SUS: terra de ninguém

Por Paulo Capel Narvai*

O dinheiro do SUS está sendo “disputado a
bala” em muitos municípios. Não se trata de metáfora. Os recursos do orçamento
da União destinados ao financiamento das ações de saúde pública são
transferidos do Fundo Nacional de Saúde para os fundos correspondentes nos
Estados e Municípios. Segundo regras definidas em leis e normas infralegais,
esses recursos, somados às transferências estaduais e aos recursos próprios,
devem ser aplicados no pagamento de salários, investimentos e demais despesas
com materiais, medicamentos e equipamentos das unidades da rede de saúde. Na
maioria dos municípios, é isto o que ocorre, mas em vários têm sido constatados
graves desvios de finalidade.

Em muitas situações, o dinheiro das
transferências aos municípios representa um volume proporcionalmente elevado, por
vezes equivalente ao conjunto da arrecadação do município. Embora sejam
recursos com destinação específica, os controles são frágeis e a fiscalização
precária. Em consequência, “mete-se a mão” no dinheiro público da saúde.
Impunemente. Recursos que deveriam ser aplicados na prevenção de doenças, no
alívio da dor, e para evitar mortes e promover a vida, acabam se destinando ao
oposto disso.

Os casos de Santa Luzia, município da
região metropolitana de Belo Horizonte, e de Igarapé-Açu, no nordeste do Pará,
são exemplares. Em Santa Luzia, um pistoleiro acusado de ser o matador de um
jornalista foi pago com dinheiro da saúde [1]. Em Igarapé-Açu,
Paulo Henrique Sousa, eleito presidente do Conselho Municipal de Saúde,
interessado em examinar as contas do SUS local, não chegou a tomar posse: foi
assassinado com quatro tiros na nuca [2].

Fora dos serviços de saúde, o dinheiro do
SUS está, literalmente, matando. Quadrilhas que vêm se especializando em roubar
dinheiro do SUS estão na ponta final da cadeia de interesses que produz
assassinatos. No meio da cadeia encontram-se funcionários e autoridades
públicas venais, dos três poderes, criminosos que se especializaram em sair das
cenas de mãos limpas e bolsos cheios. Os instrumentos são conhecidos e
variados.

Vão de licitações fraudulentas às
contratações ilegais de organizações ditas “sociais” e de “saúde”, as OSS.
Muitas OSS, de “sociais” não têm mais nada, se é que algum dia tiveram. São
apenas empresas. Algumas, inclusive, são postas à venda por seus verdadeiros
donos, como se fossem uma empresa qualquer [3]. Há, decerto, por toda parte, OSS éticas e que
poderiam seguir prestando serviços ao SUS. Mas um grande número de OSS está
envolvido com o noticiário policial [4]
[5].
Registram-se, não poucas vezes, casos em que dirigentes do SUS estão
diretamente envolvidos com a direção de OSS [6].

A falta de transparência ao lidar com
recursos públicos atiça a cobiça de bandidos. Em certos municípios, o SUS
parece uma “terra de ninguém”. É, portanto, urgente, dar um basta nessas
situações específicas que, embora minoritárias, prejudicam as populações dos
municípios afetados.

Há saídas democráticas para
enfrentar essa “terra de ninguém” e mostrar que “esta terra tem dono”. Uma
dessas saídas foi apontada pela 16ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), um
complexo processo de participação social em saúde que envolveu movimentos
sociais, entidades e instituições públicas, em 4.612 municípios.

Nas etapas municipais e
estaduais da conferência, 22.839 pessoas participaram das discussões e
elaboração de propostas, aprovadas na etapa nacional, realizada em Brasília, de
4 a 7/8/2019. O tema central da 16ª CNS foi “Democracia e Saúde”. Seu relatório
final é um alentado documento de 254 páginas que detalha as 31 diretrizes e 328
propostas aprovadas em Brasília. As conferências de saúde, nos municípios,
estados e no âmbito nacional, vêm se constituindo, desde a histórica 8ª CNS,
realizada em 1986, em exemplo de democracia participativa.

A 16ª CNS dedicou cinco
diretrizes e 88 propostas ao tema do “financiamento adequado e suficiente para
o SUS”. Constatou o subfinanciamento crônico do SUS e o risco de
desfinanciamento e indicou, dentre outros aspectos, “a revogação da Emenda
Constitucional nº 95/2016, que congelou os investimentos públicos em saúde por
20 anos”, a criação de uma “Lei de Responsabilidade Sanitária”, desvinculando a
saúde dos estrangulamentos da Lei de Responsabilidade Fiscal [7], “o
aumento do percentual mínimo do município destinado à saúde, de 15% para 20%,
com aumento no investimento para a atenção básica”, e “construir e implantar
para todas as categorias (…) um plano de cargos, carreiras e salários”, a
Carreira-SUS, “garantindo o piso nas três esferas de governo, conforme as
diretrizes nacionais para a gestão do trabalho no SUS”.

