um idealismo mistificado, a recepção francesa de Hegel conduziu o tema do desejo como ponto de partida para sua própria crítica e reformulação.
As obras de Alexandre Kojève e Jean Hyppolite descrevem o sujeito do desejo hegeliano a partir de um conjunto mais estrito de aspirações filosóficas. Para Kojève, o sujeito se encontra necessariamente confinado no interior de um tempo pós-histórico, de modo que a metafísica hegeliana participa, pelo menos parcialmente, do passado. Para Hyppolite, o sujeito do desejo consiste em uma agência paradoxal cuja satisfação se vincula de forma necessária às exigências temporais da existência humana. A ontologia dualista de Jean-Paul Sartre sinaliza um rompimento com a suposta unidade entre o desejo do sujeito e seu mundo, mas a insatisfação necessária ao desejo condiciona a busca imaginária do ideal hegeliano.
De fato, para Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan, o propósito do desejo consiste na produção e na busca por objetos e por Outros imaginários. E, a partir da obra de Lacan, Gilles Deleuze e Michel Foucault, o sujeito do desejo hegeliano é criticado em si mesmo como uma construção absolutamente imaginária. Para Lacan, o desejo não designa autonomia, e só depois de se conformar à lei repressiva se qualifica como prazer; para Deleuze, o desejo fracassa em descrever a desunião de afetos entendidos pela vontade de potência nietzschiana; para Foucault, o desejo é, em si mesmo, historicamente produzido e regulado, e o sujeito, sempre “assujeitado”. De fato, o “sujeito” aparece agora como a imposição falsa de um si mesmo organizado e autônomo no interior de uma experiência descontínua.
A recepção francesa de Hegel pode ser lida como sucessão de críticas contra o sujeito do desejo, conceito hegeliano de um impulso totalizante que, por muitos motivos, deixou de ser plausível. E, no entanto, uma leitura cuidadosa dos principais capítulos da Fenomenologia do Espírito demonstra que, como um artífice da ironia, o próprio Hegel construía este conceito e que sua visão é menos “totalizante” do que geralmente se assume. Assim, as críticas francesas de Hegel se apresentam fundamentando refutações ao filósofo em termos que, ironicamente, terminam por consolidar seu posicionamento original. O sujeito do desejo permanece como uma ficção até mesmo para aqueles que alegam ter definitivamente desvendado suas charadas.
Essa investigação não oferece uma história intelectual da recepção francesa de Hegel nem serve como uma sociologia do conhecimento inerente às tendências intelectuais francesas do século XX. Não é, tampouco, a história de uma linhagem de influência entre os autores aqui tratados. As leituras que buscam um entendimento claro das obras de Kojève e Hyppolite devem esperar um outro tipo de estudo. Esta é a narrativa filosófica de um tropo altamente influente, o mapeamento de sua gênese na Fenomenologia do Espírito, suas múltiplas reformulações em Kojève e Hyppolite, sua persistência como ideal nostálgico em Sartre e Lacan e os esforços contemporâneos para expor seu estatuto plenamente ficcional a partir de Deleuze e Foucault.
Embora este tropo funcione, com frequência, onde estão ausentes as referências explícitas a Hegel, sua reaparição não é, aqui, menos provocativa do que nas teorias contemporâneas que afirmam que o sujeito do desejo está morto.
*Judith Butler é professora de filosofia na University of California, Berkeley. Autora, entre outros livros de Vida precária: os poderes do luto e da violência (Autêntica).
Referência

Judith Butler. Sujeitos do desejo: Reflexões hegelianas na França do século XX. Tradução: Beatriz Zampieri, Carla Rodrigues, Gabriel Lisboa Ponciano e Nathan Teixeira. Autência, Belo Horizonte, 2024, 300 págs. [https://amzn.to/3WKkWhP]
Notas
[i] Para um excelente trabalho de história intelectual com ampla bibliografia, ver Roth, Michael S. Knowing and History: Appropriations of Hegel in Twentieth-Century France. Ithaca: Cornell University Press, 1988.