Porém, outro caminho para
enfrentar e superar o banditismo que avança sobre o dinheiro do SUS, está sendo
imposto pelo Ministério da Saúde (MS), como se todo o SUS fosse mesmo uma
“terra de ninguém”. O MS alega preocupação com a otimização dos recursos
públicos e com o melhor desempenho do sistema, na atenção básica, aspectos dos
quais, registre-se, ninguém discorda. Para isto encaminhou e se empenhou para
aprovar na reunião de 31 de outubro de 2019 da Comissão Intergestores
Tripartite (CIT), composta por representantes da União, Estados, DF e
Municípios, uma “nova política de financiamento” da Atenção Básica, da qual
muita gente discorda.

Trata-se de uma mudança
radical que estabelece que, após uma transição em 2020, e definitivamente a
partir de janeiro de 2021, os mecanismos atuais de transferência de recursos
serão substituídos por quatro modalidades de financiamento federal.
Basicamente, extingue-se o ‘Piso de Atenção Básica Fixo’, como mecanismo de
transferência contínuo, baseado em critérios demográficos, e se introduz um
valor per capita fixo, cujo montante a ser transferido ficará
desvinculado de critérios populacionais, mas será definido a partir de
critérios gerenciais, notadamente a produtividade e o desempenho.

A nova política de
financiamento colide, frontalmente, com todas as diretrizes e propostas
aprovadas na 16ª CNS. Com ela, o MS regride aos anos 1990 e, arvorando-se
competente para tutelar e decidir o que Estados e Municípios podem ou não podem
fazer em saúde, nos seus âmbitos, passa a considerá-los não mais como entes
federativos autônomos e partícipes da gestão e desenvolvimento institucional do
SUS, mas como meros “prestadores de serviços” ao governo federal, segundo a
lógica contratual que rege as relações entre empresas privadas.

A medida, essencialmente
autoritária, foi objeto da Portaria nº 2.979, de 12/11/2019, que institui um
programa federal denominado “Previne Brasil” [8]. Por recusar as indicações da
16ª CNS, o programa de Bolsonaro foi recebido como uma verdadeira
“contra-reforma” sanitária, pois contraria dispositivos legais e nega toda uma
tradição de democracia participativa que marca a trajetória de construção do
SUS, desde sua criação em 1988.

O anúncio da decisão da CIT,
para atender pressões do governo federal, gerou um número expressivo de
críticas e denúncias do campo democrático, reunido no movimento da Reforma
Sanitária Brasileira (RSB) [9]. “Será a pá de cal no SUS, sepultando definitivamente nosso
sistema universal de saúde” é a frase-síntese do tom geral dessas
manifestações, pois o novo modelo se assenta em “cadastro de pessoas”,
restringindo a esse público as ações do SUS, violando a Constituição e as leis orgânicas
do SUS, ratificadas pela Lei Federal nº 141/2012, que se referem à
universalidade da atenção à saúde, como um “direito de todos”.

O mecanismo criado pelo
governo Bolsonaro, recomendado pelo Banco Mundial, impõe perdas importantes,
que podem chegar a mais da metade dos recursos que recebem até agora, a
centenas de municípios, notadamente os de menor porte demográfico, ainda que
esteja previsto um aumento de cerca de R$ 2 bilhões para a transição de 2020,
ano de eleições municipais. Estima-se que tais perdas atingirão quase um quarto
dos municípios, em todo o país. Mas o anúncio é de que haverá mais recursos e
que a decisão teria sido tomada democraticamente, pois teve o apoio do
Conasems, o conselho que reúne os representantes dos municípios, com o objetivo
de atender os “mais necessitados”. Mas os conselhos equivalentes ao Conasems
dos estados de SP e RJ, dentre outros, divulgaram notas técnicas expondo
divergências relevantes. 

O que o governo Bolsonaro,
quer, efetivamente, é negar na prática o direito constitucional à saúde,
necessariamente universal, e substituí-lo pela denominada cobertura universal.
Não são simples palavras, nem expressões sinônimas: sistemas universais de
saúde operam para que o conjunto das políticas públicas produzam socialmente a
saúde, com o setor saúde integrado a esse conjunto. Assegurar a saúde de todos
é, para os sistemas universais, atribuição do Estado, que deve ser democrático
e desenvolver ações referenciadas no interesse público.

Na cobertura universal, ao
contrário, o que se busca é ampliar a cobertura da assistência médica às
pessoas, reduzindo, portanto, toda a complexidade da saúde aos serviços
médico-hospitalares, que podem ser públicos ou privados. Nessa vertente, a
saúde é considerada uma responsabilidade individual, passível de ser “comprada”
como se fosse uma mercadoria. São bastante conhecidas as deformações impostas
às ações e serviços de saúde quando relações comerciais são adotadas em
substituição à concepção de direitos sociais, para mediar o acesso a cuidados
de saúde: de modo geral a cobertura cai e, com ela, a qualidade dos programas.

Em reunião na primeira semana
de dezembro de 2019, o Conselho Nacional de Saúde anunciou uma agenda de
debates sobre a Portaria nº 2.979 e o programa ‘Previne Brasil’. Mas esta
agenda não tem efeito suspensivo e a Portaria do novo financiamento passa a
valer a partir de 1º de janeiro de 2020.

Os representantes do governo
Bolsonaro rebatem as críticas argumentando que suas decisões são democráticas,
que foram discutidas durante vários meses e têm apoio dos municípios. Mas, é
bem estranha essa “democracia na saúde” que, ao invés de aprofundar o grau de
democracia participativa, combatendo o clientelismo político-partidário e o
nepotismo de alguns conselhos, embaralha palavras e deforma significados.

Nesse contexto, não faz
sentido falar em democracia na saúde se o governo Bolsonaro é essencialmente
autoritário e não faz questão, sequer, de parecer ter algum compromisso com a
democracia, conforme demonstrações diárias de seus dirigentes, desde os
terraplanistas até os abertamente fascistas e seu notório desprezo pelos
valores e a convivência democrática. Na saúde, porém, o governo finge ser o que
não é, embora imponha, de modo igualmente autoritário, medidas radicais que
afetam milhões de brasileiros, desconsiderando qualquer posição divergente e
lidando com a complexidade institucional do SUS como se este fosse ‘terra de
ninguém’, à espera de medidas ordenadoras e racionais.

Ignora os mais de 4 milhões de
profissionais de saúde vinculados ao nosso sistema universal e as entidades que
os representam e despreza conselhos e conferências de saúde ao tomar decisões
sobre o SUS. Mas essa “democracia” na saúde não deve iludir ninguém, pois se
trata de democracia fake, uma falsificação grosseira. As consequências,
contudo, não são de placebos. Têm, ao contrário, efeitos colaterais
destrutivos, nocivos para o SUS e o direito à saúde.

Ao seu modo, essa democracia fake
também mata.

*
Paulo Capel Narvai é
professor titular de Saúde Pública na USP

Notas

[1]
Prefeita pagou matador de jornalista com dinheiro da saúde, diz polícia. Folha de S.Paulo [Internet]. 12 set
2017; Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/09/1917671-prefeita-pagou-matador-de-jornalista-com-dinheiro-da-saude-diz-policia.shtml

[2] Professor que denunciou corrupção é executado a tiros em
Igarapé-Açu. 27 ago 2017; Disponível em:
http://dev.portal.diarioonline.com.br/noticias/policia/noticia-445820-professor-que-denunciou-corrupcao-e-executado-a-tiros-em-igarape-acu.html

[3] Satriano N, Carvalho J. Empresário tentou vender OS por
R$ 100 milhões, segundo MP do RJ. O Globo
[Internet]. 14 jan 2016; Disponível em:
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/01/empresario-tentou-vender-os-por-r-100-milhoes-segundo-mp-do-rj.html

[4] Operação mira quadrilha que desviou R$ 110 milhões do SUS
no Amazonas. A Crítica. 20 set 2016;
Disponível em:
https://www.acritica.com/channels/manaus/news/operacao-mira-quadrilha-que-desviou-r-110-milhoes-do-sus-no-amazonas

[5] O Globo. PF
prende 14 pessoas durante operação que apura desvios de recursos na saúde no
Maranhão. 16 nov 2017; Disponível em:
https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/pf-prende-14-pessoas-durante-operacao-que-apura-desvios-de-recursos-na-saude-no-maranhao.ghtml

[6] RBA. CPI das
Organizações Sociais de Saúde termina com relatório pífio. 13 set 2018;
Disponível em:
https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/09/cpi-das-organizacoes-sociais-de-saude-termina-com-relatorio-pifio/

[7] Brasil. Lei Complementar 101/2000, de 4 de maio de 2000.
Lei de Responsbailidade Fiscal – LRF [Internet]. Brasil; 2000. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm

[8] Brasil. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019
[Internet]. Diário Oficial da União; 2019 p. 27. Disponível em:
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=13/11/2019&jornal=515&pagina=97

[9] Abrasco. Movimento Sanitário escreve ao Ministro Mandetta
sobre mudanças no financiamento da APS. Disponível em:
https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/movimentos-sociais/movimento-sanitario-escreve-ao-ministro-mandetta-sobre-mudancas-no-financiamento-da-aps/43712/


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