[ii] “Recognition.” O tema do reconhecimento (Anerkennung) é fundamental para a filosofia hegeliana e para a investigação de Butler sobre o desejo. É preciso, contudo, registrar a presença de outro termo frequentemente traduzido por “reconhecimento” nas traduções
[iii] Clarke, David; Rajan, Tilottama (ed.). Intersections: Nineteenth-Century Philosophy and Contemporary Theory. Albany: Suny, 1995. Reeditado em Hegel passé, Hegel à Venir. Paris: L’Harmattan, 1995. Ver, também, meu livro A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2017 [The Psychic Life of Power: Essays in Subjection. Stanford: Stanford University Press, 1997].
[iv] A edição francesa, publicada originalmente pela Gallimard, em 1947, tem um importante apêndice intitulado “L’Idée de la mort dans la philosophie de Hegel”, que não foi traduzido na versão em inglês. Para a edição em inglês, ver Queneau, Raymond (org.); Bloom, Allan (ed.). (1969). Introduction to the Reading of Hegel: Lectures on the Phenomenology of Spirit. Translated by James H. Nichols Jr. Ithaca: Cornell University Press, 1980.
[v] Para uma bibliografia intelectual recente, ver Auffret, Dominique. Alexandre Kojève: la philosophie, l’Etat, la fin de l’Histoire. Paris: Grasset, 1990.
[vi] A tese da contingência do fim da história é indicada pelo próprio Hegel no fim da Fenomenologia do Espírito, em que a “infinitude” excede o domínio histórico, mas também quando se lê a Fenomenologia no contexto da Lógica e a temporalidade específica do conceito desenvolvido na obra.
[vii] Pode-se dizer que Lebrun amplia as provocações de Kojève no ensaio “La Terminologie hégélienne”. Ver Lebrun, Gérard. La Patience du concept. Paris: Gallimard, 1972. [Ed. bras.: A paciência do conceito: ensaio sobre o discurso hegeliano. Tradução de Silvio Rosa Filho. São Paulo: Editora Unesp, 2006.]
[viii] Paris: Hachette Littératures, 1997. Edição em inglês: Nancy, Jean-Luc. Hegel: The Restlessness of the Negative. Translated by Jason Smith and Steven Miller. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002. Ver, também, o trabalho de Nancy sobre a sentença especulativa em La Remarque spéculative: un bon mot de Hegel (Paris: Editions Galilée, 1973).
[ix] Ver a tradução e o comentário do texto de Hegel “How Common Sense Understands Philosophy” por Jean-Marie Lardic, em que a autora argumenta que a contingência e a desorientação radical do senso comum são fundamentais ao sentido de dialética (Lardic, Jean-Marie.Comment le sens commun comprend la philosophie suivi de la contingence chez Hegel. Paris: Actes Sud, 1989).
[x] Althusser escreve: “A história hegeliana não é biológica, providencial ou mecânica, pois esses três esquemas implicam uma exterioridade. A dimensão negativa pela qual a história é constituída por e para si mesma […] não está fora da história, mas no interior do si mesmo: o nada pelo qual a história é engendrada e através do qual toma posse de si e se restitui de sua geração está nela mesma. Esse nada é o homem” (Althusser, Louis. Écrits philosophiques et politiques. Paris: Stock; lMEC, 1994. t. I. p. 136; Althusser, Louis. The Spectre of Hegel. Early Writings. Edited by G. F. Matheron. Translated by G. M. Goshgarian. London: Verso, 1997).
[xi] Ver, também, Lefebvre, Jean-Pierre; Macherey, Pierre. Hegel et la société. Paris: Presses Universitaires de France, 1984. Nesse livro, a discussão sobre os Princípios da filosofia do direito, de Hegel, dá ênfase à inversão entre o “início” e o “fim” no texto, embaralhando as noções vigentes de desenvolvimento teleológico.
[xii] Macherey, Hegel et la société, p. 259, tradução da autora.
[xiii] Publiquei uma breve análise a respeito das primeiras considerações de Derrida sobre Hegel no artigo “Commentary on Joseph Flay’s ‘Hegel, Derrida, and Bataille’s Laughter’” (In:
[xiv] “Self.” Sempre que possível, a tradução de “self-”, quando aparece como prefixo, foi transportada para o prefixo em português “auto-”, enquanto “self”, substantivo, foi traduzido por “si
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